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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

23
Mai17

[mas porque foi que não dormiste esta noite, beijo-de-mulata?] silêncio...

beijo de mulata
E perguntam vocês: "Mas, beijo-de-mulata, a ti, que já estiveste em Moçambique no meio do mato e sempre conseguiste dormir de noite, agora é que te dão as insónias?"

É verdade, meus amigos, quem visita este mato há mais tempo sabe que já estive metida em assados muito complexos, quase sem meios nenhuns para socorrer os doentes e que sempre me desenrasquei sem perder o ânimo. Que num surto de sarampo me morreram quase tantas crianças como as que faleceram em Manchester e que num surto de cólera na Zambézia morriam por dia tantos ou mais do que ontem. Que "parto sem dor" no hospital no Gilé era um parto em que mãe e filho ficavam vivos.

E que quando achamos que já vimos de tudo, quando pensamos que já vimos todas as desgraças do mundo, que já vimos pessoas a morrer e a sofrer, a suportar aquilo que achamos que vai para além da força humana, parece que deixamos de estar preparados para aceitar que pode haver pior. Ainda pior. Foi isso que percebi quando, depois de 15 dias sem arredar pé da porta do Instituto Nacional de Apoio aos Refugiados (INAR) em Nampula, tive finalmente autorização para entrar o campo de refugiados às portas da cidade e tratar os doentes de lepra que estavam a ser literalmente enterrados vivos pelos familiares. Nunca vos falei destes dias horríveis de descida aos infernos no campo de refugiados de Maratane porque nem eu própria gosto de me lembrar deles. De como os guardas do campo nos apontavam uma metralhadora à entrada só porque sim, nos revistavam o carro para nos intimidar e no final nos pediam boleia para casa, como se nada fosse. De como se  podia ver o desespero na face das pessoas que não eram imigrantes naquele país. Eram toleradas se ficassem naquele espaço, mas tratadas como criminosas e aprisionadas se tentassem fugir. E fugir para onde, se não havia caminho de volta para casa? Sim, e não vos vou falar dos doentes de lepra. Eu própria não saberia como fazê-lo sem perder o sono.

E perguntam vocês, meus amigos: "Mesmo nesses dias conseguiste dormir?" E eu respondo que sim. Com mais ou menos dificuldade, mas sempre dormi de noite. E voltei no dia seguinte com ânimo e vontade. Porque sempre consegui sentir que fazia algo pelos doentes, porque apesar dos que morriam e sofriam, havia sempre muitos mais que sobreviviam e se curavam.

Mas o mais importante de tudo, à noite, não era saber que tinha conseguido ajudar. O mais importante nesses dias difíceis era saber que à noite tinha uma casa para onde voltar. Um colo para onde correr se estivesse mais triste. Uma casa segura, onde havia mimo, carinho e alegria. E tinha a minha própria família, se bem que a milhares de quilómetros dali, para onde iria voltar.

Foi isso que me faltou a mim ontem às pessoas que vi em Manchester. Porque o terrorismo é isso mesmo. Deixamos de ter uma casa segura para onde voltar. Onde construir raízes e criar os filhos. Bolas, como é possível?
15
Mai17

[o milagre dos pastorinhos] e os meus milagres particulares

beijo de mulata


I once had a hospital in Africa...
(Gilé, Zambézia)

Confesso que ainda não consigo ler ou ouvir a história do menino Lucas, que sustenta a canonização dos pastorinhos de Fátima, sem me emocionar. Eu sou médica e ainda para mais trabalhei no meio do mato em Moçambique numa zona completamente desprovida de meios, onde a fé das pessoas é enorme, só superada pelo amor pelas crianças. Um povo fascinante, tem de concordar quem já lá viveu. É obvio que já vi e vivi muitas situações-limite! Assisti a curas prodigiosas. Posso dizer, em tom metafórico, que já vi muitos milagres na vida! Mas não. Não vi.

Milagres autênticos, não explicáveis pela fisiopatologia, acho que só vi um. Ou dois, pronto. Um e meio, já que para o primeiro ainda ponho hipóteses explicativas. Já vos contei as histórias (podem ir ali atrás ler esta história, e a outra também, mas aviso desde já que esta última é longa e difícil), talvez um pouco parecida com a do Lucas: Uma criança em descerebração acabou por recuperar sem sequelas! A situação era de tal forma grave que me cheguei a arrepender de ter insistido no tratamento. Quando vi que o menino estava reagir em descerebração fiquei horrorizada. A minha convicção foi apenas que o menino haveria de ficar com sequelas gravíssimas. Da mesma forma que os médicos que reanimaram o Lucas antes de o operar pela primeira vez poderão ter duvidado se tinham feito o que era correto... Não sei o que sentiram neste caso. Eu pessoalmente sei que reanimaria, mas haveria de duvidar por dentro se estaria a fazer o que era melhor para o menino.

Mas depois avisaram os pais do Lucas de que o menino poderia ficar com sequelas muito graves, possivelmente em estado vegetativo antes de o transferir para um hospital maior. Talvez tenham mesmo chegado a fazer a pergunta que este aviso quer dizer: "Querem mesmo que se continue o tratamento ou preferem que paremos por aqui, já que a situação é desesperada? No final vão aceitar cuidar o menino se ele ficar com sequelas graves?" Eu própria fiz a mesma pergunta aos pais do meu menino. Eu não tinha para onde o transferir, perguntei apenas se queriam que o menino fosse morrer a casa. Mas tudo o resto foi igual. Tenho a imagem do milagre gravada na minha mente. O menino acordou, horas depois, e começou a brincar com o meu estetoscópio vermelho. A minha cara de espanto e felicidade deve ter sido muito expressiva, porque a mãe sorriu e chorou comigo. Não sei se se chegou a aperceber do quão extraordinária foi a cura do filho.

Aquilo a que assisti não tenho a certeza se foi milagre, mas já perguntei a muitos colegas especialistas nesta área e ninguém viu semelhante coisa. O cérebro é plástico, isso eu sei e não é novidade para ninguém. Mas há limites. E a descerebração é onde eu traço o meu.

Se foi milagre de algum santo em particular não sei. Nunca saberei. Nem me ocorreu rezar, de tal forma estava convencida de que o desfecho seria trágico. Não tenho registos. Por acaso tenho uma testemunha, mas não há maneira de haver provas. Sei que a Irmã Lurdes rezou por ele ao seu santo de particular devoção. Mas não sei mais nada. Isto para dizer que todos os dias há milagres. E quando não são milagres, são graças enormes. E que vale a pena acreditar, porque quem não acredita (que é quase sempre o meu caso,  infelizmente) sofre mais!

Se aprendi a rezar por milagres? Acho que não. Mas devia. Talvez ainda vá a tempo...
04
Mai17

[welcome to mozambique] as pulseiras mais fashion

beijo de mulata


Feira do Pau Preto, fotos daqui, que nem por sombras levaria a minha máquina fotográfica para as compras na feira... O que ganharia em registo gráfico perderia em poder negocial.
(Nampula, Moçambique)

[Esta manhã o facebook teve a gentileza de me recordar este episódio. E não resisto a contar-vos de novo a mesma história!]

Uma das coisas que mais gosto de comprar e que sei que as minhas amigas mais apreciam são as pulseiras exóticas, feitas em pau preto, sândalo e pau rosa que se vendem na chamada Feira do Pau Preto, aos domingos em Nampula, onde se pode comprar de tudo, desde vassouras feitas com fibra de coco até lamparinas feitas de latas de conserva vazias, passando pelas inevitáveis capulanas e medicamentos tradicionais e, claro, aquilo que dá nome à feira, as famosas obras de arte lindíssimas em pau preto, feitas de uma só peça, apenas com um canivete, por homens que aprenderam sozinhos, ou com alguém próximo, a difícil e paciente arte de talhar a madeira.

Certa vez, uma amiga pediu-me que lhe trouxesse como lembrança uma pulseira de rabo de elefante. Segundo ela, era do mais fashion que existia, em termos de acessórios exóticos africanos. Fiquei horrorizada. Eu não sou capaz de comprar marfim ou tartaruga, por mais bonitas que sejam as peças de arte. Por mais que me digam que os elefantes não são mortos para lhes retirar as presas, só as retiram de elefantes encontrados já mortos acidentalmente e que as tartarugas não são mortas de propósito. É fácil iludirmo-nos com estas desculpas ingénuas... Mas uma pulseira de cauda de elefante? Que estranho e, ao mesmo tempo, que curioso. É que não lembra ao menino Jesus, quanto mais ao rabudo... Certo domingo, quando já estava a regressar a casa vinda da feira, mesmo em frente ao delicioso estádio do Sporting Clube de Nampula, vi estas pulseiras a vender e resolvi parar o carro e investigar por conta própria, num rasgo de inspiração:

- Bom dia, senhor, novidades*?
- Tudo bem, não sei do seu lado...
- Salama**, obrigada.
- Ah... Senhora, estou a vender pulseira.
- Sim estou a ver, estas pulseiras são de quê?
- Rabo de elefante...
- Ah, muito bem. E custam quanto?
- Está a 20 cada uma...
- A 20 meticais? E quanto me faz se levar cinco?
- Fica a 15 cada uma.
. Está bem... E quem fez as pulseiras?
- Eu mesmo, mamã!
- Ah, muito bem, parabéns, são muito bonitas! Mas onde é que arranjou o rabo de elefante?
- É um caçador que vende.
- Um caçador? E onde é que ele caça?
- Não sei, mamã...
- Mas ele mata os elefantes para lhes cortar o rabo?
- [Atrapalhado, sem saber o que dizer a esta mukunya***, que nem comprava nem desgrudava literalmente do seu pé...] Não... corta o rabo, só.
- Hum... Olhe, pode dizer, que eu levo na mesma...
- O quê, mamã?
- Não são de elefante, pois não?
- [Com pouca convicção] São sim...
- Mas pode dizer, não tem problema...
- [Baixando os olhos, envergonhado e baixando também a voz...] Ah, mamã... São di pineu...
- De quê?
- Di pineu, mamã.
- Mas o que é um pineu?
- Um pineu, mamã!
- Pineu? Mas isso é um bicho? É parecido com quê?
- Pineu... Não sabe o que é pineu? Pineu di carro!
- De pneu?!
- Sim, mamã. Nós corta o pineu di carro e dentro do pineu tem o miolo que faz o fio...
- Ah... Levo cinco, então!

* Novidades - Como está [de saúde]?

** Tudo bem.
*** Mukunya - Branca
23
Abr17

[zambézia, uma história de origens] filhos do coração

beijo de mulata


Vistas do Monte Namúli
(Zambézia, Moçambique)

(continuando...)

Reconheceram-se ainda assim. O perfume doscabelos de Gigi era ainda o perfume delicado do céu e das flores do frangipani.E a barba de Trovão guardava o cheiro a terra molhada e a raiz deembondeiro. Reconheceram-se e amaram-se, como se tinham amado desde sempre. Masa criação divina estava ainda no seu início, e os métodos de gerar vidaeram ainda mais que imperfeitos. Os olhos de Gigi a cada dia transbordavam deum mar maior, e os olhos quentes de Trovão iam arrefecendo o desejo decriar filhos com olhos de céu e cabelos de embondeiro.

Procuraram em vão quemlhes revelasse os segredos dos antepassados, mas gerar vida está só nas mãos deMuluku, era a resposta invariável.

Foi então que decidiram aventurar-se a tornar asubir o Monte Namúli. Mas o monte onde outrora corriam felizese despreocupados era agora o grande tabu da criação. Dizia-se que nenhumadulto deveria subir ao monte de onde viera o primeiro homem, sob pena desucumbir ao mais pérfido desejo telúrico. Mas já só isso lhes faziasentido, para desfazer a tristeza e a maldição em que viviam. Não temiam nuncamais encontrar o caminho de volta porque já só tinham um caminho. E era um caminho só de ida… Tinhamde ir devolver ao embondeiro as raízes que secavam o ventre de Gigi.

E, numamadrugada, ainda cobertos de bruma e cinza, prostraram-se pedindo a Mulukuque os protegesse e perdoasse na subida. O peito pulava-lhes na ânsia dointerdito, num misto de medo e desejo, quando iniciaram a viagem... Mas amontanha parecia chamá-los. Os espinhos encolhiam à sua passagem, as bagasamadureciam, plenas de néctares açucarados e as folhas pareciamcantar: "Não temam, pois tudo recomeça." Nunca o Namúli lhes pareceratão convidativo, tão quente e húmido de vida.

Chegaram, por fim, ao cimo da montanha. Os olhosde Gigi iluminaram-se de bons presságios quando viu que, da gruta revestida araiz de embondeiro, jorrava agora uma nascente de águas mornas. Os olhos deTrovão prenderam-se num frangipani, cujas flores caíam,delicadas sobre a nascente, perfumando o ar com o cheiro da sua doce mulher.Sonhava por instantes, acordado, que Gigi estava em toda a parte, dissolvida epulverizada por todo o céu da montanha, quando um grito o fez despertar daqueledeslumbramento.

Gigi gritava, toda ela assombro e abismo, que aquela nascenteera de água salgada! Assistiram então, aturdidos, ao derradeiro jorro de água,que secou a nascente, mar de súbito vazio, deixando em redor um manto desangue vivo. E depois de um momento, onde coube toda a dor, medo e desesperançado mundo, ouviu-se, de dentro da gruta, um gemido. Seguido da gargalhadainconfundível de uma criança. Precipitaram-se para dentro da gruta. Ao fundo,ainda coberta de sangue e raízes, uma criança com olhos de céu, cabelos deembondeiro e perfume de frangipani. Era uma menina. Uma menina linda e, espantodos espantos, já com dentes de leite. Os mesmos dentes de leite de seus pais. Etrazia dentro dela uma semente de embondeiro, sinal de que Muluku aperfeiçoara a criação e que não queria que os seus netostivessem de passar por todo aquele sofrimento para gerar vida. Felizes,agradeceram a Muluku.

Mas Muluku avisou-os: Não vos esqueceis deque, a partir de hoje, toda a criação e futuro provirá desta criança, decabelos perfumados e olhos de céu e de mar, mas lembrai-a sempre de honrar aseus pais, que tanto sofreram por terem filhos de sementes plantadas fora docorpo. Porque toda a criança é desejada e filha do coração.
21
Abr17

[hoje foi o dia!] zambézia, uma história de encantar

beijo de mulata







O Monte Namúli
(Zambézia, Moçambique)
Fotos: Algumas são minhas, outras daqui.


AsFlores de Frangipani

Há muitos, muitos anos, a Zambézia era uma terraselvagem, quente de origens, onde nasciam fontes de águas mornas e perfumadas,onde a terra era tão fértil que as mais pequenas sementes podiam dar frutos eas montanhas se cobriam de um véu glaucomatoso todas as manhãs. Para que océu só se mostrasse depois de todos estarem bem acordados para opoderem contemplar... Numa dessas montanhas, a que haveria de se chamarNamúli, o primeiro homem surgiu na bruma de uma madrugada,coberto de capim e de folhas, germinado nas raízes mornas de umembondeiro. E, depois de um urro de alvoradas, que só não faz parte dahistória porque ainda não estava lá mais ninguém para ouvir, olhou comespanto aquele céu de paraíso, agradeceu a Muluku, Deus dosantepassados, e desceu avidamente em direção à planície, começando aespalhar a sua semente pelo mundo.

Nessa terra verde, no coração de África, ainda acriação divina não estava completa, nasceu anos depois, um menino de olhosnegros como a terra mais fértil, e cabelo crespo, como os irreverentes ramos deum embondeiro. Era um menino com o coração doce e a cabeça cheia de aventuras,a quem chamaram Trovão. A sua companheira de infância era uma menina terna, deolhos azuis, transbordantes de futuros, e cabelos perfumados, cujo nomeseria Rosa, se nessa terra existissem rosas ou alguém já tivesse sonhado com floresdelicadas. Por isso lhe deram o nome das flores mais doces das árvores maisaltas, porque o seu perfume só poderia vir do céu. O seu nome era Frangipani,mas todos lhe chamavam Gigi, como o som do seu sorriso.

Gigi e Trovão corriam felizes pelas montanhas,trepavam ao cume do monte Namúli, comiam as bagas mais doces dos arbustosespinhosos e construíam, entre segredos e gargalhadas, pequenas cabanas depaus e de folhas, onde mal cabiam deitados e entrelaçados um no outro. Era láque se deixavam ficar em silêncio, na hora do calor, contemplando o céu pelaabertura no teto que Gigi queria manter descoberta a todo o custo, paraque o céu não lhe fugisse dos olhos e para sentir, nos dias de chuva, o sabor redondodo sol. Por vezes, nos dias em que o calor se demorava e a terra estavamais húmida e fértil, o próprio chão se entranhava entre os dois e criavaraízes, como pontes entre um e outro. E era quase difícil despegarem-se,vestidos da mesma pele.

Os meninos foram crescendo, os dentes de leiteforam caindo e eles enterravam-nos no chão da cabana, onde, pouco a pouco, sefoi formando uma gruta, revestida a raiz de embondeiro. Mas, à medida que os meninos cresciam,aqueles momentos de silêncio e cumplicidade foram-se tornando cada vez maisraros. Já todos sabemos, mas eles não tinham quem lhes dissesse, e só depoispoderiam vir a descobrir, que na infância, a dada altura, há uma magia quese quebra, uma gargalhada que se suspende, toda uma vida que se tornamemória... E no dia em que enterraram o último dente de leite, cada um seguiu oseu caminho, porque desde que o mundo é mundo, para crescer é precisoafastar-se da casa onde que se cresceu... Para se poder amadurecere depois poder amar e querer gerar vida...

Gigi e Trovão desceram do Monte Namúli ecresceram em direções opostas, até que um dia, na planície se reencontraram.Ele tornara-se um homem enorme, com a face e o peito cobertos de pelos, dasraízes do embondeiro que se lhe entranharam na pele nas longas tardes da suainfância. Os olhos quentes continuavam doces e cheios de aventuras. Gigicrescera para se tornar numa mulher linda, mas os olhos, outrora de céu, eramagora olhos azuis de mar. As raízes do embondeiro cresciam no seu ventre,secando-o por dentro. E o mar, que sonhava que um dia lhe cresceria no ventre,para depois jorrar vida, só nos olhos lhe crescia todos os dias. E delestransbordava todas as noites. Nos seus olhos já não se viam futuros por causa daquelemar morto no seu ventre, onde só existia sangue e lodo…


(continua...)
20
Abr17

[momentos para sempre] um dia deixo de escrever histórias clínicas...

beijo de mulata
... e escrevo uma história de encantar... Amanhã será o dia!

 Houve tempos em que a viagem dos meus sonhos era ir até às plantações de chá do Gurué, perto das margens do rio Zambeze.
Um dia hei-de voltar... com o baby-de-mulata e Mr. Shaka e os que mais vierem!
(Gurué, Zambézia)

Como pano de fundo, o verde arrebatador e o mito da origem do primeiro homem ali mesmo, nas nascentes do Monte Namúli. Segundo a lenda macua-lomué, foi precisamente nesta montanha que a humanidade teve origem, e o primeiro homem terá surgido numa madrugada, germinado nas raízes de um embondeiro e, depois de beber das águas perfumadas das montanhas*, desceu calmamente em direção à planície e começou a espalhar a sua semente pelo mundo.

Hoje em dia, o Monte Namúli está envolto em mitos e tabus... Diz-se que só se pode subir depois de uma cerimónia longa e difícil levada a cabo por um régulo e com permissão dos antepassados, depois de rezas, oferendas e respeitos. Segundo o mito, e à maneira deliciosamente macua, o guardião do Monte Namúli começa a falar com os viajantes incautos de tal forma rápido que estes se baralham e nunca mais conseguem encontrar o caminho para casa...

(Adenda, por respeito à Prof. Doutora Ruiva, amiga deste mato: gostava que existisse um mito de origem da primeira mulher, mas suspeito que o primeiro homem macua se teve de desenrascar sozinho...)


*Que séculos depois alguém venderia sob a designação comercial genericamente inflacionista de águas gourmet
10
Mar16

[inspiração para uma despedida] até sempre, irmã

beijo de mulata
Quem me conhece ou acompanha há mais tempo este blogue sabe que houve um blogue-antes-do-baby-blogue. Antes de ser mãe-do-baby-de-mulata eu era a beijo-de-mulata, e escrevia um blogue de aventura e saudade, um blogue que escrevia para manter vivas as recordações das missões em Moçambique, para que não me fugissem as imagens, nem os cheiros, nem as palavras, nem as músicas... nem a Irmã Lourdes. A irmã que me ajudou em tudo, que foi minha mãe, amiga, companheira, orientadora, animadora, mediadora cultural. Foi com os olhos dela que aprendi a amar o povo macua, compreender os seus paradoxos, as suas angústias, perdoar as suas negligências e atrocidades, admirar o amor incondicional que tinham pelas crianças, respeitar as tradições que protegiam as mulheres, as crianças e os idosos. Com ela aprendi a conhecer crenças, ritos, feitiços, aprendi a compreender de que falavam as pessoas no hospital quando me falavam de doença e o que esperavam de mim. E aprendi que só conhecendo a cultura podemos tratar verdadeiramente as pessoas, conquistar a sua confiança e comunicar.

Há dois dias, depois de quase um ano de luta contra uma leucemia debilitante, não resistiu mais e partiu... Desgraçadamente não pude estar presente no funeral, porque o baby-de-mulata anda adoentado e com mãezite agudizada e porque tinha uma sessão da "Oficina de Pais" para crianças com atraso de desenvolvimento de que era responsável. Mas como ela própria dizia lá em Moçambique, quando eu chegava atrasada à missa depois de um dia longo no hospital: "Não te preocupes, trabalhar também é rezar..."

Felizmente a minha mensagem de despedida chegou a tempo para ser lida no funeral. Foi o meu milagre desta manhã.

"Meus queridos amigos, é com muito pesar que por motivos familiares e profissionais não posso estar presente nesta última despedida da nossa querida Irmã Lurdes, mas gostaria de deixar o meu testemunho como leiga que conheceu uma mulher santa, uma mulher de coragem, absolutamente extraordinária.

Conheci-a em Iapala, província de Nampula, em Moçambique, quando a missão estava no seu apogeu. Para quem a conheceu, a missão era um paraíso no meio de uma paisagem avassaladora, com montanhas, savana verde e céu a perder de vista. Era também um oásis num mar de dor e devastação, de doença a pobreza. E a Irmã Lurdes tinha passado a guerra com o povo. Tinha comido à mesma mesa que os habitantes locais, tinha passado fome com a população, tinha dormido no mato muitas vezes, para no dia seguinte descobrir que uma cobra ou um escorpião se tinha ido aninhar no meio da esteira com ela. Nunca teve medo. No tempo da guerra as cobras não mordiam porque o homem fazia parte da paisagem. Durante a guerra sofreu ataques de bandidos, pilhagens sucessivas, tratou feridos, consolou órfãos e viúvas, tratou doenças até ao limite das suas forças.

Quando conheci a Irmã Lurdes, a guerra já tinha acabado, já não havia minas, já se podia andar com o jipe pelas picadas. A irmã, baixinha, frágil e com voz um pouco trémula, era a última pessoa que eu imaginava ver num jipe enorme a atravessar pontes feitas de bambu, atravessar areais onde se podia ficar enterrado sem dó nem piedade, e a fugir com destreza de buracos no meio da estrada capazes de partir um camião. Dava assistência no hospital, cuidava das meninas do lar, assistia a população envolvente e deslocava-se quase diariamente às quase cem comunidades distantes para vacinar as crianças e as grávidas, pesar os bebés, confortar quem tinha visto morrer os seus entes mais queridos, tratar os doentes que sabia tratar, com os medicamentos da sua bolsa verde-tropa de onde saiam os artigos mais improváveis... e transportar para o hospital da missão quem só no hospital pudesse receber assistência.

Mas a Irmã ia deixar Iapala. Na altura em que a conheci, já estava de partida. Ia fundar a missão do Gilé, na Zambézia. E eu perguntava-me como seria possível deixar Iapala, aquele paraíso fantástico, e ir para uma terra onde não havia nada, onde até as mandiocas eram raquíticas, onde até o terreno tinha areia, onde nem a fé nem a esperança vingavam e a morte espreitava atrás de cada cajueiro. Mas a sua coragem e confiança era inabaláveis: Se era para lá que Deus a mandava... seria para lá que iria! Com a alegria de quem vai ver nascer um novo mundo! E foi o que aconteceu. Podem não acreditar, mas eu vi o "antes" e o "depois". Todo o distrito se desenvolveu com a chegada das irmãs. A Irmã Lurdes tinha fama de santa entre as pessoas. Todos a procuravam e respeitavam. Vinham partilhar dores, preocupações e depois trazer alegrias.

Quando a sua doença começou, cedo percebeu que o fim da vida se aproximava. Mas a sua fé permaneceu inabalável. Se Deus a chamava, pois com certeza que iria! Quando Deus quisesse. E continuou espalhando fé e esperança por onde passava, desde casa até ao hospital, menos por palavras do que pelo exemplo de força e coragem.

E tenho a certeza de que partiu para casa do Pai com a mesma confiança de sempre. E podemos ter a certeza de que de hoje em diante, o próprio céu será um local ainda melhor com a sua presença!

Deixa-me desolada, ainda assim, por não me ter conseguido despedir de si... Parece que é a minha cruz, a de por vezes não chegar a tempo... Mas bem-haja por todo o bem que fez e por tudo quanto me fez descobrir!

Até sempre!"
15
Out13

[alvíssaras!] não temais, que veio o halakavuma!

beijo de mulata
 
Um pacato pangolim comendo as suas formigas, sob o olhar atento e esperançoso dos habitantes da vila, durante a cerimónia pública de invocação de espíritos.
(Murrupula, Nampula)

Para quem não o conhece, o halakavuma - pangolim, em Português corrente - é um mamífero que vive em zonas tropicais da Ásia e da África que, segundo a tradição macua (a etnia que habita o norte de Moçambique), traz boa sorte e boas notícias. As suas escamas são igualmente traficadas para serem utilizadas como afrodisíacos. O seu aparecimento em Murrupula foi notícia no Notícias de Moçambique:
A vila sede do distrito de Murrupula, em Nampula,esteve ontem parcialmente paralisada para participar da cerimónia pública deinvocação dos espíritos pelo aparecimento de um pangolim, mamífero consideradoraro e cuja aparição é considerado na mitologia dos povos macuas daquelaregião, como sendo presságio de boa campanha de produção agrícola, entre outrasdádivas.
 “Conformemandam as tradições, tivemos que trazer o animal imediatamente para sede dodistrito para o conhecimento das autoridades, depois que se seguirá outrostipos de rituais, antes de o animal ser devolvido para o mato”- explicou Wala.
Pronto, meus amigos, não se preocupem mais. Nada há a temer, que já veio o halakavuma!
09
Out13

[cantar para as crianças] parentalidade em moçambique

beijo de mulata
 
Um menino depois de recuperar um pouco da desnutrição.
(Iapala, Nampula)

Ainda sobre a história do Dino... (Vá lá, está ali dois posts abaixo, não sejam preguiçosos, é mesmo preciso pôr o link? Enfim, mas já está posto, que há sempre alguém que reclama e eu sou mais que vossa mãe. Assim como assim, quem faz tudo nesta casa sou eu...)

Agora que vos contei a história, lembro-me melhor daquela mãe e dos gritos inconsoláveis daquele menino. É curiosa a tolerância que a mãe desenvolveu para com os guinchos que pareciam incomodar toda a gente menos a ela. Curiosa para dizer o mínimo. Quase tenebrosa, agora que penso nisso. A minha convicção profunda é que não nos devemos acomodar ao choro das crianças. Devemos evitá-lo ou fazê-lo parar. Ou tomar uma atitude. Não fingir que não ouvimos. Ou pior: não ouvir mesmo.

Uma vez, quando já vinha recuperando peso há algum tempo e já nos parecia mais neste mundo, durante uma birra em que ele chorava particularmente alto, perguntei à mãe o que fazia para o consolar, ao que ela me respondeu: "Nada, ele não para de chorar com nada." "Mas como é que ele reage se lhe contar uma história ou se cantar para ele?" "Não sei, nunca cantei...", foi a resposta que acho que eliminei da minha mente até agora. Ela parecia que estava a ouvir um extraterrestre. Que coisa mais nonsense! Era como se eu lhe estivesse a perguntar se o menino reagia bem às equações de segundo grau ou se gostava de funções logarítmicas. Então o menino ainda quase nem falava, como raio haveria de perceber uma história ou aprender uma canção?

"Mas então, ninguém canta para os filhos?", perguntei às mães da enfermaria. Algumas, poucas, cantavam. Quase nenhumas. Mas... mas... como faziam para acalmar os meninos? "Ora, doutora, pomos os meninos no colo [às costas na capulana] e eles calam!"

Na altura não me ocorreu que a geração que atualmente é mãe e pai das crianças de Moçambique é a geração de cresceu durante a guerra civil. É uma geração que não tem memória de ser consolada quando chorava. E não tem memória por uma razão simples: não o era. Ouvi os relatos de muita gente de todas as vezes que fui a Moçambique. Muitas pessoas não querem falar sobre os anos negros da guerra. Mas algumas falam, precisam de falar, e as recordações são completamente sobreponíveis.

As memórias de infância de quem cresceu no mato são de fome, terror e abandono. São de não se poder dormir dentro de casa sob um teto, por mais humilde que fosse. São as recordações de os irmãos mais velhos lhes taparem a boca quando choravam, para não serem ouvidos no escuro. São de dormir ao relento, à chuva e ao frio, cheios de medo de serem atacados pelos "bandidos armados". São as memórias da frase mais proferida: "Chiu! Está no mato! Não sabe que não pode chorar?" São as memórias dos escorpiões e das cobras venenosas que muitas vezes se aninhavam debaixo das esteiras das famílias, procurando o calor humano durante a noite. E o horror que era, de manhã, descobrir que tinham partilhado o leito com seres repelentes e perigosos, alguns mortíferos. Felizmente quase nunca mordiam. Parecia que os humanos nessa altura faziam parte da paisagem e não os incomodavam.

Recordo o quanto me chocou que as mães não tivessem as mais parcas noções de puericultura. Expliquei que era muito importante estimular as crianças, interagir com elas, falar para elas, brincar. Não sabiam disso? Muitas não sabiam.

Podem dizer, meus amigos, que não é preciso. Que as crianças ensinam os pais a serem pais. O meu baby-de-mulata, por exemplo, ensina-me todos os dias. Exige músicas, danças, inventa diálogos estapafúrdios, brinca com as palavras. Diz-me aquilo que gosta, exige que brinque, provoca-me, não me deixa afastar-me. Mas o meu baby é um menino fácil. É daqueles que está quase sempre bem-disposto, daqueles que quando não se levanta a rir e a cantar já sabemos que lá vem doença da grossa, daqueles que quase podemos dizer que se criaria sozinho com a mãe menos apta e mais básica, desde que minimamente sensível.

Mas o que dizer dos meninos difíceis? Dos que choram a toda a hora e só apetece que estejam calados um minuto? Que dizer dos que demoram a aquecer e que temos de nos esforçar muito para que interajam? Dos que parecem estar sempre só mais ou menos, nem carne nem peixe, e que aparentam ficar bem se não tiverem ninguém com eles? Para esses, que são largamente mais de metade, é preciso algumas noções de puericultura. E disponibilidade. E esforço! São estes que se deprimem. São estes que as mães deixam de ouvir chorar porque estão sempre a gritar. Ou então são os que não choram. Em suma, são estes que se deixam abandonar. São estes que se deixam desnutrir. E portanto são estas mães que temos de formar! E temos de cuidar destes meninos!

Cada vez mais me convenço que a fome e desnutrição é um problema muito mais abrangente e que não passa só por haver ou não haver comida. E que o desenvolvimento de um país só pode acontecer quando as crianças forem bem tratadas. Quantas gerações serão precisas mais para criar bem uma criança?

Por isso acredito cada vez mais nos projetos das Irmãs que conheço, que criaram jardins infantis, que são portos de abrigo para crianças de famílias analfabetas, crianças com falta de estímulo, crianças com doenças e desnutrição, inseridas em meios culturais pobres. Só pode ser este o caminho!

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