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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

21
Jun13

[outras palavras] febre... pois...

beijo de mulata


Mitande, Niassa

A minha amiga Maria está desde Janeiro deste ano em Mitande, no Niassa (no norte de Moçambique), em missão de voluntariado através da ONG de que orgulhosamente faço parte... É enfermeira, tem um espírito prático e aventureiro como poucas pessoas têm e escreve deliciosamente! A propósito do post anterior sobre o conceito de febre na Guiné-Bissau, lembrei-me deste post dela, no Querida Lamparina:

No outro dia assisti à seguinte consulta de um jovem estudante no Centro de Saúde:
- Preciso de medicamento para malária.
- Como sabes que tens malária?
- Sinto uma malária muito forte.
- Mas o que sentes?
- Dói-me o corpo todo.
- E tens tido frio? [ter frio = febre]
- Não, só tenho uma malária que me faz doer o corpo todo. [e, baixinho, acrescenta] e comichão.
- Comichão onde?
- Aqui - diz rapidamente, sem apontar para sitio nenhum -, preciso de medicamento para a malária. Tenho malária muito grande.
- Comichão onde, mesmo?
- Aqui.

[Na realidade o que o moço tinha era uma infeção sexualmente transmissível...]
Para evitar estas coisas de culpar a Malária de todos os males, resolvi dar uma “aula” às minhas meninas acerca de febre.
- Sabem o que e isto?
- Um termómetro.
- E para que serve?
- Para saber se pessoa está doente. Por debaixo do braço, esperar e depois ler se está muito doente ou pouco doente.

Lá expliquei o que é um termómetro e o conceito de temperatura e de febre. Esforcei-me por deixar bem claro que febre não significa malária necessariamente: afinal era esse o meu objectivo com estas explicações todas. Sugeri que experimentassem colocar o termómetro, a mais pequena não quis, tinha medo que se descobrisse alguma doença, mas a mais velha, mais corajosa, colocou o tal aparelho na axila. “Tem 36,5ºC. Não está doente!”
- Então vamos ver na B.
- Tenho 39,2ºC...
- O que significa?
- Tem malária!
[Definitivamente não sou boa professora...]
06
Fev12

[iapala] um quase-milagre, ou o epílogo, pronto

beijo de mulata
(continuando a história que começou aqui...)

Assisti à transfusão ao fim da tarde, com o sangue ainda quente, acabado de colher, que não havia tempo a perder em contemplações. Já nem sabia por que estava a fazer aquilo. Era só por descargo de consciência, para não me sentir culpada depois, porque o menino não tinha quase hipótese nenhuma! Em coma profundo há mais de 48 horas, com uma anemia gravíssima e insuficiência cardíaca. Já tinha estado com hipertensão intracraniana tão grave que tinha quase morrido, não fosse uma viagem intempestiva ao hospital mais próximo para fazer uma medicação de emergência. Tínhamos decidido fazer transfusão de manhã e já eram cinco da tarde quando a começámos... Tudo a correr mal, como sempre! O Sr. Cachimo brincava com os pais:

- É sangui di branca! Branca bem alimentada. É sangui forte! Minino vai ficar bom.
- Não diga isso, Sr. Cachimo, o menino está muito doente, não devemos dar esperanças aos pais.
  
E posso poupar-vos aos pormenoresdo que se passou em seguida. Posso dizer-vos que continuámos o tratamento e, oupela medicação, ou porque o menino ainda tinha a fontanela* aberta e portanto o crânio suportou todas as mudanças de volume do cérebro, ou por milagre… por mil razões que desconheço, na manhã seguinte, contratodas as expectativas, contra as minhas convicções mais profundas, quando o fui visitar não o encontrei na cama. Estava ao colo da mãe no pátio, em silêncio, a mamar olhando para ela... Não tinha metade do corpo paralisada, como eu temia. De facto, não aparentava sequelas nenhumas. Teve alta dias depois.

Eu não queria acreditar! Mais uma vez mereconciliava com o povo macua e com os seus valores de família e da vida. E admiravaa calma e a sabedoria da Irmã Lurdes… Podem dizer-me que os doentes não lêem oslivros. Eu também sei disso.

Mas só voltei a ver uma situação parecida uma vez no Gilé, na Zambézia. Um menino que também esteve em coma com malária cerebral. Depois de ter começado o tratamento e de o ter estabilizado constatei, horrorizada, que quando o estimulava, ele reagia em descerebração (um dos sinais mais graves de lesão cerebral e com prognóstico quase invariavelmente fatal; quando os doentes permanecem vivos ficam sempre com sequelas). Mais uma vez me arrependi em silêncio de o ter estabilizado e percebi que era fútil tentar medidas heróicas para o tratar. Mas, dias depois, o menino acordou enquanto eu o estava a observar, olhou para a mãe, sorriu e lançou as mãos ao meu estetoscópio vermelho, que balançava em frente aos seus olhos e começou a brincar com ele. Ainda estava um pouco lento… Mas dias depois brincava como uma criança normal! Sinceramente, meus amigos, não conheçonenhum médico que tenha visto uma criança recuperar sem sequelas depois de terestado em descerebração. Já perguntei a muita gente que trabalha em cuidados intensivos e nunca ninguém viu um fenómeno destes. Não estou a inventar. Tenho testemunhas!
  
Mas não gosto de pensar que foi um milagre. Perturba-me ter de recorrer a uma explicação não científica para compreender um fenómeno destes. Por isso peço-vos, meus amigos, para eu não estar sozinha neste mato sem saber o que pensar, respondam-me: O que acham disto? Alguma vez se arrependeram amargamente de ter reanimado alguém e depois tiveram uma surpresa deste tipo?

Agradecida...

* Fontanela – Nome técnico dado à separação entre os ossosfrontal e parietais na abóbada craniana, designado popularmente por“moleirinha”.
05
Fev12

[iapala] armar-se em deus...

beijo de mulata
(continuando  a história que começou aqui...)
– Não me parece que estes pais oqueiram levar para casa. Eles devem ser pessoas esclarecidas. Nem tempo tivepara perguntar, mas o pai até me parece que é professor numa das aldeias ondenós vamos vacinar. Parece-me que o conheço. Olha que até foram a Ribáuè com elequase a morrer. Arriscaram-se a muito. Ele podia ter morrido longe de casa!
– Mas acha que os pais o vãoquerer depois nestas condições? Acha que vão cuidar dele com carinho, não o vãomaltratar ou negligenciar? Se ficar consciente vai sofrer horrores…
– Ainda não conheces bem estacultura. Podes perguntar amanhã aos pais o que querem fazer. Se estás com essasdúvidas podes sempre dar-lhes a escolher. Mas eu já sei a resposta.
– Qual é?
– Já tive esta conversa muitasvezes com a Irmã Sarala e com os pais das crianças. E os pais querem sempre osfilhos. Seja em que circunstâncias for. Eles dizem “os filhos são a nossariqueza.” E só são ricos se tiverem muitos filhos, mesmo que não lhes consigamdar muitas coisas materiais. Os macuas adoram crianças. É o que mais me encantaneste povo. 

Na manhã seguinte o menino estavamuito pior. Os lábios quase sem cor, o coração a bater a galope, num esforçoenorme para bombear aquele sangue quase aguado, que claramente tinha sido devastadopela malária, a respiração agora acelerada, num gemido contínuo… A paralisia demetade do corpo não era tão evidente. Provavelmente pela simples razão de queele estava agora em coma mais profundo. Eu continuava terrivelmentedesconfortável. Mas a que propósito é que eu me tinha “armado em Deus” numasituação mais do que desesperada? Para prolongar o sofrimento da criança e dafamília? Às vezes o melhor que temos mesmo a fazer, o mais sensato, o maishumano é abstermo-nos de medidas heróicas [ou fúteis, melhor dizendo] e tentarapenas confortar os meninos e acompanhar a família…

Mas a resposta dos pais foi a quea Irmã Lurdes tinha previsto. Nem sequer perceberam à primeira o que lhesestávamos a perguntar. Até porque a palavra macua para “estar bem” é a mesmaque significa “estar vivo”. Portanto primeiro perceberam que lhes estávamos aperguntar se queriam levar o filho para casa para morrer ou se queriam que ofilho ficasse melhor no hospital. Os pais olharam-me chocados. Depois optámospor explicar em Português. Aí compreenderam. Mas mesmo explicando que a criançapodia ficar profundamente deficiente nem lhes passava pela cabeça interromper otratamento e levá-lo para casa.

A Irmã Lurdes sorriu-me:
– Pronto, aqui tens as tuasdúvidas esclarecidas.
– Bem, então já que é assim, temosde lhe fazer uma transfusão de sangue. Não temos banco de sangue em Iapala, porisso os senhores têm de ir ter com o Sr. Cachimo com este papel para serem ossenhores a dar-lhe sangue.
– Sim, Irmã…
– E temos de o alimentar, vamoscolocar uma sonda até ao estômago para lhe dar comida.

– Tudo bem, até já. Seprecisares de mais alguma coisa estou no escritório – despediu-se a Irmã Lurdes,alegre.
E depois só para mim: “Eles nãoacreditaram, claro. Eles têm esperança. E eu também tenho. Já vi muitosmilagres acontecerem nesta terra.” 

– Os milagres não são para estas coisas,Irmã, o menino está mesmo muito mal. E há muito tempo. Continuo a achar que omelhor era mesmo deixá-lo em paz…
– Não digas isso.
– Está bem, Irmã, eu não voudesistir.
02
Fev12

[iapala] os dilemas e a minha própria consciência

beijo de mulata
(continuando a história que começou aqui...)

E agora? Mas o que é que eu fui fazer? Para que é que eutinha embarcado naquela loucura de ir a Ribáuè com uma criança tão obviamenteem sofrimento cerebral? Mais valia ter assumido que havia pouco a fazer porela, no estado em que tinha chegado… A mãe começou a chorarquando percebeu a minha reacção. Eu nem tinha disfarçado. Quando sei que não hánada a fazer acho sempre que é melhor demonstrar que também estou triste… Nemsabia o que dizer. Abracei-a, dei um beijo ao bebé e despedi-me. Já todosestavam a dormir àquela hora. Era tarde demais para estar acordar a famíliatoda com aquelas notícias…

A Irmã Lurdes esperava-me em casa.
– Que cara é essa? Não está melhor?
– Não, Irmã…
– Paciência, amiga. Fizemos tudo o que pudemos, tudo oresto está nas mãos de Deus.
– Mas é muito pior do que isso, Irmã. O menino se calharvai sobreviver, mas vai ficar com sequelas muito graves. Se calhar até vaicontinuar em coma até ao fim da vida.
– Bem… resta-nos esperar…
– Nem sei o que fazer…
– Temos de apoiar os pais e consolar a família…
– É que nem sei se vale a pena continuar o tratamentonestas condições. O menino ou vai morrer ou fica com sequelas graves.
– É assim tão grave?
– Provavelmente não vai voltar a ver, a andar, a falar,a ouvir, comunicar. Nada. É grave! Se eu soubesse que isto ia acontecer…
– Que horror… Mas não digas isso, fizemos o que era onosso dever. O menino era um menino saudável antes, era preciso tratá-lo. Nãopodíamos adivinhar.
– Mas agora tenho de lhes dizer. Não é justo dar aospais esperanças e no final entregar-lhes uma criança totalmente dependente esem esperança nenhuma de recuperar.
– Agora não! Não é correcto prever o futuro efazer prognósticos. Temos de ter respeito por esta cultura. Isso é uma intrusãono terreno dos espíritos e dos antepassados. De qualquer forma eles têm sempreesperança até ao fim.
– Mas se eu lhes disser agora, se calhar vão quererlevá-lo para casa e é melhor que termine os dias em casa ao colo da família enão no hospital. E se ficar no hospital se calhar vai sobreviver e ficar comsequelas horríveis.

(continua...)

01
Fev12

[iapala] de volta ao hospital...

beijo de mulata
(continuando, já que insistem...)
– Mas as pessoas não têm mais nadaque fazer? Aceitam ir a todas as cerimónias? Isso acontece muitas vezes?
– Para aí uma vez por ano paracada menina…
– Bem, com estas famílias grandesas pessoas não devem fazer mais nada! Se morre alguém são três dias, sealguém está doente podem ser semanas no hospital, se uma menina acaba onamorico, são mais dois dias…
– Sim, mas isto é geralmente aofim de semana. Não interfere muitocom a vida das pessoas. Pior é mesmo quando têm de ir para o hospital longe decasa. Isso é que desloca a família toda muitos dias e não conseguem mesmotrabalhar nada nessa altura… Chegam a perder as colheitas todas por causadisso, infelizmente…
– Por isso mesmo, deviam trabalharsempre que fosse possível.
– Mas eles trabalham. As pessoasaqui são trabalhadoras. Mas pensa assim: a cerimónia do “muru tokotokho” é como se fosse um pretexto para reunir a famíliapor causa de alguém. Nós também fazemos isso. Nos aniversários, por exemplo. Ébonito. Faz bem. Dá uma sensação de união, uma noção de que se é importante… Muita gente me critica por mandar as meninas fazercerimónia a casa, mas eu acho importante que elas tenham o apoio da família.
– Tem razão, realmente… Mas deveser difícil lidar com tudo isto.
– Às vezes é difícil, sim, amiga…Todos temos a nossa cruz e eu tenho a minha, que é ajudar estas meninas… Mas é preciso ter muita fé e acreditar muito que vai tudo correr bem. Écomo o teu menino de hoje.
– Ah, ele só se houver um milagre…Ele está muito mal, Irmã. Nem sei se fizemos bem em dar esperanças à família.Por falar nisso, já passou uma hora, tenho de lá ir outra vez ver se pelo menosainda está vivo.
– Está de certeza, não se ouviramgritos…

Nem de propósito, naquele momentoouviu-se um alarido enorme vindo do hospital…
– Ai… foi ele, de certeza, Irmã!
– Não… deixa ouvir… Ah, foi umamenina que nasceu! Não foi o teu menino. Os gritos são diferentes…
– Bem, tenho de lá ir…

Voltei para o hospital. O meninocontinuava deitado no berço, sem se mover. A respiração estava mais tranquila,o coração batia mais certo, mas continuava em coma. Olhei melhor para ele... Alguma coisa na face se tinha alterado... Belisquei-o para ver sepelo menos reagia à dor e fiquei horrorizada! Em resposta à dor ele tinhamexido levemente apenas um dos braços… Tinha metade do corpo paralisada! As lágrimas começarama correr-me. Tinha sofrido danos cerebrais graves…

(continua...)
26
Jan12

[não é vergonha roubar] vergonha é roubar e ser apanhado!

beijo de mulata
(continuando...)

Fomos jantar. Eu estava perturbadíssima, mal conseguia falar. Se tivéssemos a chave do armazém não teria sido preciso tomar aquelas medidas heróicas [heróicas ou ridículas?] e tínhamos começado a medicação mais cedo. Podia ser que assim o menino sobrevivesse. Da forma como ele estava agora, era quase certo que estava condenado!

– Tens razão, mas isto está sempre a acontecer. Antes de o Sr. Sousa ir para Nampula eu pedi-lhe a chave do armazém. Já sabia que isto ia suceder. Mas ele disse que não, que não era preciso, que tinha abastecido os armários com os medicamentos essenciais e que não dava a chave a ninguém!
– Os medicamentos essenciais? Nem adrenalina havia… nem havia manitol!

– Pois, mas o que é que queres? A ti perguntou-te alguma coisa? Se sugerias algum medicamento para ficar à disposição?
– Não, claro. Nem sequer me avisou que ia a Nampula.

– É por isso que a Irmã Sarala está exausta. Ela é indiana e pertence a uma família muito importante na Índia. São ministros, directores de grandes empresas, donos de hospitais… Antes de ir de férias até foi uns dias para a praia para ver se recuperava um pouco a disposição e eles não a verem naquele estado. Qualquer dia a família não a deixa regressar…
– Pois… não admira.

– Mas possivelmente não nos deixou a chave porque ele próprio deve ter roubado muitos medicamentos e foi vendê-los a Nampula.
– Credo! O Sr. Sousa?

– Sim, o Sr. Sousa! Ele até é boa pessoa, trabalhador, interessa-se pelos doentes e é muito nosso amigo. Tem-nos ajudado muito. Mas quando rouba, não rouba só um ou dois comprimidos, é logo aos milhares.
– Mas... E não há ninguém que o denuncie?

– Para quê? Ele é do Partido*, portanto está protegido. Quando muito é transferido para outro lado e metem aqui um pior do que ele. Este ao menos interessa-se pelos doentes e trabalha.
– Nem sei o que diga, Irmã! Mas como é que ele é capaz? Ele está a roubar os irmãos dele! Ele sabe que vai haver gente a morrer por falta de medicação! Pode até ser alguém da família dele.

– Pois, mas é mesmo verdade, para eu estar a dizer isto é porque tenho a certeza.
– Eu sei, Irmã. Mas como é que ele é capaz?

– Ah… e não lhe pesa nada na consciência. Para ele é simples: de onde aqueles medicamentos vêm, hão de vir mais. É uma fonte que não seca. Quando ele voltar de Nampula vai estar na altura da entrega da próxima remessa e ninguém vai dar conta de nada.
– Mas como é que a Irmã consegue dizer que ele é boa pessoa e depois dizer que não lhe pesa na consciência roubar medicamentos que fazem tanta falta?

– É uma questão cultural. Os princípios deste povo não são os mesmos que os nossos. Por muito que nos custe, para eles o que é errado não é apropriar-se de uma coisa que não lhes pertence. O que é errado é que outras pessoas se apercebam disso.
– Ou seja, vergonha não é roubar, vergonha é roubar e ser apanhado! O meu pai também teoriza sobre isso: ele diz que é a diferença entre a “Educação Ética” e a “Educação Estética".

* "O Partido" refere-se, obviamente à Frelimo.
 
(continua...)
25
Jan12

[malária] para grandes males, grandes remédios...

beijo de mulata


No hospital de Ribáuè...
(Ribáuè, Nampula)

(continuando...)

Apesar de o menino estar claramente em perigo de vida, a família anuiu e pusemo-nos rapidamente a caminho. A Irmã Lurdes no seu pragmatismo habitual de “para grandes males grandes remédios” e eu com a cólera de quem vê uma desgraça prestes a acontecer por causa de incompetências e falta de planeamento.

Mas era quase de noite e tinha chovido, por isso demorámos muito tempo a chegar. Tempo demais… A criança ia quase morta… E claro, não há milagres. No hospital de Ribáuè os medicamentos também estavam no armazém, que já estava fechado. Foi preciso mandar chamar o farmacêutico a casa, o que só fizeram por especial consideração para com a Irmã Lurdes, o anjo da guarda daquele povo. Todas as pessoas das redondezas tinham pelo menos um familiar que já tinha sido ajudado por ela.

Quanto a mim… estava louca! De raiva, de preocupação e insegura por ter arrastado a Irmã Lurdes e a família toda para aquele devaneio. E suspeitava que o motor daquela atitude desesperada não tinha sido a convicção de que o menino ainda podia sobreviver, mas a fúria contra o director do hospital! Não teria sido melhor deixar o menino em paz, ao colo da família, em vez de estar a forçar toda a gente àquele suplício de solavancos, angústias e frustrações?

Começámos a medicação mesmo in extremis. Por fim, perguntei à família se queriam ficar ou voltar connosco para Iapala. Talvez fosse melhor o menino ficar em repouso e não regressar por aquela estrada horrível, onde o carro escorregava como se estivesse a dançar sobre sabão. Mas eles queriam voltar, claro. Nem lhes tinha passado pela cabeça que havia hipótese de ficar em Ribáuè, de outro modo, provavelmente não se teriam sequer metido no carro…

Tinham-se decidido a vir porque estavam desesperados e nós lhes tínhamos dado uma saída, mas o terror de qualquer família macua é que um ente querido morra longe do local onde estão enterrados os antepassados, e esta família não era excepção. Tinham de voltar. Era preciso estar mais perto de casa se uma desgraça acontecesse, sob pena de a família ficar assombrada para sempre pelo espírito do menino.

Voltámos para Iapala já era noite fechada. Com a medicação, o coração tinha voltado a bater mais rápido e o cérebro já não dava tantos sinais de sofrimento, mas o menino continuava em coma. Estava na hora da segunda dose de quinino. Não havia mais nada a fazer senão esperar…

(continua...)
23
Jan12

[iapala] malária... a malária é difícil

beijo de mulata

No pátio do hospital, com o menino a dormir...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Ia voltar para casa mas, já na rua, assaltou-me um pressentimento e tive de dar meia volta. Voltei para a cabeceira do menino. De repente, apesar do cansaço (ou por causa dele, não sei bem…), fiquei insegura. E se ele afinal não estivesse assim tão bem? E se convulsivasse novamente sem ninguém dar conta? E se de repente a malária resolvesse fazer das suas e entrasse em coma? Ele ainda estava a dormir, não tinha sequer aberto os olhos e a febre ainda não tinha cedido completamente… Era melhor ficar por ali.

A malária assusta-me! Cada vez mais… É imprevisível. Nunca consigo ter a certeza de que vai mesmo tudo correr bem. Não tenho análises nem outros exames à disposição, só tenho os meus olhos e a minha intuição, mas esta semana fiquei ainda mais insegura e quase deixei de confiar nela… Foi por causa de uma criança de 15 meses com malária que chegou ao fim da tarde, aqui há uns cinco dias. O menino, quase bebé, vinha completamente inconsciente.

Segundo a mãe, mais uma vez, a doença tinha começado nesse dia e não tinha ido procurar tratamento tradicional. Mas nunca sei se é verdade ou não… e geralmente não é verdade. O problema é que muitas vezes, quando a situação é grave, é difícil perceber se o que se passa com a criança é resultado da doença, do tratamento tradicional ou das duas coisas… E alguns medicamentos que os curandeiros usam são terrivelmente tóxicos! Tudo se encontra na natureza: alcalóides, pesticidas, antibióticos, antiparasitários, medicamentos contra o cancro*...

E o bebé estava ali, em coma profundo e gelado. Não estava desidratado, mas tinha a respiração acelerada das doenças graves. E o coração não estava a bater como devia, estava lento…

– Teve febre hoje, mamã?
– Nada, não teve.
– O corpo ficou quente? – tenho sempre de perguntar a mesma coisa de várias maneiras, que há palavras que as pessoas não conhecem ou não atribuem o mesmo significado.
– Sim, muito quente, só arrefeceu agora.
– E quando é que deixou de estar acordado?
– Há bocado…
– Nada, mamã! A criança está assim há muito tempo! Olhe como está a respirar. Pode dizer, eu não fico zangada… quando começou a doença?
– De manhã, Irmã…
– E teve convulsões?
– Sim. Duas vezes.

Das duas uma, ou tinha malária cerebral ou uma infecção generalizada. Mas o exame neurológico mostrava-me que o cérebro também estava em sofrimento. O mais provável era que fosse malária cerebral. Mas à cautela comecei o tratamento para as duas coisas enquanto esperava o resultado do teste da malária e tentava estabilizar a criança. Mas, ao fim de algumas horas, o menino tinha piorado. A respiração estava mais lenta, o coração também mais lento, continuava em coma. Levantei-lhe novamente as pálpebras: as pupilas estavam diferentes… Estava a acontecer o que eu temia: o cérebro tinha inchado de tal maneira que estava comprimido contra as paredes do crânio. Perguntei ao enfermeiro se havia os medicamentos de que eu precisava.

– Não, Doutora, não tem.
– Mas não tem no hospital todo? Ou estão no armazém?

Ao que o enfermeiro respondia que não sabia, mas que achava que existiam no armazém. O problema é que quem tinha a chave era o Director, que estava em Nampula.
– Mas não há outra chave? – indignei-me.
– Nada, Doutora, ele não deixa a chave com mais ninguém, senão os funcionários roubam tudo.
– Valha-me Deus!

Mandei chamar a Irmã Lurdes… Estava desorientada. Capaz até de arrombar o armazém se me tivessem dado a certeza de que o medicamento existia mesmo por detrás daquela porta!

– Posso ir ao hospital de Ribáuè – ofereceu-se –, é um hospital maior, pode ser que tenham os medicamentos. Se eu pedir dão-mos de certeza, a mim nunca me negaram nada. Eles conhecem-me bem. Sabem que é para salvar uma vida…

Mas provavelmente não havia sequer tempo de ir ao hospital de Ribáuè pedir a medicação e voltar. Só se o levássemos connosco e ele fizesse a medicação lá.

– Isso é mais complicado… A família não deve querer, eles sabem que a situação é grave**.
– Temos de os convencer! Mamã, percebeu o que estamos a dizer? – perguntei.
– Não, Irmã.

(continua...)

* Aliás, o nome deste blogue vem precisamente de uma situação em que inesperadamente descobri que do beijo-de-mulata de extrai um medicamento contra o cancro...
** Já em tempos vos expliquei isto... para os Macuas, se alguém morrer longe de casa, o seu espírito nunca vai encontrar o caminho de volta e permanece para sempre retido "do lado de cá", assombrando e trazendo desgraças os vivos.
21
Jan12

[uma noite, em iapala] os meandros da malária...

beijo de mulata

Mamã com menino...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Já no hospital, em dois minutos, a história clínica ficou colhida e iniciou-se a terapêutica da malária cerebral. Diagnósticos definitivos só no fim, que nestes casos não há tempo a perder à espera de análises laboratoriais. Nem o Sr. Cachimo, o técnico do laboratório se encontrava no hospital àquela hora...

Dizem-me que a doença começou hoje e que não foram ao curandeiro. Neste caso resolvi acreditar porque a doença parece ter começado agora mesmo. A malária cerebral costuma ter um início violento e provavelmente vieram ao hospital porque era de noite e não iam acordar o curandeiro àquela hora. [Sim, que curandeiro é criatura imponderável, poderosa, com contactos privilegiados com os mortos e legitimidade para influir no destino dos vivos. Quem, no seu perfeito juízo, se arriscaria a ir perturbar o sono de semelhante autoridade?] Por isso achei que era razoavelmente seguro dar-lhe o dobro da dose de quinino na primeira toma, como está preconizado na malária grave. Quase nunca o faço porque sei que os curandeiros usam precisamente o quinino para tratar a malária [o quinino extrai-se da casca de uma árvore] e duvido que consigam controlar as doses que preparam. E, portanto, se eu administrar uma dose mais “generosa” isso pode levar a uma intoxicação fatal! Ou seja, mais uma vez se confirmaria a crença do povo de que o “hospital é sítio para morrer”, onde apenas se deve ir em último caso…

Mas já descobri um truque para perceber se tomaram esses medicamentos ou não, desde que não venham inconscientes: o quinino provoca uma surdez transitória, portanto tudo quanto tenho de fazer é perguntar aos pais se a criança costuma ouvir bem e depois, de repente, bater palmas com muita força para ver se a criança se assusta. Se não se assustar nem olhar é porque tomou quinino e tenho de ter cuidado com a dose que lhe dou...

O menino está sonolento por causa da medicação que eu lhe dei, mas o exame neurológico não está muito alterado. Este caso também há de correr bem! Agora não há mais nada a fazer a não ser esperar que a medicação actue e rezar para que o menino reaja favoravelmente...

Só depois de termos a veia canalizada e o tratamento a correr é que arranjamos um colchão para instalar o menino. Apesar de estarmos na estação seca, em que a taxa de hospitalização é mínima, as camas estão todas ocupadas e temos de o acomodar no corredor... E então na estação das chuvas as condições são ainda mais precárias: o número de doentes hospitalizados é tal que têm de dormir no parrô, um abrigo amplo, com telhado mas sem parede completa até ao tecto, cheio de correntes de ar e onde a chuva entra livremente… Nem quero imaginar o que é este hospital durante os surtos de cólera…

Demoro-me um pouco a escrever no processo e só quando saio do gabinete me apercebo de que um homem ainda jovem chora baixinho, ajoelhado à cabeceira do menino.

– O senhor é o pai?
– Não, esse menino é meu sobrinho.
Talvez compreenda Português, pensei.
– O menino não está em coma, está só a dormir por causa do medicamento que nós lhe demos para parar as convulsões.

Não deu sinais de me ter compreendido. Fui chamar o enfermeiro, que traduziu a minha explicação para Macua. O tio afinal tinha-me compreendido, mas não acreditava que o menino pudesse sobreviver. Expliquei-lhe que ainda era muito cedo para saber o desenlace, mas que era muito possível que o menino ficasse bem. Parou de chorar.

– Obrigado.
Nem por um momento deixou de fitar o menino...

(continua...)
28
Nov11

[continua a saga da inês e do sr. rafael] lepra e delirium tremens, isto não está fácil...

beijo de mulata
(...continuando a história que começou aqui...)

“Bonito!”, ironizei comigo própria. “Está um pobre homem aqui ao pé de ti em perigo de vida e tu nem ponderas levá-lo para o hospital, só te ocorre mandar chamar o rapaz que te fez bater o coração há dois dias… Isto está bonito, sim, senhora!”

– Mas tem razão, acho que nem sequer conseguíamos levá-lo para o hospital. Ele é tão pesado... Acha que o consegue tratar aqui?
– Sim, se ele não tiver malária e conseguir engolir água acho que sim, Irmã… Tenho ali tranquilizantes e tudo o resto que é preciso. E duvido que no Hospital Central saibam tratar um delirium tremens
– Pois, é melhor ele ficar aqui, então… O Sr. Rafael é um homem muito bom. Durante a guerra andou sempre connosco. Apesar dos perigos de andar na estrada, ele era incansável, defendeu-nos sempre, nunca houve dia nenhum em que saíssemos com o carro que ele não nos acompanhasse, às vezes até doente.
– Sim, é um homem muito bom, também já percebi isso.
– Uma vez ele estava com malária, mesmo no meio de uma crise, a tremer de frio e cheio de dores, quando caímos num buraco e furámos um pneu…
– Ui… Déjà vu
– Pois… Mas precisamente à frente desse buraco estava uma mina. Foi por Deus que não passámos por cima dela.
– Credo!
– E foi ele quem se levantou e nos foi ajudar a sair do buraco e trocar o pneu. Nem sei como é que ele teve coragem de fazer aquilo tudo a tremer com uma crise de paludismo a dois ou três centímetros da mina… Foi mesmo por um triz que não morremos todas. Ele conseguia fazer aquilo de olhos fechados. Se não fosse ele já nenhuma de nós estava aqui para contar estas histórias. E foram muitas vezes mesmo. É o mínimo que podemos fazer por ele…
– Parece que o estou a ver. Ainda hoje ele tem essa capacidade de se compor e entrar em ação quando é necessário. À vinda para cá fez precisamente o mesmo, mas estava alcoolizado, não estava com malária… Bem, temos de o despir e arrefecer.
– Sim, vamos a isso. Mas o que terá acontecido para ter isto agora? Ele já bebe há tanto tempo…
– Ele ontem de manhã disse-me que ia deixar de beber… Estava muito envergonhado pela figura que fez durante a viagem. E pelos vistos tentou cumprir…
– Sabe, nós já vimos isto acontecer muitas vezes. O alcoolismo é uma praga aqui em Moçambique. E o povo também conhece bem o delirium tremens. Sabem que mata mesmo. Mas acham que os bichos que eles vêem nas alucinações são os antepassados da família enfurecidos com qualquer coisa. E motivos para os espíritos se zangarem nunca faltam, claro, basta pensar um pouco e encontram logo duas ou três situações em que se quebraram tabus.
– Pois, ainda hoje o tio da Inês…
– Ah, é verdade, como é que correu a conversa com o tio?

As Irmãs iam-me ajudando a despir e a arrefecer o Sr. Rafael com toalhas molhadas.

– Parece-me que correu bem. Mas pode ser só impressão minha. Vamos ver se ele faz mesmo aquilo que disse, que já percebi que as pessoas aqui são muito de resistência passiva. Dizem sempre que sim e depois só fazem o que querem.
– Pois, é mesmo isso. Mas o que foi que ele disse?
– Disse que achava que a Inês tinha lepra…
– Ai, pobrezinhos… Sabe, aqui a lepra é uma humilhação que se estende à família inteira. A maior parte das vezes, quando alguém fica a saber, a vida das pessoas fica destroçada. Não admira que a tenham tentado esconder…
– Mas eles não sabem que a lepra tem cura?
– Claro que não! Para eles nem sequer é uma doença. Para eles é um castigo que vem dos antepassados.
– Começo a ficar cansada desta “tradição”!
– Então nós que já cá estamos há tantos anos… nem nos diga nada. Mas temos de respeitar. E temos de os compreender. Isto é uma outra religião completamente diferente. Não estamos aqui para impor nada, só queremos ajudar as pessoas.

(continua...)

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