(...continuando a história que começou aqui...)Já passava das 19:00 quando regressámos a casa com o Sr. Rafael. Mas, para meu desespero, as Irmãs informaram-me de que a Inês tinha chegado às 17:00, tinha esperado, esperado, esperado e, por fim, vendo a hora do último chapa aproximar-se, tinha desistido e ido embora dez minutos antes…
– Dissemos-lhe que voltasse amanhã à hora de almoço.
– Oh, meu Deus, pobrezinha… E acha que ela volta?
– Acho que sim. Fartámo-nos de lhe dizer: “Aquela médica vai curar-te!” e ela ao fim quase que já sorria.
–
Quase que já sorria… Ela está deprimidíssima, não é?
– Sim, infelizmente… Prepare-se, P., que aquela menina está destruída. Está um frangalho autêntico! Faz mesmo impressão olhar para ela. Só pele e osso e coberta de chagas dos pés à cabeça. Feridas infectadas em cada centímetro de pele, não admira nada que as pessoas tenham pensado que era lepra. Mas só me parece que se calhar tem SIDA.
– Ah, isso não tem, que eu vi as análises dela no Anchilo. É negativa. Mas tem feridas?
– Sim, feridas horríveis, todas infectadas. Aquela menina é uma chaga viva… Pensámos mesmo que só podia ser SIDA. E acha que não é mesmo lepra? Às tantas uma pessoa já duvida…
– Ah, lepra também não é… Nem uma coisa nem outra.
– Então ainda bem. É uma excelente notícia… E conseguiu algum medicamento?
– Só um. Mas não é de todo o mais apropriado para a psoríase. E então com feridas infectadas pode impedir a cicatrização e agravar a infeção… Nem sei que faça…
Só me apetecia chorar por não ter chegado a tempo. Que provações, caramba! Mas podia ser que no dia seguinte tivesse mais sorte na farmácia…
Passei mais uma noite praticamente em claro, com um olho no Sr. Rafael e outro nos meus livros, a estudar a melhor maneira de tratar a minha menina com o que podia haver em Nampula e, de manhã, logo depois do mata-bicho fui plantar-me à porta da maior farmácia da cidade para ser a primeira a entrar assim que abrisse. Tinha duas horas para meter novamente o meu ar mais decidido, a minha voz "o-meu-pai-é-o-dono-disto-tudo", convencer o empregado a deixar-me vasculhar em todas as gavetas e tentar descobrir algum medicamento que me servisse. Depois tinha de ir ver os meninos da escolinha.
Ao fim de duas horas tinha encontrado corticóides de várias potências diferentes, um antibiótico para as infeções da pele, um antissético para as feridas e sabão de alcatrão. Não havia mais nada. Já estava mentalizada de que ia cometer o maior sacrilégio que existe: colocar um corticóide numa ferida infectada numa criança com psoríase. Valesse-me Nossa Senhora. Ou o antibiótico. Ou dos dois o que tivesse mais força… E à hora de almoço vi chegar a Inês.
Quando achamos que já vimos de tudo, quando pensamos que já vimos todas as desgraças do mundo, que já vimos pessoas a morrer e a sofrer, a suportar aquilo que achamos que vai para além da força humana, parece que deixamos de estar preparados para aceitar que pode haver pior. Ainda pior.
Quem eu vi chegar nesse dia, sozinha e a medo, foi uma menina que tinha sido literalmente enterrada em vida pelas pessoas que mais a amavam… Uma menina sem brilho no olhar, pálida, esquelética, sem voz, com as feridas infectadas cobertas por uma pasta negra e seca de medicamento tradicional, restos dos dias mais horríveis da sua vida que permaneciam colados à pele. E que só saíram arrastando quase metade da pele com eles.
– Inês, ainda bem que vieste, estou mesmo feliz por teres vindo, estava à tua espera!
Baixou os olhos e nem respondeu. Obviamente eu não podia estar a falar a sério, como é que se pode ficar feliz por ver uma leprosa?
– A Irmã Lurdes, em Iapala, está muito preocupada contigo porque não voltaste à escola depois das férias, pediu-me para te ir procurar. Ela quer muito que voltes para Iapala para completares os estudos.
– Mas eu não posso voltar, eu estou… doente – a voz quase apagada, depois de tantos dias sem falar com ninguém e a acreditar que a vida tinha terminado…
– Mas vais ficar boa, eu estou aqui para te tratar. Sabes, a tua madrinha escreveu à Irmã Lurdes para lhe dizer que se quiseres continuar a estudar, ela tem muito gosto em continuar a pagar-te os estudos. Ela também está muito preocupada contigo…
Não era bem verdade, claro, a madrinha da Inês, em Itália, por mais bem intencionada e preocupada que fosse com a sua afilhada, não conhecia certamente a realidade de Moçambique e provavelmente não fazia a menor ideia do que se passava com ela. Mas podia ser mais uma referência que fizesse a Inês voltar à realidade… Olhou-me com estranheza.
– Sabes, tu tens uma madrinha na Europa que te paga os estudos, que reza por ti e se preocupa contigo.
– Sim eu sei… é italiana… ela reza por mim?
– Claro, Inês. E eu também tenho rezado muito. E a Irmã Lurdes e as outras meninas também em Iapala.
– Mas eu tenho… lepra – ousava até dizer o nome da doença que a amaldiçoava.
– Sim, estás doente. Mas não tens lepra, já disse aos teus pais e ao teu tio que isso não é lepra. E eu e as Irmãs vamos cuidar de ti. Tu tens de ficar boa!
Baixou os olhos novamente, derrotada. Não ia ser fácil fazê-la voltar a acreditar em si própria e que o futuro ainda podia existir… Tinha a humilhação colada à pele. Fomos para o jardim para lhe darmos um banho de mangueira. Um banho que durou quase duas horas para lenta e delicadamente lhe descolar aquela papa horrível, negra e nauseabunda que lhe infectara as lesões. Com ela sentada numa cadeira no jardim, sob o sol tórrido da tarde, eu e as Irmãs lavámos-lhe cada centímetro de pele com uma paciência de Job e, por fim, enchi-me de coragem e, com um sorriso nos lábios e um pedido de ajuda a Deus (ou com um “Deus me perdoe”, nem sei bem…) apliquei-lhe o corticóide mais potente que tinha encontrado, em toda a pele, e envolvi-a em ligaduras. Tomou a primeira dose dos antibióticos à minha frente. À cautela dei-lhe dois diferentes não fosse a infecção piorar…
– Hoje vais de noiva, Inês, assim toda branquinha, vestida de ligaduras – a boa disposição da Irmã Conceição fê-la quase sorrir pela primeira vez…
Fiquei a vê-la desaparecer em direção ao chapa, com a pior dúvida que um médico pode ter: “Será que não lhe fiz pior?” Mas era a minha única opção… Ou pelo menos eu não tinha visto outra. Tinha-me resolvido a arriscar. A velha máxima da Medicina ecoava-me na mente:
Primum non nocere, acima de tudo não fazer mal! Naquele momento só me lembrava das aulas de Dermatologia e da voz do meu professor que dizia: “Nunca se aplica um corticóide sem consultar um Dermatologista primeiro!” Claro que não era verdade, mas eu na altura ainda não tinha quase experiência nenhuma… Hoje, com vários anos de prática, esta angústia parece-me completamente despropositada, mas naquele dia acho que nem me consegui acalmar.
Quando voltei para o jardim para arrumar os medicamentos, vi uma das aspirantes a Irmãs que me ajudara a dar banho à Inês, também ela, curiosamente, natural do bairro de Napipine, a lavar energicamente as pernas e as mãos. Claramente tinha medo de que a água que lavara a Inês e lhe salpicara o corpo a contagiasse. Sim, não valia a pena ter a veleidade de pensar que tinha acreditado em mim quando lhe tinha dito que a Inês não tinha lepra. Fiquei triste, confesso. Mas pensando bem, já tinha sido um esforço incrível e louvável ter tocado e dado banho a uma leprosa.
– Não se preocupe, Irmã, a Inês não tem nenhuma doença contagiosa.
– Sim, obrigada, P..
(continua...)