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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

08
Set14

[outras palavras] breve história de um desnutrido

beijo de mulata
Mais uma crónica da minha amiga Maria, voluntária pela minha ONG no Niassa, a província mais longínqua e abandonada de Moçambique. Tudo quanto ela escreve me faz vir à mente sons e cheiros longínquos. E só não me faz chorar porque agora tenho várias razões fortes e lindas para permanecer aqui e não fugir mais uma vez para essa terra miraculosa e cheia de vida!

 
O Bento, o menino protagonista desta história...
Mitande, Niassa


"Recordo a primeira vez que ouvi o Bento. Era de manhãzinha, aproximava-me da maternidade para iniciar mais um dia de trabalho quando ouvi um choro demasiado alto para ser o primeiro grito de um ser humano, demasiado sofrido também.
Não me enganei. Tratava-se de uma criança, dos seus 18 meses, que encarnava o dito popular “deve à pele a obrigação de lhe segurar os ossos”. A avó, sua cuidadora, a acrescentar a um discurso nada coerente, sofria de disfemia [gaguez], o que tornava o cenário no mínimo bizarro. Conseguimos convencê-la com muito custo que era mais importante internar a criança no Centro Nutricional do que afastar os macacos que teimavam em roubar-lhe a maçaroca: a sua principal preocupação naquele momento.

O Bento, que tivera a (in)felicidade de ter uma irmãzinha, agora de 5 meses, que lhe tirara cedo de mais o leite e o amor materno, surpreendeu logo nos primeiros dias de internamento por aliar uma teimosia deliciosa a uma inteligência incomum. Sabia perfeitamente qual era a colher em que estavam os medicamentos e não ingeria nada que a avó não colocasse primeiro na boca. O medo que demonstrava antes de provar qualquer alimento levou-me a suspeitar de longos tratamentos tradicionais impalatáveis. Exigia o seu espaço de mais de um metro e meio de raio, impenetrável para alguém que não fosse a avó, espaço este que consegui aos poucos diminuir seguindo à letra os conselhos que a raposa ensinou ao Principezinho na fantástica obra de Saint Exupéry: “É preciso ter muita paciência. Primeiro, sentas--te um bocadinho afastado de mim, assim, na [esteira]. Eu olho para ti pelo canto do olho e tu não me dizes nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas, de dia para dia, podes sentar-te cada vez mais perto….”

Cada dia me sentei mais perto e ao final de um mês tinha-o cativado. Bastava alguém dizer “a Fátima vem lá” para ele colocar um sorriso de orelha a orelha e espreitar… é certo que não fui só eu que o cativei, mas sobretudo as papas deliciosas com sabor a amendoim que lhe preparava.

 Hoje, após 10 semanas de tratamento, teve alta… saiu já ao entardecer, às costas da mãe. No lusco-fusco de um anoitecer colorido, dava gargalhadas ruidosas, brincando ao txipi-txipi (esconde-esconde) na capulana da mãe.

 O Bento foi, mas o trabalho continua, e agora devo dar toda a atenção à Vitória, uma bebé adorável cuja cara desnutrida se resume a uns grandes olhos negros e um sorriso desdentado de orelha a orelha, com peso aos 8 meses inferior ao meu peso de nascimento, consequência de falta de produção de leite materno tardiamente identificada. Há crianças que não podiam ter nomes mais adequados…
Em meu nome, por me permitirem ser agente ativa nestes milagres diários, em nome do Bento, da Vitória e de todas as “Vitórias” de África que sobrevivem graças às ajudas generosas dos benfeitores da APARF, deixo uma mensagem de sinceros agradecimentos e termino parafraseando Raoul Follereau “não sabe o bem que faz quem faz o bem.”

Obrigada, eu, Maria, por me trazeres, a cada crónica, mais um pouco do cheiro de África!
21
Jun13

[outras palavras] febre... pois...

beijo de mulata


Mitande, Niassa

A minha amiga Maria está desde Janeiro deste ano em Mitande, no Niassa (no norte de Moçambique), em missão de voluntariado através da ONG de que orgulhosamente faço parte... É enfermeira, tem um espírito prático e aventureiro como poucas pessoas têm e escreve deliciosamente! A propósito do post anterior sobre o conceito de febre na Guiné-Bissau, lembrei-me deste post dela, no Querida Lamparina:

No outro dia assisti à seguinte consulta de um jovem estudante no Centro de Saúde:
- Preciso de medicamento para malária.
- Como sabes que tens malária?
- Sinto uma malária muito forte.
- Mas o que sentes?
- Dói-me o corpo todo.
- E tens tido frio? [ter frio = febre]
- Não, só tenho uma malária que me faz doer o corpo todo. [e, baixinho, acrescenta] e comichão.
- Comichão onde?
- Aqui - diz rapidamente, sem apontar para sitio nenhum -, preciso de medicamento para a malária. Tenho malária muito grande.
- Comichão onde, mesmo?
- Aqui.

[Na realidade o que o moço tinha era uma infeção sexualmente transmissível...]
Para evitar estas coisas de culpar a Malária de todos os males, resolvi dar uma “aula” às minhas meninas acerca de febre.
- Sabem o que e isto?
- Um termómetro.
- E para que serve?
- Para saber se pessoa está doente. Por debaixo do braço, esperar e depois ler se está muito doente ou pouco doente.

Lá expliquei o que é um termómetro e o conceito de temperatura e de febre. Esforcei-me por deixar bem claro que febre não significa malária necessariamente: afinal era esse o meu objectivo com estas explicações todas. Sugeri que experimentassem colocar o termómetro, a mais pequena não quis, tinha medo que se descobrisse alguma doença, mas a mais velha, mais corajosa, colocou o tal aparelho na axila. “Tem 36,5ºC. Não está doente!”
- Então vamos ver na B.
- Tenho 39,2ºC...
- O que significa?
- Tem malária!
[Definitivamente não sou boa professora...]
16
Jan13

[welcome to mozambique] os feiticeiros de tete

beijo de mulata
 
Ritual de Feitiçaria.
(África do Sul, foto daqui)

Vem de muito longe esta notícia partilhada pelo Professor. Deliciosa para mim! Mas sei bem que fica distante demais esta África profunda, de curandeiros, feiticeiros e médicos tradicionais. É quase inacessível à compreensão dos europeus não só o significado daquela pequena trouxa que se despenhou num quintal como também o tempo de antena absurdo dedicado à cobertura de uma notícia deste calibre, sem qualquer perspetiva crítica ou orientação etnográfica para o leitor. Os comentários são ilustrativos de que isto se passou mesmo em outro ponto do planeta...

Mas se alguém se interessar pelos fenómenos antropológicos de Moçambique, siga os links do Prof. Paulo Granjo (Antropocoiso para os amigos).
08
Jun12

[as melhores do serviço de urgência] vómitos persistentes

beijo de mulata
A propósito do post anterior, em que se fala da minha experiência de encontro imediato com a língua de Camões em momentos de estômago revolto, lembrei-me de outro encontro aqui há atrasado, desta feita com uma entidade nosológica da nossa cultura... Uma doença em que os meninos também "gomitam" e não comem de maneira nenhuma.

Ora, estava eu no serviço de urgência, quando chamei uma menina de 15 meses com um ar de quem tinha estado a chorar desesperadamente pouco tempo antes e a deitar pus e sangue dos dois ouvidos. Estava relativamente calma, mas os pais, jovens e cuidadosos, vinham absolutamente transtornados. Que a filha há vários dias que não comia, tinha náuseas quando lhe ofereciam comida, vomitava se a forçassem a comer, não dormia e passava as noites a chorar.

E mais alguma coisa que tivessem notado na menina?, perguntava eu. Que não, que mais nada, mas que esta tarde tinha tido uma crise de choro inconsolável e depois começara a sangrar dos ouvidos. Que tinham era de ir à bruxa, desabafava a mãe...

E eu lá ia respondendo, calma, então, que não era caso para isso, que havia doenças muito piores...

Pedi para despirem a menina. Olharam um para o outro, meio comprometidos, meio cúmplices, como quem se pergunta: "E agora, como é que vamos sair desta?" A mãe, envergonhada, lá começou literalmente a descalçar a bota... Por dentro da roupa, a menina tinha uma fralda enrolada na cintura, bem presa por um alfinete-de-ama que me custou a desapertar. "Mãe, porque é que lhe pôs esta fralda tão apertada? Olhe que isto não faz bem." E eis que, por dentro da fralda, me deparo com uma couve nauseabunda e cheia de gordura de azeite e óleo a toda a volta da barriga. Mas o que era aquilo, senhores, valesse-me São Gregório?!

 - Sabe, doutora, nós estávamos preocupados porque ela não comia e só vomitava e a minha sogra não parava de nos moer o juízo a dizer que o que a menina tinha era o "bucho virado", que é uma doença das crianças, a doutora já ouviu falar?
- Ah, e então?
- Então levámo-la a uma senhora em Caneças para lhe fazer umas rezas e "desvirar o bucho" com azeite na barriga e no fim ela enrolou-lhe esta couve "para o bucho não fugir". Mas a reza deve ter corrido mal, porque a menina agora começou a sangrar dos ouvidos.
- Está bem, está bem, vamos lá ver o que tem a menina. Mas olhe, o mais provável é que a menina não tivesse o "bucho virado", o que deve ter acontecido é que a menina já estava com uma infecção nos ouvidos há mais dias e por isso é que chorava tanto, vomitava e não queria comer.
Os pais entreolharam-se, genuinamente aliviados, como se tivessem visto Deus!

Afinal não é só em Moçambique que existem doenças tradicionais!
06
Mai12

[iapala] a semântica das doenças...

beijo de mulata
(continuando...)

A meio da tarde, o avô entrou novamente na enfermaria. Pediu novamente a palavra e sentou-se.

– Sim, papá?
– Vai continuar a dar “choro” à criança?
– Sim, claro. Até ele ficar melhor.
Isshhh… – abanava a cabeça em desaprovação.
– O que foi, papá?
Isshhh… criança sofre – lamentava-se tristemente.
– Papá, o seu neto é muito bonito. E tem muita vontade de viver! Ele está a lutar muito para continuar vivo no meio desta doença. Não há outra maneira de tratar o menino a não ser com soro!
– Sim, irmã. Mas criança sofre com “choro”!
– O soro é muito importante. Ele está a perder muitos líquidos, temos de lhe dar a mesma quantidade que está a perder – eu tentava explicar o melhor que conseguia. Pausadamente. Procurando palavras simples. Mas será que isto não é intuitivo? Será que não se consegue perceber estes conceitos sem se ter estudado Fisiologia?
– Mas criança sofre… Não tem outro tratamento? Quinino?
– Não, quinino é para a malária. Menino tem diarreia.
– Mas não tem quinino de diarreia?
– Não, papá. Remédio de diarreia é soro mesmo.
Isshh… criança sofre…
– Sim, está a sofrer, é verdade, mas vai morrer se não lhe dermos soro.
– Irmã, mas irmã não vê que quando lhe dá “choro”, a criança sofre e tem mais diarreia?
– Como?!

Foi então que me ocorreu uma ideia. Absolutamente improvável, mas plausível. Pouco tempo antes, ainda em Lisboa, tinha lido uma notícia no jornal que relatava que vários voluntários da Cruz Vermelha tinham sido mortos numa aldeia no norte de Moçambique, acusados de propagar a cólera quando estavam a distribuir cloro pela população para desinfetar a água. Um sociólogo, chamado a comentar o assunto, falava da importância das crenças e da linguagem. Ele aconselhava as pessoas a falar em lixívia porque, segundo a sua opinião, o que motivara aqueles crimes tinha sido em parte a confusão fonética entre “cólera” e “cloro”. A notícia parecera-me absurda, mas enfim… tudo era possível… E agora o avô dizia insistentemente a palavra “choro” e não “soro”… seria possível? Resolvi fazer a experiência.

– Mas papá, isto é “soro”, não é “choro”! Isto é medicamento. É remédio.

Pareceu surpreendido.
Af’nal? Soro é o quê?
– É remédio para a diarreia. Remédio líquido.
– Ah… mas menino chora quando toma. E tem mais diarreia.
– Mas diarreia não vai parar se ele deixar de beber, não é o soro que lhe está a provocar a diarreia. E ele chora porque quer mais! Ora pergunte-lhe se quer esta água.

Arrisquei demasiado. Deixar assim a decisão de um tratamento nas mãos de uma criança de dois anos... Por sorte, ele respondeu que sim à pergunta. A face do ancião iluminou-se. De repente tinha compreendido tudo, e o que eu dizia fazia sentido. Eu também finalmente compreendia um pouco melhor a atitude da mãe. Abracei-a. Pobre mamã… Ela tinha-me visto fazer mal ao seu menino durante horas seguidas e chorara em silêncio a dor que era assistir, impotente, ao menino a sofrer às minhas mãos… Pedi ao avô para lhe explicar o que eu dissera, mas fez-se desentendido. Voltou para o pátio e vi-o falar com os restantes homens da família. Aquilo era um assunto “importante”, era preciso analisar a questão e deliberar em conformidade. Era um assunto de homens! As mulheres só tinham de cuidar das crianças e do resto da família.

 (continua...)
22
Abr12

[medicina tradicional] são tomé e fé em deus

beijo de mulata


(Espaço CACAU, Cidade de São Tomé)

Em São Tomé, num espaço muito respeitável, com exposição de arte africana e restauração de qualidade, vende-se licor de limão anunciando propriedades medicinais, para "tratamento da gripe e tosse". O licor de limão "Levanta Maria" adiciona até uma frase que lhe dá credibilidade farmacológica: "tem vitamina C"! Ninguém duvidará, pois, de que é um medicamento possivelmente eficaz e razoavelmente inócuo...

A seu lado, um segundo medicamento de composição não especificada, 15 vezes mais caro, anuncia-se próprio para "tratamento da SIDA, quistos do útero, cancros e demais moléstias", doenças que, como é de senso comum, são inegavelmente aparentadas e com uma fisiopatologia comum. Sobretudo as "demais moléstias", que como sabemos, são uma variante da SIDA e dos cancros, mas em bom...

Tem apenas um senão... é um medicamento difícil de tomar até ao fim, porque durante o período de tratamento não se pode comer carne, peixe, ovos, leite ou gorduras, sob pena de não funcionar. Mas, diz a empregada do estabelecimento, se se conseguir chegar ao fim do tratamento vivo, tem casos em que funciona...
01
Fev12

[iapala] de volta ao hospital...

beijo de mulata
(continuando, já que insistem...)
– Mas as pessoas não têm mais nadaque fazer? Aceitam ir a todas as cerimónias? Isso acontece muitas vezes?
– Para aí uma vez por ano paracada menina…
– Bem, com estas famílias grandesas pessoas não devem fazer mais nada! Se morre alguém são três dias, sealguém está doente podem ser semanas no hospital, se uma menina acaba onamorico, são mais dois dias…
– Sim, mas isto é geralmente aofim de semana. Não interfere muitocom a vida das pessoas. Pior é mesmo quando têm de ir para o hospital longe decasa. Isso é que desloca a família toda muitos dias e não conseguem mesmotrabalhar nada nessa altura… Chegam a perder as colheitas todas por causadisso, infelizmente…
– Por isso mesmo, deviam trabalharsempre que fosse possível.
– Mas eles trabalham. As pessoasaqui são trabalhadoras. Mas pensa assim: a cerimónia do “muru tokotokho” é como se fosse um pretexto para reunir a famíliapor causa de alguém. Nós também fazemos isso. Nos aniversários, por exemplo. Ébonito. Faz bem. Dá uma sensação de união, uma noção de que se é importante… Muita gente me critica por mandar as meninas fazercerimónia a casa, mas eu acho importante que elas tenham o apoio da família.
– Tem razão, realmente… Mas deveser difícil lidar com tudo isto.
– Às vezes é difícil, sim, amiga…Todos temos a nossa cruz e eu tenho a minha, que é ajudar estas meninas… Mas é preciso ter muita fé e acreditar muito que vai tudo correr bem. Écomo o teu menino de hoje.
– Ah, ele só se houver um milagre…Ele está muito mal, Irmã. Nem sei se fizemos bem em dar esperanças à família.Por falar nisso, já passou uma hora, tenho de lá ir outra vez ver se pelo menosainda está vivo.
– Está de certeza, não se ouviramgritos…

Nem de propósito, naquele momentoouviu-se um alarido enorme vindo do hospital…
– Ai… foi ele, de certeza, Irmã!
– Não… deixa ouvir… Ah, foi umamenina que nasceu! Não foi o teu menino. Os gritos são diferentes…
– Bem, tenho de lá ir…

Voltei para o hospital. O meninocontinuava deitado no berço, sem se mover. A respiração estava mais tranquila,o coração batia mais certo, mas continuava em coma. Olhei melhor para ele... Alguma coisa na face se tinha alterado... Belisquei-o para ver sepelo menos reagia à dor e fiquei horrorizada! Em resposta à dor ele tinhamexido levemente apenas um dos braços… Tinha metade do corpo paralisada! As lágrimas começarama correr-me. Tinha sofrido danos cerebrais graves…

(continua...)
30
Jan12

[tabus e tradições] a cerimónia da gazela

beijo de mulata

Instante no Kruger Park
(África do Sul, foto da R.)


– Mas... e no meio disso tudo não há ninguém que fale claramente do que aconteceu, não há ninguém que clarifique os sentimentos ou que explique como é que se deve fazer para a próxima?
– Não, ninguém fala. Só às vezes os homens quando bebem.

– Mas não há ninguém com ética nesta terra? Ninguém que dê o exemplo?
– Há, claro! Muita gente. O que eu acho é que é muito injusto para as pessoas. Sobretudo para os jovens e para os adolescentes. Eles têm uma consciência e sofrem como toda a gente. Só que têm de aprender às próprias custas que sofrem menos se não fizerem certas coisas. Mesmo que essas acções não sejam condenadas pela sociedade. Ou mesmo que ninguém saiba.

– Pois!
– É isso que eu tento explicar às meninas todos os dias. Que podem evitar o “muru tokotokho”, ou os remorsos, como tu dizes, e vão sofrer muito menos se não brincarem com os afectos, se não se envolverem com alguém de quem não gostam, se não prejudicarem os outros, se não roubarem…

– E elas entendem isso?
– Acho que só entendem quando passam por isso.

– E o que é que faz quando elas apanham a tal “cabeça grande”?
– Eu mando-as fazer cerimónia, claro, senão não passa nunca mais…

– Mas isso é reforçar esse comportamento e essa tradição. Não se consegue mesmo desmontar estas crenças?
– Eu nem tento. Elas vão um fim de semana a casa fazer a cerimónia, têm colinho da família e vêm geralmente mais bem-dispostas. Mas depois falo muito com elas, tento fazer uma reflexão sobre o que fizeram e o que sentem.

– Mas elas dizem-lhe o que foi?
– Não, claro! Mas eu geralmente sei. Ou foi um namorado que as deixou, ou foi alguém de família que faleceu e com quem elas tinham discutido sem fazer as pazes, ou foi alguma coisa grave com as amigas… enfim… geralmente não é muito difícil de perceber.

– Pois, os adolescentes são iguais em todo o lado.
– Sim, só que acho que estes são mais frágeis… Têm de aprender muita coisa às suas próprias custas. E é preciso ser muito inteligente para perceber o que se passa e ter crítica sobre a sociedade e a cultura. Não é fácil ter crítica quando não se pode falar com medo do que possa acontecer…

– Pois… não deve ser fácil. Mas nessas cerimónias vem mesmo a família toda?
– Vêm os que podem. Mas sim, geralmente vêm todos.

– E deixam tudo o que têm a fazer porque a menina teve um namorico, está envergonhada e portanto é preciso ir matar uma gazela?
– Bem, se pões as coisas dessa forma…

(continua...)
23
Jan12

[iapala] malária... a malária é difícil

beijo de mulata

No pátio do hospital, com o menino a dormir...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Ia voltar para casa mas, já na rua, assaltou-me um pressentimento e tive de dar meia volta. Voltei para a cabeceira do menino. De repente, apesar do cansaço (ou por causa dele, não sei bem…), fiquei insegura. E se ele afinal não estivesse assim tão bem? E se convulsivasse novamente sem ninguém dar conta? E se de repente a malária resolvesse fazer das suas e entrasse em coma? Ele ainda estava a dormir, não tinha sequer aberto os olhos e a febre ainda não tinha cedido completamente… Era melhor ficar por ali.

A malária assusta-me! Cada vez mais… É imprevisível. Nunca consigo ter a certeza de que vai mesmo tudo correr bem. Não tenho análises nem outros exames à disposição, só tenho os meus olhos e a minha intuição, mas esta semana fiquei ainda mais insegura e quase deixei de confiar nela… Foi por causa de uma criança de 15 meses com malária que chegou ao fim da tarde, aqui há uns cinco dias. O menino, quase bebé, vinha completamente inconsciente.

Segundo a mãe, mais uma vez, a doença tinha começado nesse dia e não tinha ido procurar tratamento tradicional. Mas nunca sei se é verdade ou não… e geralmente não é verdade. O problema é que muitas vezes, quando a situação é grave, é difícil perceber se o que se passa com a criança é resultado da doença, do tratamento tradicional ou das duas coisas… E alguns medicamentos que os curandeiros usam são terrivelmente tóxicos! Tudo se encontra na natureza: alcalóides, pesticidas, antibióticos, antiparasitários, medicamentos contra o cancro*...

E o bebé estava ali, em coma profundo e gelado. Não estava desidratado, mas tinha a respiração acelerada das doenças graves. E o coração não estava a bater como devia, estava lento…

– Teve febre hoje, mamã?
– Nada, não teve.
– O corpo ficou quente? – tenho sempre de perguntar a mesma coisa de várias maneiras, que há palavras que as pessoas não conhecem ou não atribuem o mesmo significado.
– Sim, muito quente, só arrefeceu agora.
– E quando é que deixou de estar acordado?
– Há bocado…
– Nada, mamã! A criança está assim há muito tempo! Olhe como está a respirar. Pode dizer, eu não fico zangada… quando começou a doença?
– De manhã, Irmã…
– E teve convulsões?
– Sim. Duas vezes.

Das duas uma, ou tinha malária cerebral ou uma infecção generalizada. Mas o exame neurológico mostrava-me que o cérebro também estava em sofrimento. O mais provável era que fosse malária cerebral. Mas à cautela comecei o tratamento para as duas coisas enquanto esperava o resultado do teste da malária e tentava estabilizar a criança. Mas, ao fim de algumas horas, o menino tinha piorado. A respiração estava mais lenta, o coração também mais lento, continuava em coma. Levantei-lhe novamente as pálpebras: as pupilas estavam diferentes… Estava a acontecer o que eu temia: o cérebro tinha inchado de tal maneira que estava comprimido contra as paredes do crânio. Perguntei ao enfermeiro se havia os medicamentos de que eu precisava.

– Não, Doutora, não tem.
– Mas não tem no hospital todo? Ou estão no armazém?

Ao que o enfermeiro respondia que não sabia, mas que achava que existiam no armazém. O problema é que quem tinha a chave era o Director, que estava em Nampula.
– Mas não há outra chave? – indignei-me.
– Nada, Doutora, ele não deixa a chave com mais ninguém, senão os funcionários roubam tudo.
– Valha-me Deus!

Mandei chamar a Irmã Lurdes… Estava desorientada. Capaz até de arrombar o armazém se me tivessem dado a certeza de que o medicamento existia mesmo por detrás daquela porta!

– Posso ir ao hospital de Ribáuè – ofereceu-se –, é um hospital maior, pode ser que tenham os medicamentos. Se eu pedir dão-mos de certeza, a mim nunca me negaram nada. Eles conhecem-me bem. Sabem que é para salvar uma vida…

Mas provavelmente não havia sequer tempo de ir ao hospital de Ribáuè pedir a medicação e voltar. Só se o levássemos connosco e ele fizesse a medicação lá.

– Isso é mais complicado… A família não deve querer, eles sabem que a situação é grave**.
– Temos de os convencer! Mamã, percebeu o que estamos a dizer? – perguntei.
– Não, Irmã.

(continua...)

* Aliás, o nome deste blogue vem precisamente de uma situação em que inesperadamente descobri que do beijo-de-mulata de extrai um medicamento contra o cancro...
** Já em tempos vos expliquei isto... para os Macuas, se alguém morrer longe de casa, o seu espírito nunca vai encontrar o caminho de volta e permanece para sempre retido "do lado de cá", assombrando e trazendo desgraças os vivos.
21
Jan12

[uma noite, em iapala] os meandros da malária...

beijo de mulata

Mamã com menino...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Já no hospital, em dois minutos, a história clínica ficou colhida e iniciou-se a terapêutica da malária cerebral. Diagnósticos definitivos só no fim, que nestes casos não há tempo a perder à espera de análises laboratoriais. Nem o Sr. Cachimo, o técnico do laboratório se encontrava no hospital àquela hora...

Dizem-me que a doença começou hoje e que não foram ao curandeiro. Neste caso resolvi acreditar porque a doença parece ter começado agora mesmo. A malária cerebral costuma ter um início violento e provavelmente vieram ao hospital porque era de noite e não iam acordar o curandeiro àquela hora. [Sim, que curandeiro é criatura imponderável, poderosa, com contactos privilegiados com os mortos e legitimidade para influir no destino dos vivos. Quem, no seu perfeito juízo, se arriscaria a ir perturbar o sono de semelhante autoridade?] Por isso achei que era razoavelmente seguro dar-lhe o dobro da dose de quinino na primeira toma, como está preconizado na malária grave. Quase nunca o faço porque sei que os curandeiros usam precisamente o quinino para tratar a malária [o quinino extrai-se da casca de uma árvore] e duvido que consigam controlar as doses que preparam. E, portanto, se eu administrar uma dose mais “generosa” isso pode levar a uma intoxicação fatal! Ou seja, mais uma vez se confirmaria a crença do povo de que o “hospital é sítio para morrer”, onde apenas se deve ir em último caso…

Mas já descobri um truque para perceber se tomaram esses medicamentos ou não, desde que não venham inconscientes: o quinino provoca uma surdez transitória, portanto tudo quanto tenho de fazer é perguntar aos pais se a criança costuma ouvir bem e depois, de repente, bater palmas com muita força para ver se a criança se assusta. Se não se assustar nem olhar é porque tomou quinino e tenho de ter cuidado com a dose que lhe dou...

O menino está sonolento por causa da medicação que eu lhe dei, mas o exame neurológico não está muito alterado. Este caso também há de correr bem! Agora não há mais nada a fazer a não ser esperar que a medicação actue e rezar para que o menino reaja favoravelmente...

Só depois de termos a veia canalizada e o tratamento a correr é que arranjamos um colchão para instalar o menino. Apesar de estarmos na estação seca, em que a taxa de hospitalização é mínima, as camas estão todas ocupadas e temos de o acomodar no corredor... E então na estação das chuvas as condições são ainda mais precárias: o número de doentes hospitalizados é tal que têm de dormir no parrô, um abrigo amplo, com telhado mas sem parede completa até ao tecto, cheio de correntes de ar e onde a chuva entra livremente… Nem quero imaginar o que é este hospital durante os surtos de cólera…

Demoro-me um pouco a escrever no processo e só quando saio do gabinete me apercebo de que um homem ainda jovem chora baixinho, ajoelhado à cabeceira do menino.

– O senhor é o pai?
– Não, esse menino é meu sobrinho.
Talvez compreenda Português, pensei.
– O menino não está em coma, está só a dormir por causa do medicamento que nós lhe demos para parar as convulsões.

Não deu sinais de me ter compreendido. Fui chamar o enfermeiro, que traduziu a minha explicação para Macua. O tio afinal tinha-me compreendido, mas não acreditava que o menino pudesse sobreviver. Expliquei-lhe que ainda era muito cedo para saber o desenlace, mas que era muito possível que o menino ficasse bem. Parou de chorar.

– Obrigado.
Nem por um momento deixou de fitar o menino...

(continua...)

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