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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

15
Out13

[alvíssaras!] não temais, que veio o halakavuma!

beijo de mulata
 
Um pacato pangolim comendo as suas formigas, sob o olhar atento e esperançoso dos habitantes da vila, durante a cerimónia pública de invocação de espíritos.
(Murrupula, Nampula)

Para quem não o conhece, o halakavuma - pangolim, em Português corrente - é um mamífero que vive em zonas tropicais da Ásia e da África que, segundo a tradição macua (a etnia que habita o norte de Moçambique), traz boa sorte e boas notícias. As suas escamas são igualmente traficadas para serem utilizadas como afrodisíacos. O seu aparecimento em Murrupula foi notícia no Notícias de Moçambique:
A vila sede do distrito de Murrupula, em Nampula,esteve ontem parcialmente paralisada para participar da cerimónia pública deinvocação dos espíritos pelo aparecimento de um pangolim, mamífero consideradoraro e cuja aparição é considerado na mitologia dos povos macuas daquelaregião, como sendo presságio de boa campanha de produção agrícola, entre outrasdádivas.
 “Conformemandam as tradições, tivemos que trazer o animal imediatamente para sede dodistrito para o conhecimento das autoridades, depois que se seguirá outrostipos de rituais, antes de o animal ser devolvido para o mato”- explicou Wala.
Pronto, meus amigos, não se preocupem mais. Nada há a temer, que já veio o halakavuma!
08
Abr12

[histórias do fim do mundo] o fogo novo!

beijo de mulata
Já vos contei esta história. Hojo conto-a de novo. Porque vale a pena! É o relato da vigília Pascal em Murrupula, Moçambique contado na primeira pessoa pela minha amiga V. Deliciem-se!


Quando a noite cai, o teu amor é como um fogo!
(Murrupula, Moçambique)


"Salama owani? Miyo salama! [Estão todos bem em casa? Eu estou bem!]

Acabo de chegar de Murrupula, da missão, onde passei estes dias da Páscoa e gostaria de partilhar convosco a noite mais mágica da minha vida, que passei ao lado da minha família africana, o Pe. Jacob, o Irmão Tobias, o Irmão Rui, nove seminaristas, os vinte e três rapazes órfãos que vivem no lar da Missão, o cozinheiro Rosário (o homem que nos mantém a todos vivos), várias dezenas de trabalhadores das machambas da Missão, carpinteiros, guardadores de vacas e ovelhas, a minha grande amiga Eugénia... e o Tejo e o Tajo, que são, certamente, os dois macacos mais mimados do mundo!

Aqui a Páscoa é vivida de uma forma muito diferente da que eu estou habituada a viver em Portugal, no meu Alentejo. Não são só os sabores, os cheiros, as cores, as cerimónias, os cânticos, a espiritualidade… mas passa por outra forma de encarar a paixão, a morte e a ressurreição.

Tinha ouvido falar da magia que se vive durante as cerimónias da Páscoa mas vivenciá-la aqui e ao vivo tem outro sabor. A Páscoa para mim já tinha começado na tarde de Sexta-feira Santa, na vila, onde foi encenada a Via Sacra pelos seminaristas, pelo grupo de jovens e pelos rapazes do lar da Missão. À noite, depois da comemoração muito simples do aniversário da Eugénia, os futuros baptizados que já tinham chegado à missão, “apagaram o fogo velho”. Formaram uma fila, cada um com um pedaço de lenha com uma ponta a arder e foram apagá-la numa taça feita de barro com água. Isto é interpretado como um apagar dos pecados, para um início de vida nova. Uma vida que iria começar na noite seguinte.

Após o jantar e todos os preparativos que ocuparam todo o dia, os futuros baptizados e os futuros noivos, os padrinhos e familiares e os restantes membros das comunidades reuniram-se junto da igreja para assistir ao “acender do fogo novo”. E a magia de que alguém me tinha falado começou...

Tentem imaginar uma roda de pessoas, tendo no meio uma enorme pilha de madeira preparada à espera do “fogo novo” e uns grupinhos de cinco homens e três mulheres (eu também fui, incentivada pelo Pe. Jacob e movida pela minha curiosidade) de cócoras, junto de dois pedaços de madeira que cada um sem cessar e rotativamente ia friccionando para manualmente “fazer o fogo”. Todos na roda humana esperavam este “nascimento” para acender o círio pascal e assim iniciar as cerimónias pascais deste ano.

Para quem está habituado a estas andanças, diz que desta vez a pequena brasa, que se formou do trabalho conjunto de sete pessoas, nasceu rapidamente... E a pequena brasa, celebrada com gritos de espanto e de júbilo, foi aninhada com todo o cuidado em “raspas” de madeira e depois de bem “pegada” e forte, foi queimar a fogueira que ali estava à sua espera.

De pequena, a fogueira cresceu para dar lugar a um fogo vivo, para contentamento, cânticos, palmas e alarido de todos. O círio pascal foi aceso a partir deste “fogo novo”, iluminando o caminho até ao altar da igreja. Este deu a sua luz, em conjunto, com as velas, e foi com esta luz que se realizaram os 97 baptismos de adultos e os 56 casamentos (!), que ali aconteceram nessa noite. Para receber o baptismo tinham uma tina de latão e uma cabaça que serviram de pia e “concha” baptismal, mas num local onde nem luz eléctrica ainda há, estas condições não incomodam o povo, que se encontrava ávido pela presença de Deus em sua vidas. É curioso observar a fé e a persistência deste povo, quando pensamos que muitos vieram de muito longe, andaram muitos quilómetros a pé para estar nesta noite e nesta igreja para receber o seu baptismo ou matrimónio, para assinalar a ressurreição do Senhor, de uma forma tão bonita.

A missa prolongou-se por mais de cinco horas mas, para a maioria dos que estavam presentes, passou bem depressa, entre cânticos, leituras e muita alegria pela celebração que se estava a realizar, e no final da missa, com todos sentados cá fora em silêncio, o nascer do sol sobre o monte deixou-nos de lágrimas nos olhos."
26
Ago11

[yo mussi] a minha família

beijo de mulata

Digam-me se não é uma delícia a escolinha comunitária de Murrupula? Construída com donativos e com contribuição da própria comunidade. Mão de obra local. O pintor é o celebérrimo Chico, que foi de Nampula de propósito para pintar as paredes da escolinha voluntariamente.
As crianças vão à escola e ali, em vez de ficarem o dia inteiro sem comer e entregues a si próprias, brincam, dançam, cantam, aprendem a falar português... Algumas têm  padrinhos em Portugal, em Itália, em Espanha, que colaboram com as Irmãs. Outras os pais têm possibilidade de pagar e ajudam as outras crianças da comunidade a integrar-se na escola. Assim, quando chegam à primeira classe não aprendem a ler e a escrever numa língua totalmente desconhecida.
(Escolinha Yo Mussi, Murrupula, Nampula)


Sim, eu sei q?ue estou sempre a dizer o mesmo, mas as escolinhas são uma ideia vencedora contra o insucesso escolar e a iliteracia em Moçambique, sobretudo nas comunidades em que a língua predominante não é a oficial. Choca-me que as crianças desfavorecidas não tenham acesso a livros em casa e que comecem do zero absoluto no que toca a aprender a ler, mantendo o ciclo de pobreza. Se as nossas crianças, que nascem rodeadas de letras e números e têm livros desde os seis meses às vezes têm dificuldade em aprender, como poderemos mandar estas para a escola só aos seis ou sete anos, sem ideia nenhuma do que lá vão fazer e sem saber falar a língua em que vão aprender?
24
Abr11

[histórias do fim do mundo] o fogo novo

beijo de mulata
"Quando a noite cai, o teu amor é como um fogo!"
(Murrupula, Moçambique)

Se há pessoas que me chamam de louca porque de vez em quando peço licenças sem vencimento para ir para Moçambique trabalhar como voluntária, eu respondo sempre que me chamam louca porque não conhecem as minhas amigas que, bem instaladas na vida, rescindiram contratos em Portugal para irem fazer voluntariado durante anos da sua juventude. Só não lhes consigo chamar loucas também porque sei que foram e são muito felizes! Deixo-vos hoje o relato na primeira pessoa da minha amiga V. sobre a Páscoa que viveu em Murrupula, Norte de Moçambique.

"Salama owani? Miyo salama! [Estão todos bem em casa? Eu estou bem!]

Acabo de chegar de Murrupula, da missão, onde passei estes dias da Páscoa e gostaria de partilhar convosco a noite mais mágica da minha vida, que passei ao lado da minha família africana, o Pe. Jacob, o Irmão Tobias, o Irmão Rui, nove seminaristas, os vinte e três rapazes órfãos que vivem no lar da Missão, o cozinheiro Rosário (o homem que nos mantém a todos vivos), várias dezenas de trabalhadores das machambas da Missão, carpinteiros, guardadores de vacas e ovelhas, a minha grande amiga Eugénia... e o Tejo e o Tajo, que são, de certeza absoluta, os dois macacos mais mimados do mundo!

Aqui a Páscoa é vivida de uma forma muito diferente da que eu estou habituada a viver em Portugal, no meu Alentejo. Não são só os sabores, os cheiros, as cores, as cerimónias, os cânticos, a espiritualidade… mas passa por outra forma de encarar a paixão, a morte e a ressurreição.

Tinha ouvido falar da magia que se vive durante as cerimónias da Páscoa mas vivenciá-la aqui e ao vivo tem outro sabor. A Páscoa para mim já tinha começado na tarde de Sexta-feira Santa, na vila, onde foi encenada a Via Sacra pelos seminaristas, pelo grupo de jovens e pelos rapazes do lar da Missão. À noite, depois da comemoração muito simples do aniversário da Eugénia, os futuros baptizados que já tinham chegado à missão, “apagaram o fogo velho”. Formaram uma fila, cada um com um pedaço de lenha com uma ponta a arder e foram apagá-la numa taça feita de barro com água. Isto é interpretado como um apagar dos pecados, para um início de vida nova. Uma vida que iria começar na noite seguinte.

Após o jantar e todos os preparativos que ocuparam todo o dia, os futuros baptizados e os futuros noivos, os padrinhos e familiares e os restantes membros das comunidades reuniram-se junto da igreja para assistir ao “acender do fogo novo”. E a magia de que alguém me tinha falado começou...

Tentem imaginar uma roda de pessoas, tendo no meio uma enorme pilha de madeira preparada à espera do “fogo novo” e uns grupinhos de cinco homens e três mulheres (eu também fui, incentivada pelo Pe. Jacob e movida pela minha curiosidade) de cócoras, junto de dois pedaços de madeira que cada um sem cessar e rotativamente ia friccionando para manualmente “fazer o fogo”. Todos na roda humana esperavam este “nascimento” para acender o círio pascal e assim iniciar as cerimónias pascais deste ano.

Para quem está habituado a estas andanças, diz que desta vez a pequena brasa, que se formou do trabalho conjunto de sete pessoas, nasceu rapidamente... E a pequena brasa, celebrada com gritos de espanto e de júbilo, foi aninhada com todo o cuidado em “raspas” de madeira e depois de bem “pegada” e forte, foi queimar a fogueira que ali estava à sua espera.

De pequena, a fogueira cresceu para dar lugar a um fogo vivo, para contentamento, cânticos, palmas e alarido de todos. O círio pascal foi aceso a partir deste “fogo novo”, iluminando o caminho até ao altar da igreja. Este deu a sua luz, em conjunto, com as velas, e foi com esta luz que se realizaram os 97 baptismos de adultos e os 56 casamentos (!), que ali aconteceram nessa noite. Para receber o baptismo tinham uma tina de latão e uma cabaça que serviram de pia e “concha” baptismal, mas num local onde nem luz eléctrica ainda há, estas condições não incomodam o povo, que se encontrava ávido pela presença de Deus em sua vidas. É curioso observar a fé e a persistência deste povo, quando pensamos que muitos vieram de muito longe, andaram muitos quilómetros a pé para estar nesta noite e nesta igreja para receber o seu baptismo ou matrimónio, para assinalar a ressurreição do Senhor, de uma forma tão bonita.

A missa prolongou-se por mais de cinco horas mas, para a maioria dos que estavam presentes, passou bem depressa, entre cânticos, leituras e muita alegria pela celebração que se estava a realizar, e no final da missa, com todos sentados cá fora em silêncio, o nascer do sol sobre o monte deixou-nos de lágrimas nos olhos."
20
Fev11

[lascia la spina cogli la rosa] das coisas que me doem...

beijo de mulata
Aprendendo os números na melhor escola das redondezas. Tinha quadro e giz, mesas e cadeiras e o pavimento e as paredes de pedra e cal... E professores tranquilos.
(Murrupula, Nampula)

Há coisas que genuinamente me deixam triste em Moçambique... As práticas de extorsão e exigências de favores sexuais por parte dos professores para aprovar os alunos ou até para fazer com que as notas merecidas apareçam na pauta desgostam-me como quase nada me consegue desgostar no país que eu amo. Em tudo o resto geralmente consigo dar a volta por cima e pensar precisamente que aquele é um país fantástico, que adoro como a um filho e aceitar a realidade. Se não há sistema numa repartição pública e tenho de lá voltar cinco vezes para pagar alguma coisa, tudo bem, algum dia há-de chegar a minha vez de conseguir. Se não há reagentes no hospital para fazer uma análise, pronto, passa-se sem ela e tomam-se decisões de acordo com o pior dos cenários para não corrermos riscos. Se as estradas estão péssimas e as pontes correm o risco de ruir, eu lembro-me da máxima de um amigo meu, natural da Guiné: "Eu já desisti de me enfurecer... quando vejo estas situações, respiro fundo e penso: Isto não é revoltante, é exótico!"

Mas neste caso não consigo... Quando vejo mais uma menina adolescente grávida ou infectada pelo vírus da SIDA ou com o coração destroçado após ter sido obrigada a ter relações com um professor só me apetece mandar tudo às urtigas... Ir-me embora para não ver vidas destruídas por inconsequências, prepotências e irresponsabilidade! Ou mandá-las a todas para casa das Irmãs, que são umas autênticas guerreiras a defender as suas meninas, com garras e unhas e dentes e leis e até prisão se for preciso! Se cada uma tivesse um padrinho, ou um anjo da guarda...
29
Jan11

[olhares amadurecidos] de vidas que terminaram...

beijo de mulata
O leproso de Nehessine.
(Foto do R., Murrupula, Nampula)

Não me espanta haver doentes de lepra em Moçambique. Não me espanta a mim, que já diagnostiquei e tratei tantos... Não me espanta que existam mutilados, que bem sei que já levei tratamento aos confins do mato, no fim do mundo e vi, naqueles momentos, que se para muitos ainda cheguei a tempo, para outros tantos cheguei tarde demais. Mesmo que não tivessem deformidades ainda. Às vezes o estigma instala-se e cola-se à pele, mais visível que a própria doença, mais mutilante e corrosivo... Mas ainda que o tratamento venha ter à rua principal, o estigma é o maior inimigo da cura. De que serve o tratamento se depois não se puder voltar para casa? Para alguém se tratar tem de dar a cara com a certeza de não perder a face...

Por tudo isto não me espanta que existam doentes de lepra em Moçambique. A doença é lenta, mas a cura é mais longa ainda, o tratamento é raro, a ignorância um mundo sem fim e o estigma... esse é cruel e possessivo, esse enterra quem ainda tinha força e vontade de viver. Não me espanta a lepra. Espanta-me, sim, este olhar tranquilo e limpo, a céu aberto...
30
Abr10

[a vida é simples] ...ou pelo menos devia...

beijo de mulata

Esta ficou-me atravessada... A Igreja de Murrupula (Nampula), restaurada pelos Missionários de S. João Baptista, tinha originalmente sobre o altar uma pintura plena de significado religioso e histórico, resumindo numa parede as origens de um povo, os descobrimentos, a colonização, a guerra civil e os dias actuais, em íntima comunhão com a vida de Cristo.

No entanto, antes da inauguração, o Bispo de Nampula não aprovou a pintura, alegando que colocar factos históricos sobre o altar "não era litúrgico" (sic), pelo que os missionários se viram obrigados a pedir ao artista que a substituísse por outra, mais liturgicamente correcta, mas mais pobre em significado, mais vazia de sentimentos, menos inpiradora para o povo...

Não compreendo. Ainda se a sentença tivesse vindo de outra cabeça menos esclarecida, menos viajada... agora vinda de um homem que estudou História Universal e História de Arte, habituado a visitar igrejas em toda a Europa... como pode não aceitar a criatividade de um artista que tenta reinventar a vida de Cristo na voz do seu país?

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