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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

20
Abr17

[momentos para sempre] um dia deixo de escrever histórias clínicas...

beijo de mulata
... e escrevo uma história de encantar... Amanhã será o dia!

 Houve tempos em que a viagem dos meus sonhos era ir até às plantações de chá do Gurué, perto das margens do rio Zambeze.
Um dia hei-de voltar... com o baby-de-mulata e Mr. Shaka e os que mais vierem!
(Gurué, Zambézia)

Como pano de fundo, o verde arrebatador e o mito da origem do primeiro homem ali mesmo, nas nascentes do Monte Namúli. Segundo a lenda macua-lomué, foi precisamente nesta montanha que a humanidade teve origem, e o primeiro homem terá surgido numa madrugada, germinado nas raízes de um embondeiro e, depois de beber das águas perfumadas das montanhas*, desceu calmamente em direção à planície e começou a espalhar a sua semente pelo mundo.

Hoje em dia, o Monte Namúli está envolto em mitos e tabus... Diz-se que só se pode subir depois de uma cerimónia longa e difícil levada a cabo por um régulo e com permissão dos antepassados, depois de rezas, oferendas e respeitos. Segundo o mito, e à maneira deliciosamente macua, o guardião do Monte Namúli começa a falar com os viajantes incautos de tal forma rápido que estes se baralham e nunca mais conseguem encontrar o caminho para casa...

(Adenda, por respeito à Prof. Doutora Ruiva, amiga deste mato: gostava que existisse um mito de origem da primeira mulher, mas suspeito que o primeiro homem macua se teve de desenrascar sozinho...)


*Que séculos depois alguém venderia sob a designação comercial genericamente inflacionista de águas gourmet
19
Mar17

[histórias de amor] as visitas ao baby-de-mulata #3

beijo de mulata
(continuando a minha história de amor...)

Imagem obviamente da web...

Dias depois da saga na Santa Casa voltei ao centro de acolhimento temporário. O menino já tinha começado a frequentar o jardim de infância, mas nem por isso estava mais integrado, mais aberto a comunicar ou a confiar nas pessoas que o rodeavam... Já era mais fácil de cuidar, mas as preocupações continuavam as mesmas: não olhava nos olhos, não comunicava de forma nenhuma, não se interessava por brinquedos nem fazia qualquer esforço para os alcançar, parecia absorto no seu mundo, abria e fechava portas e janelas sempre que tinha oportunidade de as alcançar. Dessa vez e das vezes seguintes a cena da primeira visita repetia-se, deixando-me cada vez mais preocupada e triste.

Eu tinha estado a pensar e, já que o menino abria e fechava portas compulsivamente, talvez se interessasse por outro tipo de movimentos no ar, como o das bolas de sabão e dos balões, que quando os soltamos fazem movimentos irreverentes e imprevisíveis. Levava bolas, balões, brinquedos com luzes e música. Tudo para ver se o interessava noutra coisa que não a malfadada janela daquela sala de visitas. Mas eram frações de segundos... Tudo era demasiado intenso, demasiada informação, demasiado assustador. O calor era imenso, o que o deixava irritado, transpirado e a mim exausta. Afastava-se de mim ostensivamente, pesando-me cada vez mais no colo, por vezes aceitava água no biberão, mas não me deixava dar-lhe, tirava-mo da mão para beber sozinho. De todas as vezes fiz de tudo para captar a sua atenção, mas nada. Nem cantando, nem ficando calada, nem apontando para os carros que passavam na rua, nem fingindo que íamos cair...

Até que certa vez tenho ideia de ter começado a escurecer. Não sei bem como, se era julho e eu só tinha duas horas de visita (mais porque as funcionárias amorosamente fechavam os olhos), mas não eram horas de anoitecer, disso tenho a certeza... talvez uma nuvem tivesse tapado o sol, não me lembro. Sei que começou a escurecer. Eu já estava exaurida e ele cheio de sono, quando lhe peguei na mão e acendi a luz com os seus dedos moles e sem vontade... mostrei-lhe com entusiasmo que tinha sido ele a acender a luz, saltei e festejei aquele "feito". Miraculosamente, aqueles saltos e festejos tiveram o condão de o fazer sorrir pela primeira vez. Apaguei a luz com a mão dele. Mostrei-lhe que a luz se tinha apagado e depois acendemo-la novamente. O menino saltou-me no colo de imediato, como quem diz: "Então, salta, como fizeste há pouco!". Saltei novamente e ele sorriu de novo, agora numa gargalhada. Eu estava estupefacta! Como era possível um milagre destes, tão gratuito e tão simples? Ah... a força que um sorriso pode ter!

Então, mas... bastava saltar para o fazer rir?! Mas não tinha muito mais tempo, estavam quase a vir buscar o menino... continuei a abrir e a fechar a luz e a saltar com ele ao colo até que parei de propósito. Olhei para ele e, por um instante, cruzou os olhos com os meus. Pegou-me na mão e acedeu com ela o interruptor... Pela primeira vez parecia estar a dar conta da minha presença, a "instrumentalizar-me" eu sei, mas pelo menos a manifestar uma vontade... Pela primeira vez senti que afinal não era louca em ter esperança e em ignorar os cochichos das funcionárias: "Mas ela é médica, ela deve perceber que ele não é normal. Deve saber o que está a fazer e o que quer levar para casa..."

(Continua, pois, que não acabou mesmo!)
26
Nov15

[vozes brancas] o infinito...

beijo de mulata
Pergunta-me o baby-de-mulata, acabado de acordar, espreguiçando-se com um ar muito pensativo, enquanto recebia a minha massagem de acordar (a massagem-de-pôr-o-bacalhau-no-esqueleto, como a minha mãe lhe chamava):
- Mãe, o que há para além do universo?

(Ai, valha-me Santo Ambrósio, agora o que é que eu respondo um caramelo a quem a modorra da manhã dá para filosofar? Logo eu que de manhã nunca tenho nada de poético para dizer... Quando era mai nova também me interrogava sobre a origem do universo e os seu caráter infinito, agora interrogo-me mais sobre o que poderá ser o jantar e se a roupa estará enxuta para a Dona Teresa passar a ferro...)

- Para além do universo? Hum... Bem... só se for o céu do Jesus...
- Então, mamã, eu gosto de ti até ao céu do Jesus... e voltar!

(Caí em mim... sou a mãe mais feliz do mundo!)
14
Jul15

[instantes ilustrados] melguices...

beijo de mulata
Esta noite, estava eu sentada com o meu baby-de-mulata, no sofá, de mãos dadas, a ver um filme da Disney, quando recebo um MMS de uma mãe aflita. Geralmente são fotos que me apresso a apagar porque apesar de compreender que os pais queiram ilustrar o sofrimento que descrevem e sentem literalmente na pele dos seus bebés (e que não se sintam à vontade para descrever com propriedade vocabular as alterações que veem), invariavelmente colocam-me um pouco desconfortável quando se trata de assaduras e candidíases de zonas íntimas. Há fotos que não me importo de ver, mas que não quero manter na memória do telefone...

A imagem, desta feita, mostrava uma criança serenamente a dormir, com uma borbulha tipo vesícula bem focada sobre o olho... E a pergunta: "Será varicela, Doutora?"

Seguiu-se mais uma troca de mensagens animada. A mãe respondia que não, que não tinha muitas borbulhas mais, só mais dus ou três dispersas pelo tronco. Que havia um primo que tinha inciado a doença dias antes. Ao que respondi que o período de incubação não é tão curto, só se se tivessem infetado ao mesmo tempo há duas ou três semanas. Enfim, chegámos à conclusão de que era necessário aguardar a evolução para fazer o diagnóstico.

Horas depois, pelas 04:00 da madrugada recebo nova MMS. Desta feita, uma mancha vermelha meio esborratada, ao lado de um ponto preto, num fundo branco. Meio estremunhada, com cara de ponto de interrogação ensonado leio a mensagem: "Doutora, acho que matei "varicela". Estava cheia de sangue e agora jaz na parede do quarto. Obrigada pela atenção."

E pronto. Paz à sua alma...
03
Mai15

[as melhores do serviço de urgência] uma questão de boa educação...

beijo de mulata
Três da manhã, Urgência de Pediatria ainda muito movimentada. A avó de um menino de quatro anos que conheço desde que nasceu, com múltiplos problemas de saúde e que em tempos difíceis reanimei duas vezes na mesma noite, entra-me, esbaforida, no gabinete.

- Mais uma convulsão, doutora.
- Boa noite, avó, não há meio de uma pessoa se habituar a isto, não é verdade?
- Pois não, doutora, coitadinho do meu menino. Desta vez foram dois minutos.
- Mas passou sozinha desta vez? - resposta afirmativa da avó - Que medicamento é que o menino está a tomar para a epilepsia?
[Baixinho, a medo] - É o "Dá práqui".
[Pausa para reflexão fonética]- O Depakine? - Arrisquei.
[Sorriso de orelha a orelha, aliviado, voz muito mais assertiva] - Isso, o "Dê práqui"! Afinal era fácil!

Isso! É só uma questão de tratar o medicamento por você em vez de o tratar por tu.
15
Jan15

[vozes brancas] felicidade é...

beijo de mulata

... estar à espera da segunda filha, passar toda a gestação a inventar estratégias para preparar o nascimento de forma a que não afete a mais velha e... chegar à hora da verdade e ver-lhe um sorriso de felicidade estampado no rosto. Passado uns dias, a babada irmã mais velha olhava embevecida para a bebé e comentou com a mãe:

- Sabes, mãe, estou tão contente... era mesmo esta mana que eu queria!

(E eu, que tenho a melhor profissão do mundo, comovi-me...)
07
Dez13

[vozes brancas*] false friends

beijo de mulata
Há tempos no centro comercial, o baby-de-mulata, habitualmente está sempre pronto a saltar para dentro de qualquer carrinho daqueles em que só é preciso pôr uma moeda para desatarem cantar e dançar, desafiando o direito à autodeterminação gravítica de qualquer criança, desta vez recusava-se a entrar no carro onde estava o Mickey Mouse. Um Mickey numa locomotiva de comboio (e o que ele adora comboios!), bem desenhado, muito bem disposto e simpático, que acenava aos meninos que passavam.

Pior, para meu espanto, encaminhava-se para o carro da Kitty, o meu ódio de estimação (onde-é-que-já-se-viu-uma-boneca-sem-boca-para-falar-valha-me-santo-antónio-do-sermão-aos-peixes) que, mesmo ao lado, tresandava a cor-de-rosinha, enfeitado por florzinhas pirosas. Não o estava a reconhecer. O meu baby-de-mulata, que literalmente me rosnava de cada vez que eu tentava cultivar o seu lado mais sensível. O meu filho que me ignorava olimpicamente sempre que lhe mostrava um bebé careca para ele embalar ou uma flor para, subtilmente, lhe ensinar que oferecer flores à senhora sua mãe é meio caminho andado para obter todos os seus desejos, agora de repente virava-se para a piroseira da Kitty? Não se deve cuspir para o ar, realmente.

 Até que lhe perguntei por que razão não ia para o comboio ao Mickey, ao que ele respondeu: "Porque não, mamã!" E passado algum tempo perguntou-me: "Aquele é o Mickey Mau? Porque é que o Mickey é Mau, mamã?" (Graças a Deus! Depois de devidamente esclarecido o equívoco e, sem qualquer forma de pressão adicional, qual filho pródigo deixou a Kitty e dirigiu-se para o comboio do Mickey com a felicidade estampada no rosto! Obrigada, filho, por confortares a mãe!)
05
Set13

[à beira do rio molócuè] anoitecer...

beijo de mulata
 
Uma mamã com o filho às costas tenta recuperar o seu precioso bidão de água que se lhe escapou no rio... Apesar de já existirem fontanários de água potável no Gilé, essa água é cara e as pessoas não se conseguem dar ao luxo de a utilizar para outros fins que não para beber. A água para cozinhar (que vai ser fervida), para lavar a roupa e tomar banho vem toda do rio... um rio onde eu não entraria sequer para molhar os pés porque, para além do perigo dos crocodilos, está infestado de doenças. A vida nem sempre é simples na Zambézia...
(Gilé, Zambézia)
04
Set13

[welcome to my hospital] deliciosa farda!

beijo de mulata

 
A enfermeira Catarina é o máximo! Bem disposta, sempre sorridente, cool para os adolescentes e com uma paciência de Job para os pré-adolescentes, motiva, brinca, faz palhaçadas. E ostenta com orgulho as obras de arte dos seus doentes crónicos inscritas na bata! Deliciosa! Não liguem ao que ela tem na mão direita. Com um bocadinho de insistência, os meninos convencem-na a deixar...
(Hospital Dona Estefânia, Lisboa)

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