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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

19
Ago12

[outras palavras] confissão de nãozinha, a feiticeira

beijo de mulata

Mulher curandeira...
(Malema, Nampula)

Sou Nãozinha, a feiticeira.Minhas lembranças são custosas de chamar. Não me peça para desenterrarpassados. A serpente engole a própria saliva? Tenho que falar, por suaobrigação? Está certo. Mas fica a saber, senhor. Ninguém obedece senão em fingimento.Não destine ordem em minha alma. Senão quem vai falar é só o meu corpo.
Primeiro, lhe digo: não devíamosfalar assim de noite. Quando se contam coisas no escuro é que nascem mochos.Quando terminar a minha história todos os mochos do mundo estarão suspensossobre essa árvore onde o senhor se encosta. Não tem medo? Eu sei, você mesmo,sendo preto, é lá da cidade. Não sabe nem respeita.
Vamos então escavar nessecemitério. Digo certo: cemitério. Todos os que eu amei estão mortos. Minhamemória é uma campa onde eu me vou enterrando a mim mesmo. As minhas lembrançassão seres morridos, sepultados não em terra mas em água. Remexo nessa água etudo se avermelha. Lhe inspiro medo? Por essa mesma razão, o medo, eu fuiexpulsa de casa. Me acusaram de feitiçaria. Na tradição, lá nas nossas aldeias,uma velha sempre arrisca a ser olhada como feiticeira. Fui também acusada, injustamente.Me culparam de mortes que sucediam em nossa família. Fui expulsa. Sofri. Nós,mulheres, estamos sempre sob a sombra da lâmina: impedidas de viver enquantonovas; acusadas de não morrer quando já velhas. Mas hoje me aproveito dessaacusação. Me dá jeito pensarem que sou feiticeira. Está ver? Meus poderes nascem da mentira. 
Mia Couto in A Varanda do Frangipani
27
Jun12

[outras palavras] volver

beijo de mulata

Crianças a correr atrás do nosso carro, nas plantações de chá do Guruè.
(Guruè, Zambézia)

 – Só quero viajar quando for completamente cega.
Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:
– É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro de mim.

Mia Couto in Na Berma de Nenhuma Estrada
13
Fev12

[outras palavras] os tumultos na grécia

beijo de mulata
A propósito dos graves acontecimentos na Grécia, podemos recordar as palavras de Mia Couto sobre a revolta popular em Maputo em Setembro de 2010. Um excelente artigo, intitulado "A Pobreza Sai Muito Caro", que reproduzo parcialmente. A totalidade do texto aqui.
Cercado por uma espécie de guerra, refém de um sentimento de impotência, escuto tiros a uma centena de metros. Fumo escuro reforça o sentimento de cerco. Esse fumo não escurece apenas o horizonte imediato da minha janela. Escurece o futuro. Estamo-nos suicidando em fumo? Ironia triste: o pneu que foi feito para vencer a estrada está, em chamas, consumindo a estrada. Essa estrada é aquela que nos levaria a uma condição melhor.
E de novo, uma certa orfandade atinge-me. Eu, como todos os cidadãos de Maputo, necessitaríamos de uma palavra de orientação, de um esclarecimento sobre o que se passa e como devo actuar. Não há voz, não rosto de nenhuma autoridade. Ligo rádio, ligo televisão. Estão passando novelas, música, de costas voltadas para a realidade. Alguém virá dizer-nos alguma coisa, diz um dos meus filhos. Ninguém, excepto uma cadeia de televisão, dá conta do que se está passando.
A pobreza sai muito caro. Ser pobre custa muito dinheiro. Os motins da semana passada comprovam este parodoxo. Jovens sem presente agrediram o seu próprio futuro. Os tumultos não tinham uma senha, uma organização, uma palavra de ordem. Apenas a desesperada esperança de poder reverter a decisão de aumento de preços. Sem enquadramento organizativo os tumultos, rapidamente, foram apropriados pelo oportunismo da violência, do saque, do vandalismo.
Grave será contentarmo-nos com condenações moralistas e explicações redutoras e simplificadoras. A intensidade e a extensão dos tumultos deve obrigar a um repensar de caminhos (...). Na verdade, os motins não eram legais, mas eram legítimos. Para os que não estavam nas ruas, mesmo para os que condenavam a forma dos protestos, havia razão e fundamento para esta rebelião. (...)
Mia Couto, artigo n'O País
19
Jan12

[outras palavras] olhar para dentro...

beijo de mulata
Recordo-me de um jantar em Lisboa em que se armou uma enorme barafunda. Estávamos em casa de uma figura pública portuguesa que lamentou, com aparente sinceridade, aquilo que chamou de «corrupção endógena» dos africanos. Na mesa houve vozes que protestaram: porquê apenas dos africanos? A conversa azedou e rapidamente derrapou para contornos raciais. Um português, nervoso, tomou a defesa dos africanos e enfrentou a tal figura pública nos seguintes termos: Quer Vossa Excelência dizer que, por cá, não temos corrupção?

... Seguiram-se acusações graves que fizeram adiar o propósito do encontro que era provar aquilo que havia sido apresentado como uma refeição inesquecível. Coube-me atirar água sobre a fervura. Mas era bálsamo tardio. Já havia mágoas irreparáveis. Um jantar é sempre mais do que uma simples refeição.

Anos mais tarde um dos mais animados participantes do malogrado jantar, de visita a Moçambique, mostrou-me um artigo de capa de uma revista lisboeta. O título era claro: uma certa excelência parecia não escapar das acusações de corrupção que sobre ele há muito pesavam. Reconhece quem é este?

Reconheci. Era a mesma pessoa que se lamentava da corrupção em África. O visitante português sacudiu a revista sobre a cabeça como prova de antiga razão. E eu sorri.

Na verdade, um dos maiores desafios dos africanos é fazerem-se respeitar como pessoas individuais e como entidades coletivas. Um passado (será que passou?) de preconceitos assumidos e declarados deu lugar a uma envergonhada arrogância («nós», dizem os europeus, não somos como «eles»). Ontem era a História que apenas tinha residência fora da África. Hoje, quem mora fora é a Ética.
Mia Couto in Revista África21
08
Jan12

[outras palavras] os donos do futuro!

beijo de mulata
(...) O planeta vive um momento tão melindroso que há que entregar os nossos destinos (ou o que deles ainda resta) na mão de especialistas: os economistas, os financeiros, os políticos (que perdem terreno nesta tríade de feiticeiros).

Quem manda, afinal, são sempre outros. Esses outros assinam com o nome genérico de «o mercado». Nunca as televisões deram tanto espaço ao que dizem os donos dos bancos. A fronteira entre o caráter nacional ou internacional destas instituições bancárias esbateu-se mais do que as categorias de «esquerda» e «direita». E vamos percebendo que algo de divindade devem ter esses grandes banqueiros porque estão acima das crises e porque debatem algo que se afastou do domínio dos comuns mortais: o futuro. Já que mandam mais do que os governos, devia haver eleições para os donos dos bancos.

Haja democracia!
Mia Couto in Votar no Ilegível?

Daqui, para quem quiser ler o artigo completo.
07
Dez11

[outras palavras] reconstruir-se...

beijo de mulata


Homem triste à janela...
(Ilha de Moçambique, Nampula)
Foto da net. Mais uma vez lamento mas não tenho o link...


Demoro-me no outro lado de mim
porque me atrai
esse ser impossível
que sou
esse ser que me nega
... para que seja ainda eu

Porque desejo esse alguém
que me invade e me ocupa
que me usurpou a palavra e o gesto
me fez estrangeiro do meu corpo
e me deixou mudo, contemplando-me.

Lanço-me na procura da minha pedra
no infindável trabalho
de me reconstruir
recolhendo os sinais do meu desaparecimento
percorrendo o revés da viagem
para regressar a um lugar inabitável.

Todas as vezes que me venci
não me separei do meu sonho derrotado
e, assim, me fiz nuvem
reparti-me em infinitas gotas
para que fosse bebido, vertido, transpirado
e voltasse de novo a ser céu
transparência de azul, harmonia perfeita
e poder regressar ao lugar interior
para me deitar, de novo,
no sangue que me iniciou.

Mia Couto

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