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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

16
Jan13

[ganhar forças e coragem] destino moçambique

beijo de mulata
Lido no mural da minha amiga que vai brevemente em voluntariado para Moçambique.

Parafraseando São Francisco:
Senhor, fazei-me instrumento da vossa messe.
Onde houver desidratação, que eu leve agua purificada e soros;
Onde houver fome, que eu leve pão;
Onde houver dor, que eu leve ao menos um paracetamol;
Onde houver febre, que eu leve testes rápidos de malária e quinino;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver crianças, que eu leve rebuçados;
Onde houver sordidez, que eu leve sabão.
Onde houver lepra, que eu leve tratamento e muita paciência;
Fazei que eu procure mais:
Consolar os ostracizados, que ser consolada pela impotência perante a vontade dos antepassados;
Compreender as doenças tradicionais, que ser compreendida pelos curandeiros;
Amar, que ser amada.
Pois, é dando tudo isto que se recebe a maior riqueza do nosso mundo.
 
Que oração tão bonita e que atitude tão positiva... Força, linda! Não sabes no que estás metida, é certo, mas se alguém soubesse o que quer que seja de antemão nunca arriscaria sequer o canal do parto, quanto mais uma viagem para outro mundo com um bilhete só de ida... Mas vai em frente, que tenho a certeza de que vale a pena!
14
Jan13

[a nova seleção de esperanças] destino moçambique!

beijo de mulata
 
A represa da Namaíta.
(Nampula, Moçambique)
 
Tenho uma amiga que vai partir em missão para Moçambique dentro de pouco tempo. Ou pelo menos assim o esperamos, que as burocracias são terríveis, lentas e imprevisíveis. E são muitos os chamados, mas poucos os escolhidos...?
 
Vai para um lugar mágico, lindíssimo, próximo de Nampula, a Namaíta. Foi em tempos local onde se albergaram todos os leprosos de uma província, desterrados da família e dos antepassados, doentes de medo e de vergonha. Pobres de tudo, sobretudo de si mesmos. Muitos sucumbiram ao nojo e ao luto da própria vida. Outros reconstruiram a vida naquela paisagem de sonho, cultivaram campos, construiram casas, geraram filhos. Até que a guerra civil democratizou a vergonha e a morte em plena vida. Ter guerrilheiros e bandidos na família, parentes em parte incerta, mortos em desonra longe da terra dos antepassados, talvez tudo isto fosse tão mau como ser leproso. Deixou de haver leprosarias porque, pura e simplesmente, deixou de haver organização para desterrar os doentes e afastá-los das famílias. 
 
Mas ainda hoje a Namaíta é sinónimo de doença e não tanto de ostracismo. Ainda hoje quase todos os residentes são filhos ou netos de ex-doentes. São sensíveis ao tema. Gostam de ajudar os atingidos pela doença que teima em não abandonar aquele chão. A minha amiga não vai só para lá, como é óbvio, porque é o local onde vai ser menos necessária: lepra sem estigma é menos lepra! Mas é certamente lá que vai retemperar forças quando encontrar um homem são a apertar a mão sem medo nem nojo a um doente... E sim, meus amigos, perceberam bem: há lepra em Moçambique.
29
Jan12

[inês] a leprosa de napipine...

beijo de mulata


Esta não é a Inês, obviamente, mas tem um sorriso parecido com o que ela tinha quando, por fim, me despedi de Iapala...
(Nampula, Moçambique)

Hoje é o Dia Mundial dos Doentes de Lepra. Já vos contei a história da Inês, a menina que fui procurar a Nampula porque, por qualquer razão que desconhecíamos, tinha abandonado a escola. A história é longa. Demorámos quase dois meses na viagem*... Algumas pessoas estiveram ao meu lado desde o início [com mais ou menos reclamações!]. Algumas desistiram. Outras foram saboreando a história. No fim, foram muitos os que me disseram que tinha valido a pena.

A Inês tinha deixado de ir à escola porque tinha uma doença de pele que a família pensava que era lepra e, depois de mil e uma peripécias, consegui que viesse ter comigo para a tratar:
"Quando achamos que já vimos de tudo, quando pensamos que já vimos todas as desgraças do mundo, que já vimos pessoas a morrer e a sofrer, a suportar aquilo que achamos que vai para além da força humana, parece que deixamos de estar preparados para aceitar que pode haver pior. Ainda pior.
Quem eu vi chegar nesse dia, sozinha e a medo, foi uma menina que tinha sido literalmente enterrada em vida pelas pessoas que mais a amavam… Uma menina sem brilho no olhar, pálida, esquelética, sem voz, com as feridas infectadas cobertas por uma pasta negra e seca de medicamento tradicional, restos dos dias mais horríveis da sua vida que permaneciam colados à pele. E que só saíram arrastando quase metade da pele com eles.

– Inês, ainda bem que vieste, estou mesmo feliz por teres vindo, estava à tua espera!

Baixou os olhos e nem respondeu. Obviamente eu não podia estar a falar a sério, como é que alguém podia ficar feliz por ver uma leprosa?"
* Para quem não sabe do que estou a falar, a história começa aqui, e a parte que fala concretamente da Inês começa mais adiante, mais precisamente aqui.
08
Dez11

[o regresso a iapala] em jeito de epílogo...

beijo de mulata





O regresso a Iapala...
(Nampula, Moçambique)

(...continuando a história que começou aqui...)

E no final da semana voltámos para Iapala. Íamos todos eufóricos e de coração leve. O carro, que à ida tinha parecido o carro dos loucos, parecia agora o carro do circo, connosco a cantar estrada fora. Eu com uma alma nova, já com o sono atrasado em dia, a Inês e o Sr. Rafael totalmente renascidos e o Cachimo felicíssimo ao meu lado, amoroso e trocando comigo olhares cúmplices. A família a quem tínhamos dado boleia para o Hospital Central bateu-nos à porta dias antes da partida e partilharam o carro connosco. Claro que tivemos outro furo. No mesmo pneu, que não devia ter ficado bem consertado na oficina… Desta vez, sem crianças doentes e sem angústias, mudámo-lo nós. Todos juntos, num trabalho em equipa, os risos que se diluíam no meio do silêncio e do cheiro da savana. A Inês foi recebida em euforia pelas outras meninas da casa, a Irmã Lurdes ficou comovidíssima e a madrinha dela cumpriu de alma e coração a intenção de lhe pagar os estudos até ao fim da faculdade.

Foi na semana seguinte, em Iapala, que conheci o J. F., director da ONG com que colaboro. Chegou com um padre comboniano para visitar a Missão e o trabalho da Irmã Lurdes com os leprosos. Encontrou-me no hospital. Vinha a comentar, na sua boa disposição, que se devia ter inadvertidamente transformado num homem muito mais respeitável durante viagem, porque todos os polícias por que tinha passado o tinham tratado por “Sr. Padre”.

– Ou terá sido só da barriga? É que o Padre Alberto é muito mais magro do que eu e os polícias acharam todos que ele era o meu empregado. Ahaha!
– Sim, só pode ter sido isso – brincava o Padre Alberto – eu ao menos tenho cara de empregado de padre, sempre me “emprestas” alguma dignidade. Podia ser pior. Podia ter cara de empregado das finanças…

Foi uma noite de boa disposição! Falou-me do trabalho da associação na luta para a erradicação da lepra e na assistência médica e moral aos doentes. Eu estava tocadíssima pela história da Inês. Nunca antes tinha sentido tão na pele o sentido da palavra “estigma”. Daí que quando, meses depois, me convidaram para ir novamente para Moçambique integrada no programa de combate à lepra emocionei-me. Claro que aceitaria. Por pouco tempo que fosse. Se pudesse devolver a vida a alguém que ainda tivesse vida, a minha própria vida teria mais sentido.

E pronto, foi assim que tudo começou. O que se seguiu, talvez um dia vos conte... Acompanhei outros voluntários no seu trabalho lindíssimo. E fui testemunha de verdadeiros milagres. E assisti à alegria de ver devolvido um futuro a muitas vidas que afinal não tinham terminado!

No ano seguinte a Irmã Lurdes fundou a missão do Gilé, na Zambézia (como foi que ele teve coragem de deixar Iapala é coisa que ainda hoje me intriga...). A Inês foi com ela porque em Iapala só havia escola até à 7ª classe. Completou a 12ª no Gilé e foi depois estudar enfermagem para Quelimane. A última vez que soube dela, estava a trabalhar em Tete, já com o curso tirado e, imagino, casada e já com filhos. Os pais ainda hoje de vez em quando me telefonam ou mandam SMS a agradecer o que fiz pela filha. Por vezes, quando alguma das Irmãs vem a Portugal, mandam-me pequenos presentes: castanha de caju, café da sua machamba, desenhos feitos pelos irmãos mais novos da minha menina. Enchem-me a alma. Quero acreditar que ela é feliz.

Obrigada a todos os que vieram comigo nesta viagem...
(um) beijo de mulata
06
Dez11

[welcome to mozambique] enfim, tudo se compõe...

beijo de mulata
(...continuando a história que começou aqui...)

Nessa noite a terra tremeu. Literalmente. Um terramoto violento, de 7,5 na escala de Richter, com epicentro em Manica, a 800 km do jardim da casa das Irmãs, onde eu passeava, olhando a lua e namorando a noite negra e ardente do Cruzeiro do Sul. [Já vos contei a história...]

No dia seguinte o Sr. Rafael acordou muito mais orientado. Comeu, colaborou em tudo, tomou os medicamentos. A Inês chegou logo às 8 da manhã, terminando com a minha ansiedade. Não me sentia capaz de esperar até à hora de almoço. Quando destapei as feridas, estava tudo muito melhor! Os olhos da Inês brilharam pela primeira vez em semanas e semanas.

– Ah… então não é lepra!
– Claro que não, Inês, já te tinha dito. E mesmo que fosse, princesa! Lepra tem cura.
– Pois… mas na trad’ção não tem.
– O que é que isso quer dizer?
– Quer dizer que a doença tem cura, mas a pessoa fica marcada.
– Pois… mas isso tem outro nome, Inês. Isso chama-se estigma. E é uma coisa muito feia e injusta. Ninguém tem culpa de ficar doente.

Os olhos dela fixaram-se. Como se alguém tivesse dito o que ela mal se atrevia a pensar, mas que também sentia…
– E só ficamos marcados se acreditarmos nisso! Se não acreditares não ficas marcada. Inês, não deixes que te digam que tens lepra. Nunca mais. Isso é psoríase. E mesmo que fosse, minha querida! Lepra é uma doença vulgar, não é “tradição”, como toda a gente diz.
– Sim, tia P…
– Mas mudaste as ligaduras?
– Sim, o meu tio mudou porque se molharam.
– O teu tio é enfermeiro?
– Não, é estofador. Tia P. conhece-o.
– Ah, sim, o “tio grande”! Jeitoso, o teu tio: estão mais bem colocadas do que as minhas… Deve ser da profissão. Ser estofador deve dar-lhe muito à-vontade com os tecidos…

Já só me apetecia brincar e rir… A Inês deu a sua primeira gargalhada. No resto da semana vi a Inês todos os dias. Parecia que renascia de dia para dia. Que voltava a endireitar a cabeça e a ter novamente carne para encher a pele que cicatrizava. Voltou a falar, a sorrir, a cantar. O Sr. Rafael também melhorava de dia para dia e estava feliz porque pela primeira vez em muitos anos não sentia vontade de beber! E lembrava-se do terror que tinha sentido quando vira os bichos no seu quarto. Lembrava-se da sensação de morte iminente que tivera nessa altura. Estava feliz por ainda estar vivo e por as alucinações se terem ido embora. Curiosamente repetia para quem o quisesse ouvir, que aquilo que vira não tinham sido espíritos. Que não fazia sentido. Não sabia bem explicar, mas parecia-lhe mais que tinham sido “coisas da sua cabeça”.

Já o Sr. Revenda, andava maravilhado… De cada vez que passava por mim, olhava-me, num misto de pasmo, admiração e medo… Afinal também havia feiticeiros brancos. Isso é que nunca lhe tinha passado pela cabeça. Uma das Irmãs ouviu-o, dias depois, a referir-se a mim em conversa com um outro empregado chamando-me Mukhulukana*. Às vezes, num momento de maior audácia, puxava o assunto e parecia que fazia menção de me perguntar como é que eu tinha conseguido exorcizar os espíritos do corpo do Sr. Rafael, mas arrependia-se de imediato e desviava a conversa. Por um lado, eu podia ser perigosa e usar os meus poderes contra ele, mas eu sentia que aquilo que o impedia de fazer “a pergunta” não era só isso. Provavelmente ele pressentia que talvez a minha resposta pudesse implicar rever os seus conceitos acerca do mundo tal como ele o entendia. Rever todas as ideias sobre os antepassados, o mundo dos vivos e dos mortos e as leis que regem a vida. E isso era ainda mais perigoso e ameaçador… Por isso continha-se.

Mas ele pressentia que tinha estado perante algo de muito raro. Por vezes parecia que tinha tido um vislumbre de um mundo para lá da tradição, onde a tradição podia não ter lugar, onde as doenças podem não ser castigos, onde pessoas comuns, como a Inês e o Sr. Rafael, podem ter uma segunda oportunidade sem recorrer a poderes especiais… Mas eu não insisti. A vida não é assim tão simples. Não se pode levar um homem a deixar de acreditar no conjunto de crenças que estruturaram todo o seu pensamento, sob pena de o deixar sem um sentido para a vida. Mas talvez estes exemplos pudessem ter lançado uma semente e, um dia, caso alguém da sua família viesse a padecer de uma doença grave, talvez ele se lembrasse de mim com esperança e procurasse ajuda de um médico e não de um curandeiro.

*Mukhulukana - Palavra macua para curandeiro ou médico tradicional.

(continua...)
05
Dez11

[o encontro] ...e a inês, finalmente, veio ter comigo...

beijo de mulata
(...continuando a história que começou aqui...)

Já passava das 19:00 quando regressámos a casa com o Sr. Rafael. Mas, para meu desespero, as Irmãs informaram-me de que a Inês tinha chegado às 17:00, tinha esperado, esperado, esperado e, por fim, vendo a hora do último chapa aproximar-se, tinha desistido e ido embora dez minutos antes…

– Dissemos-lhe que voltasse amanhã à hora de almoço.
– Oh, meu Deus, pobrezinha… E acha que ela volta?
– Acho que sim. Fartámo-nos de lhe dizer: “Aquela médica vai curar-te!” e ela ao fim quase que já sorria.
Quase que já sorria… Ela está deprimidíssima, não é?
– Sim, infelizmente… Prepare-se, P., que aquela menina está destruída. Está um frangalho autêntico! Faz mesmo impressão olhar para ela. Só pele e osso e coberta de chagas dos pés à cabeça. Feridas infectadas em cada centímetro de pele, não admira nada que as pessoas tenham pensado que era lepra. Mas só me parece que se calhar tem SIDA.
– Ah, isso não tem, que eu vi as análises dela no Anchilo. É negativa. Mas tem feridas?
– Sim, feridas horríveis, todas infectadas. Aquela menina é uma chaga viva… Pensámos mesmo que só podia ser SIDA. E acha que não é mesmo lepra? Às tantas uma pessoa já duvida…
– Ah, lepra também não é… Nem uma coisa nem outra.
– Então ainda bem. É uma excelente notícia… E conseguiu algum medicamento?
– Só um. Mas não é de todo o mais apropriado para a psoríase. E então com feridas infectadas pode impedir a cicatrização e agravar a infeção… Nem sei que faça…

Só me apetecia chorar por não ter chegado a tempo. Que provações, caramba! Mas podia ser que no dia seguinte tivesse mais sorte na farmácia…

Passei mais uma noite praticamente em claro, com um olho no Sr. Rafael e outro nos meus livros, a estudar a melhor maneira de tratar a minha menina com o que podia haver em Nampula e, de manhã, logo depois do mata-bicho fui plantar-me à porta da maior farmácia da cidade para ser a primeira a entrar assim que abrisse. Tinha duas horas para meter novamente o meu ar mais decidido, a minha voz "o-meu-pai-é-o-dono-disto-tudo", convencer o empregado a deixar-me vasculhar em todas as gavetas e tentar descobrir algum medicamento que me servisse. Depois tinha de ir ver os meninos da escolinha.

Ao fim de duas horas tinha encontrado corticóides de várias potências diferentes, um antibiótico para as infeções da pele, um antissético para as feridas e sabão de alcatrão. Não havia mais nada. Já estava mentalizada de que ia cometer o maior sacrilégio que existe: colocar um corticóide numa ferida infectada numa criança com psoríase. Valesse-me Nossa Senhora. Ou o antibiótico. Ou dos dois o que tivesse mais força… E à hora de almoço vi chegar a Inês.

Quando achamos que já vimos de tudo, quando pensamos que já vimos todas as desgraças do mundo, que já vimos pessoas a morrer e a sofrer, a suportar aquilo que achamos que vai para além da força humana, parece que deixamos de estar preparados para aceitar que pode haver pior. Ainda pior.

Quem eu vi chegar nesse dia, sozinha e a medo, foi uma menina que tinha sido literalmente enterrada em vida pelas pessoas que mais a amavam… Uma menina sem brilho no olhar, pálida, esquelética, sem voz, com as feridas infectadas cobertas por uma pasta negra e seca de medicamento tradicional, restos dos dias mais horríveis da sua vida que permaneciam colados à pele. E que só saíram arrastando quase metade da pele com eles.

– Inês, ainda bem que vieste, estou mesmo feliz por teres vindo, estava à tua espera!

Baixou os olhos e nem respondeu. Obviamente eu não podia estar a falar a sério, como é que se pode ficar feliz por ver uma leprosa?

– A Irmã Lurdes, em Iapala, está muito preocupada contigo porque não voltaste à escola depois das férias, pediu-me para te ir procurar. Ela quer muito que voltes para Iapala para completares os estudos.
– Mas eu não posso voltar, eu estou… doente – a voz quase apagada, depois de tantos dias sem falar com ninguém e a acreditar que a vida tinha terminado…
– Mas vais ficar boa, eu estou aqui para te tratar. Sabes, a tua madrinha escreveu à Irmã Lurdes para lhe dizer que se quiseres continuar a estudar, ela tem muito gosto em continuar a pagar-te os estudos. Ela também está muito preocupada contigo…

Não era bem verdade, claro, a madrinha da Inês, em Itália, por mais bem intencionada e preocupada que fosse com a sua afilhada, não conhecia certamente a realidade de Moçambique e provavelmente não fazia a menor ideia do que se passava com ela. Mas podia ser mais uma referência que fizesse a Inês voltar à realidade… Olhou-me com estranheza.

– Sabes, tu tens uma madrinha na Europa que te paga os estudos, que reza por ti e se preocupa contigo.
– Sim eu sei… é italiana… ela reza por mim?
– Claro, Inês. E eu também tenho rezado muito. E a Irmã Lurdes e as outras meninas também em Iapala.
– Mas eu tenho… lepra – ousava até dizer o nome da doença que a amaldiçoava.
– Sim, estás doente. Mas não tens lepra, já disse aos teus pais e ao teu tio que isso não é lepra. E eu e as Irmãs vamos cuidar de ti. Tu tens de ficar boa!

Baixou os olhos novamente, derrotada. Não ia ser fácil fazê-la voltar a acreditar em si própria e que o futuro ainda podia existir… Tinha a humilhação colada à pele. Fomos para o jardim para lhe darmos um banho de mangueira. Um banho que durou quase duas horas para lenta e delicadamente lhe descolar aquela papa horrível, negra e nauseabunda que lhe infectara as lesões. Com ela sentada numa cadeira no jardim, sob o sol tórrido da tarde, eu e as Irmãs lavámos-lhe cada centímetro de pele com uma paciência de Job e, por fim, enchi-me de coragem e, com um sorriso nos lábios e um pedido de ajuda a Deus (ou com um “Deus me perdoe”, nem sei bem…) apliquei-lhe o corticóide mais potente que tinha encontrado, em toda a pele, e envolvi-a em ligaduras. Tomou a primeira dose dos antibióticos à minha frente. À cautela dei-lhe dois diferentes não fosse a infecção piorar…

– Hoje vais de noiva, Inês, assim toda branquinha, vestida de ligaduras – a boa disposição da Irmã Conceição fê-la quase sorrir pela primeira vez…

Fiquei a vê-la desaparecer em direção ao chapa, com a pior dúvida que um médico pode ter: “Será que não lhe fiz pior?” Mas era a minha única opção… Ou pelo menos eu não tinha visto outra. Tinha-me resolvido a arriscar. A velha máxima da Medicina ecoava-me na mente: Primum non nocere, acima de tudo não fazer mal! Naquele momento só me lembrava das aulas de Dermatologia e da voz do meu professor que dizia: “Nunca se aplica um corticóide sem consultar um Dermatologista primeiro!” Claro que não era verdade, mas eu na altura ainda não tinha quase experiência nenhuma… Hoje, com vários anos de prática, esta angústia parece-me completamente despropositada, mas naquele dia acho que nem me consegui acalmar.

Quando voltei para o jardim para arrumar os medicamentos, vi uma das aspirantes a Irmãs que me ajudara a dar banho à Inês, também ela, curiosamente, natural do bairro de Napipine, a lavar energicamente as pernas e as mãos. Claramente tinha medo de que a água que lavara a Inês e lhe salpicara o corpo a contagiasse. Sim, não valia a pena ter a veleidade de pensar que tinha acreditado em mim quando lhe tinha dito que a Inês não tinha lepra. Fiquei triste, confesso. Mas pensando bem, já tinha sido um esforço incrível e louvável ter tocado e dado banho a uma leprosa.

– Não se preocupe, Irmã, a Inês não tem nenhuma doença contagiosa.
– Sim, obrigada, P..

(continua...)
29
Nov11

[à espera da inês] a vida não é simples... mas faz sentido

beijo de mulata

Sempre que um doente tem alta, vemos partir com ele um cortejo de familiares que estavam por ali, acantonados nas imediações, acompanhando-o pelo tempo que fosse necessário, à espera das melhoras...
(Gilé, Zambézia)

(...continuando a história que começou aqui...)

– Mas eles não sabem que a lepra tem cura?
– Claro que não! Para eles nem sequer é uma doença. Para eles é um castigo que vem dos antepassados.
– Começo a ficar cansada desta “tradição”!
– Então nós que já cá estamos há tantos anos… nem nos diga nada. Mas temos de os respeitar. Isto é uma outra religião completamente diferente. Não estamos aqui para impor nada, só queremos ajudar as pessoas.

– Outra religião? Mas os pais da Inês são católicos… ou não?
– Sim, são católicos. E praticantes. Mas isto é uma outra dimensão da espiritualidade. Uma outra dimensão que nós não temos. E que nem sequer compreendemos totalmente. Para os entendermos temos de perceber que cada família tem a sua religião. Cada família tem a sua história, os seus mortos e os seus ancestrais. Eles têm um Deus, que chamam de Muluku e a quem rezam na missa e em casa. Mas Deus para eles está muito longe. Nesta cultura quem os protege dos problemas do dia a dia não é Deus. Por mais que as tentemos fazer acreditar que sim, que Deus é amor e que vela por eles.
– Então porque é que rezam?
– Não sei muito bem, mas penso que rezam pela mesma razão que os meninos vão à escola. Porque têm esperança que um dia, num futuro longínquo, isso lhes vá trazer uma vida melhor. Mas para as coisas do dia a dia não contam com Deus.
– Então?
– Há intermediários entre Deus e as pessoas, que são os antepassados, os mortos da família. Cada família tem os seus antepassados. E por isso, cada família tem uma maneira de ver Muluku que é diferente das outras porque é influenciada pelo carácter dos seus defuntos e pela história da família. E por isso também compreendem que outras famílias tenham ideias diferentes e uma visão diferente do mundo. Acaba por ser uma espiritualidade muito tolerante nas diferenças e há muito respeito entre as pessoas…
– Isso é bonito…
– É muito bonito. É uma espiritualidade muito intensa e que dá um sentido muito forte de família e de união. Um sentido de continuidade e coerência entre as famílias. Nunca viu uma pessoa sozinha no hospital, pois não? Estão sempre muitas pessoas de família a acompanhá-la na doença.
– Sim, é verdade, nunca estão sozinhos. Estão sempre irmãos, tios, pais…
– Sim. Quando acompanham a família na doença, ou nos ritos de passagem, ou nos funerais, isso não é só solidariedade, não é só porque é correcto e é importante para o outro. Também é, claro, não duvido que o fazem porque é importante para o outro e porque querem estar presentes, mas é também uma manifestação da espiritualidade deste povo. São valores muito bonitos.
– Sim, é verdade, chega a ser comovente…
– Mas não é fácil aceitar que essa mesma espiritualidade tenha tantos mitos e tantos tabus que os impedem de viver a sua vida e andar para a frente.
– Pois… é isso mesmo… O tio da Inês estava mesmo convencido de que ela está doente porque eles não cumpriram bem o rito do funeral do tio mais novo, que morreu há poucos meses. Parece que faltava um dia para acabar quando uma tempestade destruiu a casa onde estavam e eles tiveram de se vir embora…
– Meus Deus, que desgraça… que sofrimento… e o que tem a menina?
– Acho que tem psoríase. Mas ainda não a vi, não tenho a certeza…
– Ai, credo, que doença para se ter aqui. Mas olhe que se calhar não a vai conseguir tratar… Aqui não há muitos medicamentos.
– Nem nas farmácias privadas?
– É uma doença rara. Duvido que tenham alguma coisa, mas pode sempre tentar…

Um murro no estômago. Mas será que não ia conseguir tratar a minha menina? Será que ia faltar à minha promessa e deixar que uma menina inteligente e cheia de potencial terminasse a sua vida assim humilhada?

Nem me estava a reconhecer naquelas preocupações… Para onde é que estava a ir a minha confiança, Santo Deus? Tudo o que tinha corrido mal nestes dois dias estava mesmo a influenciar-me e a deitar-me abaixo…

Tentei tranquilizar-me: no fundo ainda nada estava perdido. Dadas as circunstâncias até estava tudo a correr bastante bem. Tinha conseguido chegar a Nampula de carro sozinha, mesmo furando pineu pelo caminho, tinha tratado duas crianças quase mortas de desidratação e malária, conseguido fazer todas as compras, encontrar a Inês e compreender o que estava por detrás da sua ausência e da reclusão da família e ainda tinha começado a ver as crianças da escolinha. E, por milagre, o Vicente caíra-me do céu! Como é que eu me atrevia a perder a segurança se nada tinha corrido verdadeiramente mal? Lá porque tudo tinha sido difícil e delicado… Lá porque não me tinha tudo vindo parar às mãos de bandeja, como de costume em Moçambique, não queria dizer que não estivesse tudo bem. Sim, isto já devia ser o cansaço a falar… Estavam a ser muitas emoções ao mesmo tempo.

(continua...)
28
Nov11

[continua a saga da inês e do sr. rafael] lepra e delirium tremens, isto não está fácil...

beijo de mulata
(...continuando a história que começou aqui...)

“Bonito!”, ironizei comigo própria. “Está um pobre homem aqui ao pé de ti em perigo de vida e tu nem ponderas levá-lo para o hospital, só te ocorre mandar chamar o rapaz que te fez bater o coração há dois dias… Isto está bonito, sim, senhora!”

– Mas tem razão, acho que nem sequer conseguíamos levá-lo para o hospital. Ele é tão pesado... Acha que o consegue tratar aqui?
– Sim, se ele não tiver malária e conseguir engolir água acho que sim, Irmã… Tenho ali tranquilizantes e tudo o resto que é preciso. E duvido que no Hospital Central saibam tratar um delirium tremens
– Pois, é melhor ele ficar aqui, então… O Sr. Rafael é um homem muito bom. Durante a guerra andou sempre connosco. Apesar dos perigos de andar na estrada, ele era incansável, defendeu-nos sempre, nunca houve dia nenhum em que saíssemos com o carro que ele não nos acompanhasse, às vezes até doente.
– Sim, é um homem muito bom, também já percebi isso.
– Uma vez ele estava com malária, mesmo no meio de uma crise, a tremer de frio e cheio de dores, quando caímos num buraco e furámos um pneu…
– Ui… Déjà vu
– Pois… Mas precisamente à frente desse buraco estava uma mina. Foi por Deus que não passámos por cima dela.
– Credo!
– E foi ele quem se levantou e nos foi ajudar a sair do buraco e trocar o pneu. Nem sei como é que ele teve coragem de fazer aquilo tudo a tremer com uma crise de paludismo a dois ou três centímetros da mina… Foi mesmo por um triz que não morremos todas. Ele conseguia fazer aquilo de olhos fechados. Se não fosse ele já nenhuma de nós estava aqui para contar estas histórias. E foram muitas vezes mesmo. É o mínimo que podemos fazer por ele…
– Parece que o estou a ver. Ainda hoje ele tem essa capacidade de se compor e entrar em ação quando é necessário. À vinda para cá fez precisamente o mesmo, mas estava alcoolizado, não estava com malária… Bem, temos de o despir e arrefecer.
– Sim, vamos a isso. Mas o que terá acontecido para ter isto agora? Ele já bebe há tanto tempo…
– Ele ontem de manhã disse-me que ia deixar de beber… Estava muito envergonhado pela figura que fez durante a viagem. E pelos vistos tentou cumprir…
– Sabe, nós já vimos isto acontecer muitas vezes. O alcoolismo é uma praga aqui em Moçambique. E o povo também conhece bem o delirium tremens. Sabem que mata mesmo. Mas acham que os bichos que eles vêem nas alucinações são os antepassados da família enfurecidos com qualquer coisa. E motivos para os espíritos se zangarem nunca faltam, claro, basta pensar um pouco e encontram logo duas ou três situações em que se quebraram tabus.
– Pois, ainda hoje o tio da Inês…
– Ah, é verdade, como é que correu a conversa com o tio?

As Irmãs iam-me ajudando a despir e a arrefecer o Sr. Rafael com toalhas molhadas.

– Parece-me que correu bem. Mas pode ser só impressão minha. Vamos ver se ele faz mesmo aquilo que disse, que já percebi que as pessoas aqui são muito de resistência passiva. Dizem sempre que sim e depois só fazem o que querem.
– Pois, é mesmo isso. Mas o que foi que ele disse?
– Disse que achava que a Inês tinha lepra…
– Ai, pobrezinhos… Sabe, aqui a lepra é uma humilhação que se estende à família inteira. A maior parte das vezes, quando alguém fica a saber, a vida das pessoas fica destroçada. Não admira que a tenham tentado esconder…
– Mas eles não sabem que a lepra tem cura?
– Claro que não! Para eles nem sequer é uma doença. Para eles é um castigo que vem dos antepassados.
– Começo a ficar cansada desta “tradição”!
– Então nós que já cá estamos há tantos anos… nem nos diga nada. Mas temos de respeitar. E temos de os compreender. Isto é uma outra religião completamente diferente. Não estamos aqui para impor nada, só queremos ajudar as pessoas.

(continua...)
24
Nov11

[à procura da inês] lepra, valha-me santa rita de cássia?

beijo de mulata
(...continuando a história que começou aqui...)

– Que doença acham que ela tem?
– Irmã… Inês tem… – a voz sumiu-se-lhe na garganta, desaparecendo num sussurro.
– Tem o quê?
– Tem… tem lepra.

Fiquei fora de mim! Nem consegui disfarçar o que sentia… Nem me tinha passado pela cabeça que fosse isso de que suspeitavam. Disparei no mesmo momento:

– Senhor Mutaquela! Claro que não é lepra! Pelo acabou de dizer não pode ser. E de qualquer modo a lepra é uma doença que tem cura. E quase não é contagiosa! Mas a sua irmã, mãe de Inês sabe disso. Ela é técnica de farmácia, ela entrega os medicamentos para a lepra aos doentes. De certeza que vê as pessoas a melhorar.
– Sim, ela também disse que não era lepra, mas eu não acredito. E lepra é doença trad’cional. Eu estou a pagar pelo mal que fiz ao meu irmão…
– Por favor! Acha que lepra é assim, com feridas em todo o corpo? Já viu algum doente de lepra com feridas na cabeça ou no peito? Os doentes de lepra têm feridas nas mãos e nos pés, não é em todo o corpo, no resto do corpo têm é manchas. Ela tem manchas?
– Não, tem firida só.
– Pois, papá, a Inês tem uma doença de pele normal. Muitas vezes começa depois de uma malária ou de outra doença com febre. Ela não teve malária antes de isto tudo começar?
– Ah… sim, teve…
– Sim, papá, está a ver? Deve ser psoríase.
– Quê?
– É uma doença de pele. Uma doença normal! E lepra não é castigo por um crime, não tem de ser humilhação para a família. Lepra é uma doença e tem cura! Mas a Inês não tem lepra, tem psoríase, que é outra doença.

Calei-me. Olhei-o de frente. Deus sabe o que me custou não odiar naquele momento aquela cultura terrivelmente injusta. Injusta sobretudo para com as mulheres e as crianças. Bastava ter um tio pouco instruído e meio neurótico para deitar por terra todo o esforço que já tinha sido feito para criar uma menina, para que tivesse estudos, uma profissão e armas e confiança para enfrentar a vida.

Bem desabafavam as Irmãs que é muito difícil ajudar este povo porque a cultura de tradições, feitiços e castigos é um obstáculo enorme ao desenvolvimento. Aquele homem era o chefe da família e tinha sido o primeiro a ousar proferir o nome da doença na família. Sendo assim, não me espantava que tivessem tentado esconder a menina.

Às vezes o estigma instala-se e cola-se à pele, mais visível que a própria lepra, mais mutilante e corrosivo... E de que serve o tratamento se ele implicar exposição pública, mesmo que seja um internamento num hospital? De que serve ficar curado se depois não se puder voltar para casa e continuar a sua vida? A doença é lenta, mas a cura é mais longa ainda e o estigma... esse é cruel. O estigma enterra em vida quem ainda tinha força e vontade de viver.

Enfim, mas todos estavam a sofrer, era isso que não podia perder de vista. E aquele homem, apesar de tudo, estava a tentar tratar a sobrinha da forma que podia e achava correcta. Tinha investido no tratamento quase todas as suas poupanças e estava prestes a arruinar-se para que ela melhorasse. Merecia o meu respeito, por muito que discordasse de tudo o que tinha sido feito e me doesse a situação da menina. “Vá buscar Inês hoje mesmo. Vá buscá-la, que ela está a passar mal ali sozinha e leve-ma amanhã a casa das Irmãs. A doença dela tem cura, papá!" Vi os olhos dele iluminarem-se.

– Sim, Irmã. Obrigado.

Regressei a casa perturbada, mas feliz, apesar de tudo. Finalmente estava a ver uma luz ao fundo do túnel. Será que encontraria algum medicamento para ela em Nampula? Que raio de doença para se ter no fim do mundo…

(continua...)
24
Nov11

[à procura da inês] pronto, acho que é mesmo desta, podem começar a pensar em voltar...

beijo de mulata

A casa de um curandeiro na Zambézia...
(Muiane, Zambézia)

(...continuando a história que começou aqui...)

Aviso: Embora seja desta que percebemos o que se passa com a nossa menina, ainda não é aqui que nos encontramos cara a cara com ela. Se o vosso objectivo é conhecê-la assim cara a cara, então podem voltar amanhã, que ela já cá deve estar... Por hoje é só o tio, que por acaso engatámos com uma pinta descomunal! Adiante:


Quase tremia só de pensar que ia enfrentar o “tio grande” da Inês. Que mais me iria acontecer desta vez?

Mas, enfim, contra as minhas expectativas e seguindo à risca as indicações da Irmã Lurdes, consegui tranquilamente chegar à fala com ele. Quando percebeu o motivo que me trazia ali, já estava sentado, de garrafa de cerveja na mão e vi-o engolir em seco, mas não se levantou, ficou sentado a ouvir-me. Bendita Irmã Lurdes! Se na minha vida tivesse sempre quem me orientasse desta forma…

Depois do choque inicial, pareceu-me que o consegui acalmar e acabou por me dizer que a Inês tinha adoecido cerca de dois meses antes com feridas na pele. Inicialmente nos cotovelos e joelhos e que depois tinham alastrado por todo o corpo. A princípio ninguém tinha ligado muito, porque não tinham associado a doença a nenhum acontecimento mas, à medida que as chagas avançavam e lhe cobriam todo o corpo, começaram a associar a doença à morte recente do tio mais novo da Inês que vivia numa aldeia a 40 km dali. O ritos do funeral, desgraçadamente, não tinham sido cumpridos à risca. Um dia antes de terminarem chovera de tal modo que a casa tinha ficado destruída…

O rosto cobria-se-lhe de lágrimas à medida que ia falando. Estava profundamente culpabilizado porque tinha sido ele próprio a dar a ordem de terminar as cerimónias fúnebres e regressar a Nampula. O seu irmão sempre tinha sido um homem tão bom e compreensivo, sempre tão preocupado com o bem-estar e conforto dos outros e da família… Pensara que os antepassados e o falecido não se haveriam de importar. Que haveriam de compreender que não tinha sido com intenção de “fazer mal” mas porque não tinha mesmo havido condições para continuar de maneira nenhuma. Mas enganara-se e a sobrinha estava a pagar por isso. Soluçava agora sem conseguir parar.

– Mas, Sr. Mutaquela, não tentaram tratar as feridas da Inês? Nem sequer ao princípio?
– Claro, primeiro foi internada no Anchilo – e sublinhava “no Anchilo!” da mesma forma que alguém em Lisboa diria que tinha levado o filho a uma consulta “em Londres” para enfatizar como estava preocupado e tinha tentado investir na cura –, mas não melhorou nada... só piorou.
– Eu sei, Sr. Mutaquela, mas também sei que não deixaram a Irmã Maria vê-la. Nem sei quem foi que a tratou.
– Foi outro enfermeiro amigo da família. Não queríamos que se soubesse da doença. Se alguém sabe que esta doença apareceu na nossa família temos de ir todos embora…
– Mas não é assim, credo! Doença não é crime!
– Mas ela continuou a piorar e então percebemos que era uma doença trad’cional. E agora está internada na casa de um curandeiro, mas também não está a melhorar… A doença também não ajuda…
– A doença não ajuda? O que é que isso quer dizer?
– A doença é muito má. E pega-se. O curandeiro nem se aproxima dela. Ninguém se pode aproximar…
– O curandeiro não se aproxima dela? Então como é que ele espera tratá-la?
– Ele deixa-lhe os medicamentos ali e ela faz os tratamentos sozinha. E nós vamos lá levar comida para ela, mas também não podemos entrar…
– Então isso quer dizer que ela está lá completamente sozinha?
– Sim. E não pára de chorar. Eu nem consigo ir até lá, é a mãe que vai. E volta sempre a chorar: “Ah, mwanaka! Ah, mwanaka!*”, como se Inês já tivesse morrido.
– Que horror! Não pode ser, quem é esse curandeiro? Ao menos sabe o que faz?
– Não… Não é um curandeiro muito bom, porque os melhores curandeiros de Nampula não aceitaram tratá-la. Mas mesmo assim estamos a ficar sem dinheiro e ela ainda está a piorar…

Eu estava horrorizada, sem palavras e quase a chorar também, a imaginar o sofrimento da menina, sozinha, repelida e ostracizada como se alguém tivesse injustamente colado um crime horrendo à sua pele. Haveria maior humilhação? E sentia uma indignação crescer-me dentro do peito! Como era possível tratar assim uma adolescente? Mas tentei manter a calma.

– Mas porque é que acham que a doença se pega? Que doença acham que ela tem?
– Irmã… Inês tem… – a voz sumiu-se-lhe na garganta, desaparecendo num sussurro.
– Tem o quê?
– Tem… tem lepra.

Fiquei fora de mim! Estava fula! Nem consegui disfarçar o que sentia… Nem me tinha passado pela cabeça que fosse disso que suspeitavam.

Ah, mwanaka! – “O meu filho!” Grito das mulheres macuas quando morre um filho ou pressentem a sua morte iminente.

(continua...)

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