21
Jan12
[uma noite, em iapala] os meandros da malária...
beijo de mulata
Mamã com menino...
(Iapala, Nampula)
(continuando...)
Já no hospital, em dois minutos, a história clínica ficou colhida e iniciou-se a terapêutica da malária cerebral. Diagnósticos definitivos só no fim, que nestes casos não há tempo a perder à espera de análises laboratoriais. Nem o Sr. Cachimo, o técnico do laboratório se encontrava no hospital àquela hora...
Dizem-me que a doença começou hoje e que não foram ao curandeiro. Neste caso resolvi acreditar porque a doença parece ter começado agora mesmo. A malária cerebral costuma ter um início violento e provavelmente vieram ao hospital porque era de noite e não iam acordar o curandeiro àquela hora. [Sim, que curandeiro é criatura imponderável, poderosa, com contactos privilegiados com os mortos e legitimidade para influir no destino dos vivos. Quem, no seu perfeito juízo, se arriscaria a ir perturbar o sono de semelhante autoridade?] Por isso achei que era razoavelmente seguro dar-lhe o dobro da dose de quinino na primeira toma, como está preconizado na malária grave. Quase nunca o faço porque sei que os curandeiros usam precisamente o quinino para tratar a malária [o quinino extrai-se da casca de uma árvore] e duvido que consigam controlar as doses que preparam. E, portanto, se eu administrar uma dose mais “generosa” isso pode levar a uma intoxicação fatal! Ou seja, mais uma vez se confirmaria a crença do povo de que o “hospital é sítio para morrer”, onde apenas se deve ir em último caso…
Mas já descobri um truque para perceber se tomaram esses medicamentos ou não, desde que não venham inconscientes: o quinino provoca uma surdez transitória, portanto tudo quanto tenho de fazer é perguntar aos pais se a criança costuma ouvir bem e depois, de repente, bater palmas com muita força para ver se a criança se assusta. Se não se assustar nem olhar é porque tomou quinino e tenho de ter cuidado com a dose que lhe dou...
O menino está sonolento por causa da medicação que eu lhe dei, mas o exame neurológico não está muito alterado. Este caso também há de correr bem! Agora não há mais nada a fazer a não ser esperar que a medicação actue e rezar para que o menino reaja favoravelmente...
Só depois de termos a veia canalizada e o tratamento a correr é que arranjamos um colchão para instalar o menino. Apesar de estarmos na estação seca, em que a taxa de hospitalização é mínima, as camas estão todas ocupadas e temos de o acomodar no corredor... E então na estação das chuvas as condições são ainda mais precárias: o número de doentes hospitalizados é tal que têm de dormir no parrô, um abrigo amplo, com telhado mas sem parede completa até ao tecto, cheio de correntes de ar e onde a chuva entra livremente… Nem quero imaginar o que é este hospital durante os surtos de cólera…
Demoro-me um pouco a escrever no processo e só quando saio do gabinete me apercebo de que um homem ainda jovem chora baixinho, ajoelhado à cabeceira do menino.
– O senhor é o pai?
– Não, esse menino é meu sobrinho.
Talvez compreenda Português, pensei.
– O menino não está em coma, está só a dormir por causa do medicamento que nós lhe demos para parar as convulsões.
Não deu sinais de me ter compreendido. Fui chamar o enfermeiro, que traduziu a minha explicação para Macua. O tio afinal tinha-me compreendido, mas não acreditava que o menino pudesse sobreviver. Expliquei-lhe que ainda era muito cedo para saber o desenlace, mas que era muito possível que o menino ficasse bem. Parou de chorar.
– Obrigado.
Nem por um momento deixou de fitar o menino...
(continua...)