02
Set12
[hoje inventei uma palavra nova] sonhar...
beijo de mulata
Lançamos os balões, agarramo-nos ao sonho. Mas quem voa é sempre o vento!
(Variações de Mia Couto, Street art by Banksy)
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Sou Nãozinha, a feiticeira.Minhas lembranças são custosas de chamar. Não me peça para desenterrarpassados. A serpente engole a própria saliva? Tenho que falar, por suaobrigação? Está certo. Mas fica a saber, senhor. Ninguém obedece senão em fingimento.Não destine ordem em minha alma. Senão quem vai falar é só o meu corpo.
Primeiro, lhe digo: não devíamosfalar assim de noite. Quando se contam coisas no escuro é que nascem mochos.Quando terminar a minha história todos os mochos do mundo estarão suspensossobre essa árvore onde o senhor se encosta. Não tem medo? Eu sei, você mesmo,sendo preto, é lá da cidade. Não sabe nem respeita.
Vamos então escavar nessecemitério. Digo certo: cemitério. Todos os que eu amei estão mortos. Minhamemória é uma campa onde eu me vou enterrando a mim mesmo. As minhas lembrançassão seres morridos, sepultados não em terra mas em água. Remexo nessa água etudo se avermelha. Lhe inspiro medo? Por essa mesma razão, o medo, eu fuiexpulsa de casa. Me acusaram de feitiçaria. Na tradição, lá nas nossas aldeias,uma velha sempre arrisca a ser olhada como feiticeira. Fui também acusada, injustamente.Me culparam de mortes que sucediam em nossa família. Fui expulsa. Sofri. Nós,mulheres, estamos sempre sob a sombra da lâmina: impedidas de viver enquantonovas; acusadas de não morrer quando já velhas. Mas hoje me aproveito dessaacusação. Me dá jeito pensarem que sou feiticeira. Está ver? Meus poderes nascem da mentira.Mia Couto in A Varanda do Frangipani
– Só quero viajar quando for completamente cega.Mia Couto in Na Berma de Nenhuma Estrada
Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:
– É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro de mim.
"A infelicidade dá uma trabalheira pior que doença: é preciso entrar e sair dela, afastar os que nos querem consolar, aceitar pêsames por uma porção da alma que nem chegou a falecer."Mia Couto in Mar me Quer
Cercado por uma espécie de guerra, refém de um sentimento de impotência, escuto tiros a uma centena de metros. Fumo escuro reforça o sentimento de cerco. Esse fumo não escurece apenas o horizonte imediato da minha janela. Escurece o futuro. Estamo-nos suicidando em fumo? Ironia triste: o pneu que foi feito para vencer a estrada está, em chamas, consumindo a estrada. Essa estrada é aquela que nos levaria a uma condição melhor.
E de novo, uma certa orfandade atinge-me. Eu, como todos os cidadãos de Maputo, necessitaríamos de uma palavra de orientação, de um esclarecimento sobre o que se passa e como devo actuar. Não há voz, não rosto de nenhuma autoridade. Ligo rádio, ligo televisão. Estão passando novelas, música, de costas voltadas para a realidade. Alguém virá dizer-nos alguma coisa, diz um dos meus filhos. Ninguém, excepto uma cadeia de televisão, dá conta do que se está passando.
A pobreza sai muito caro. Ser pobre custa muito dinheiro. Os motins da semana passada comprovam este parodoxo. Jovens sem presente agrediram o seu próprio futuro. Os tumultos não tinham uma senha, uma organização, uma palavra de ordem. Apenas a desesperada esperança de poder reverter a decisão de aumento de preços. Sem enquadramento organizativo os tumultos, rapidamente, foram apropriados pelo oportunismo da violência, do saque, do vandalismo.
Grave será contentarmo-nos com condenações moralistas e explicações redutoras e simplificadoras. A intensidade e a extensão dos tumultos deve obrigar a um repensar de caminhos (...). Na verdade, os motins não eram legais, mas eram legítimos. Para os que não estavam nas ruas, mesmo para os que condenavam a forma dos protestos, havia razão e fundamento para esta rebelião. (...)Mia Couto, artigo n'O País
Recordo-me de um jantar em Lisboa em que se armou uma enorme barafunda. Estávamos em casa de uma figura pública portuguesa que lamentou, com aparente sinceridade, aquilo que chamou de «corrupção endógena» dos africanos. Na mesa houve vozes que protestaram: porquê apenas dos africanos? A conversa azedou e rapidamente derrapou para contornos raciais. Um português, nervoso, tomou a defesa dos africanos e enfrentou a tal figura pública nos seguintes termos: Quer Vossa Excelência dizer que, por cá, não temos corrupção?Mia Couto in Revista África21
... Seguiram-se acusações graves que fizeram adiar o propósito do encontro que era provar aquilo que havia sido apresentado como uma refeição inesquecível. Coube-me atirar água sobre a fervura. Mas era bálsamo tardio. Já havia mágoas irreparáveis. Um jantar é sempre mais do que uma simples refeição.
Anos mais tarde um dos mais animados participantes do malogrado jantar, de visita a Moçambique, mostrou-me um artigo de capa de uma revista lisboeta. O título era claro: uma certa excelência parecia não escapar das acusações de corrupção que sobre ele há muito pesavam. Reconhece quem é este?
Reconheci. Era a mesma pessoa que se lamentava da corrupção em África. O visitante português sacudiu a revista sobre a cabeça como prova de antiga razão. E eu sorri.
Na verdade, um dos maiores desafios dos africanos é fazerem-se respeitar como pessoas individuais e como entidades coletivas. Um passado (será que passou?) de preconceitos assumidos e declarados deu lugar a uma envergonhada arrogância («nós», dizem os europeus, não somos como «eles»). Ontem era a História que apenas tinha residência fora da África. Hoje, quem mora fora é a Ética.
(...) O planeta vive um momento tão melindroso que há que entregar os nossos destinos (ou o que deles ainda resta) na mão de especialistas: os economistas, os financeiros, os políticos (que perdem terreno nesta tríade de feiticeiros).Mia Couto in Votar no Ilegível?
Quem manda, afinal, são sempre outros. Esses outros assinam com o nome genérico de «o mercado». Nunca as televisões deram tanto espaço ao que dizem os donos dos bancos. A fronteira entre o caráter nacional ou internacional destas instituições bancárias esbateu-se mais do que as categorias de «esquerda» e «direita». E vamos percebendo que algo de divindade devem ter esses grandes banqueiros porque estão acima das crises e porque debatem algo que se afastou do domínio dos comuns mortais: o futuro. Já que mandam mais do que os governos, devia haver eleições para os donos dos bancos.
Haja democracia!
Mia Couto in A Varanda do FrangipaniA velhice não nos dá nenhuma sabedoria, simplesmente autoriza outras loucuras.
Diante do amor, ela arrepiou o coração: "Não tenho asas para tanto paraíso..."Mia Couto
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