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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

10
Mar16

[inspiração para uma despedida] até sempre, irmã

beijo de mulata
Quem me conhece ou acompanha há mais tempo este blogue sabe que houve um blogue-antes-do-baby-blogue. Antes de ser mãe-do-baby-de-mulata eu era a beijo-de-mulata, e escrevia um blogue de aventura e saudade, um blogue que escrevia para manter vivas as recordações das missões em Moçambique, para que não me fugissem as imagens, nem os cheiros, nem as palavras, nem as músicas... nem a Irmã Lourdes. A irmã que me ajudou em tudo, que foi minha mãe, amiga, companheira, orientadora, animadora, mediadora cultural. Foi com os olhos dela que aprendi a amar o povo macua, compreender os seus paradoxos, as suas angústias, perdoar as suas negligências e atrocidades, admirar o amor incondicional que tinham pelas crianças, respeitar as tradições que protegiam as mulheres, as crianças e os idosos. Com ela aprendi a conhecer crenças, ritos, feitiços, aprendi a compreender de que falavam as pessoas no hospital quando me falavam de doença e o que esperavam de mim. E aprendi que só conhecendo a cultura podemos tratar verdadeiramente as pessoas, conquistar a sua confiança e comunicar.

Há dois dias, depois de quase um ano de luta contra uma leucemia debilitante, não resistiu mais e partiu... Desgraçadamente não pude estar presente no funeral, porque o baby-de-mulata anda adoentado e com mãezite agudizada e porque tinha uma sessão da "Oficina de Pais" para crianças com atraso de desenvolvimento de que era responsável. Mas como ela própria dizia lá em Moçambique, quando eu chegava atrasada à missa depois de um dia longo no hospital: "Não te preocupes, trabalhar também é rezar..."

Felizmente a minha mensagem de despedida chegou a tempo para ser lida no funeral. Foi o meu milagre desta manhã.

"Meus queridos amigos, é com muito pesar que por motivos familiares e profissionais não posso estar presente nesta última despedida da nossa querida Irmã Lurdes, mas gostaria de deixar o meu testemunho como leiga que conheceu uma mulher santa, uma mulher de coragem, absolutamente extraordinária.

Conheci-a em Iapala, província de Nampula, em Moçambique, quando a missão estava no seu apogeu. Para quem a conheceu, a missão era um paraíso no meio de uma paisagem avassaladora, com montanhas, savana verde e céu a perder de vista. Era também um oásis num mar de dor e devastação, de doença a pobreza. E a Irmã Lurdes tinha passado a guerra com o povo. Tinha comido à mesma mesa que os habitantes locais, tinha passado fome com a população, tinha dormido no mato muitas vezes, para no dia seguinte descobrir que uma cobra ou um escorpião se tinha ido aninhar no meio da esteira com ela. Nunca teve medo. No tempo da guerra as cobras não mordiam porque o homem fazia parte da paisagem. Durante a guerra sofreu ataques de bandidos, pilhagens sucessivas, tratou feridos, consolou órfãos e viúvas, tratou doenças até ao limite das suas forças.

Quando conheci a Irmã Lurdes, a guerra já tinha acabado, já não havia minas, já se podia andar com o jipe pelas picadas. A irmã, baixinha, frágil e com voz um pouco trémula, era a última pessoa que eu imaginava ver num jipe enorme a atravessar pontes feitas de bambu, atravessar areais onde se podia ficar enterrado sem dó nem piedade, e a fugir com destreza de buracos no meio da estrada capazes de partir um camião. Dava assistência no hospital, cuidava das meninas do lar, assistia a população envolvente e deslocava-se quase diariamente às quase cem comunidades distantes para vacinar as crianças e as grávidas, pesar os bebés, confortar quem tinha visto morrer os seus entes mais queridos, tratar os doentes que sabia tratar, com os medicamentos da sua bolsa verde-tropa de onde saiam os artigos mais improváveis... e transportar para o hospital da missão quem só no hospital pudesse receber assistência.

Mas a Irmã ia deixar Iapala. Na altura em que a conheci, já estava de partida. Ia fundar a missão do Gilé, na Zambézia. E eu perguntava-me como seria possível deixar Iapala, aquele paraíso fantástico, e ir para uma terra onde não havia nada, onde até as mandiocas eram raquíticas, onde até o terreno tinha areia, onde nem a fé nem a esperança vingavam e a morte espreitava atrás de cada cajueiro. Mas a sua coragem e confiança era inabaláveis: Se era para lá que Deus a mandava... seria para lá que iria! Com a alegria de quem vai ver nascer um novo mundo! E foi o que aconteceu. Podem não acreditar, mas eu vi o "antes" e o "depois". Todo o distrito se desenvolveu com a chegada das irmãs. A Irmã Lurdes tinha fama de santa entre as pessoas. Todos a procuravam e respeitavam. Vinham partilhar dores, preocupações e depois trazer alegrias.

Quando a sua doença começou, cedo percebeu que o fim da vida se aproximava. Mas a sua fé permaneceu inabalável. Se Deus a chamava, pois com certeza que iria! Quando Deus quisesse. E continuou espalhando fé e esperança por onde passava, desde casa até ao hospital, menos por palavras do que pelo exemplo de força e coragem.

E tenho a certeza de que partiu para casa do Pai com a mesma confiança de sempre. E podemos ter a certeza de que de hoje em diante, o próprio céu será um local ainda melhor com a sua presença!

Deixa-me desolada, ainda assim, por não me ter conseguido despedir de si... Parece que é a minha cruz, a de por vezes não chegar a tempo... Mas bem-haja por todo o bem que fez e por tudo quanto me fez descobrir!

Até sempre!"
20
Dez12

[para a joana] nada temas, porque tudo recomeça...

beijo de mulata
 
Amanhecer no Índico...
(Praia das Chocas, Nampula)


Que o medo não te tolha a tua mão
Nenhumaocasião vale o temor
Ergue acabeça dignamente irmão
falo-te emnome seja de quem for (...)

Mas tudo é apenas o que é
levanta-te do chão põe-te de pé
lembro-te apenas o que te esqueceu

Não temas porque tudo recomeça
Nada se perde por mais que aconteça
uma vez que já tudo se perdeu


Ruy Belo
15
Ago12

[outras palavras] inspiração para uma despedida

beijo de mulata


Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.

Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.

Às vezes, como uma moeda,
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.

Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que só tu me conheces.

Onde estavas então?
Entre que gentes?
Dizendo que palavras?
E porque vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?

Caiu o livro que sempre escolhíamos ao crepúsculo
e como um cão ferido rolou a meus pés a minha capa.

Sempre, sempre te afastas nas tardes
para onde o crepúsculo corre, apagando as estátuas.

Pablo Neruda in Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada
13
Mai12

[inspiração para uma despedida] bernardo

beijo de mulata
 «Pareceu-te um dia bom para nos deixares, Bernardo. O sol apetecia e as fotos, que tanto amavas, chamavam-te para a beira da falésia. Como viveste, também foi no precipício que derradeiramete te apeteceram os imensos dons com que brilhaste. (...) Sempre te achei um pequeno génio escondido num corpo grande e numa bondade estonteante. Diferente de tudo, de todos, da Música que eras por dentro, foste diferente ao nos deixares tão sós, tão perto do medo, tão frágeis. Diferente foste ao partir tão cedo, Bernardo. Esperar-te-ei sempre (...) a ocupares com as tuas imensas mãos o piano que nunca soou tão bem, a inundares de vida e ruptura este mundo que tanto necessitava agora de ti. Descansa enfim, meu amigo. Há pianos onde estás, tenho a certeza»
Pedro Abrunhosa
29
Jan12

[inspiração para uma despedida] o tesouro que te deixo...

beijo de mulata
Tenho apenas uma certeza. É que te deixei um tesouro. É verdade isto que te digo! Talvez um dia o compreendas, não agora, que sei que o desconforto ainda não se foi. Aquilo de mais precioso que te deixo não são as recordações do que vivemos, por mais bonito que tenha sido, mas a verdade que viste nos meus olhos quando te reflectiam, e a minha confiança inabalável em ti. Eu sei, não acreditavas nessa imagem de perfeição. Era um disparate, dizias. Era um delírio meu, pensavas. Talvez em algum momento tenhas quase acreditado, não sei. Mas isso é tão irrelevante... A única verdade é que tu gostavas dessa imagem. E é esse o motor de todas as vidas. E também o rumo e o sentido de todas elas: a vontade de se assemelhar a uma imagem reflectida.

De resto, deixo-te o que não vivemos. Acrescentado de um bocadinho de flor-de-sal: a convicção de que terias sido capaz. E que portanto é possível. Não comigo, obviamente, que já não estarei aqui. Mas tenho uma fé indestrutível de que vais ser feliz!

[Variações de Raoul Follereau]
08
Dez11

[o regresso a iapala] em jeito de epílogo...

beijo de mulata





O regresso a Iapala...
(Nampula, Moçambique)

(...continuando a história que começou aqui...)

E no final da semana voltámos para Iapala. Íamos todos eufóricos e de coração leve. O carro, que à ida tinha parecido o carro dos loucos, parecia agora o carro do circo, connosco a cantar estrada fora. Eu com uma alma nova, já com o sono atrasado em dia, a Inês e o Sr. Rafael totalmente renascidos e o Cachimo felicíssimo ao meu lado, amoroso e trocando comigo olhares cúmplices. A família a quem tínhamos dado boleia para o Hospital Central bateu-nos à porta dias antes da partida e partilharam o carro connosco. Claro que tivemos outro furo. No mesmo pneu, que não devia ter ficado bem consertado na oficina… Desta vez, sem crianças doentes e sem angústias, mudámo-lo nós. Todos juntos, num trabalho em equipa, os risos que se diluíam no meio do silêncio e do cheiro da savana. A Inês foi recebida em euforia pelas outras meninas da casa, a Irmã Lurdes ficou comovidíssima e a madrinha dela cumpriu de alma e coração a intenção de lhe pagar os estudos até ao fim da faculdade.

Foi na semana seguinte, em Iapala, que conheci o J. F., director da ONG com que colaboro. Chegou com um padre comboniano para visitar a Missão e o trabalho da Irmã Lurdes com os leprosos. Encontrou-me no hospital. Vinha a comentar, na sua boa disposição, que se devia ter inadvertidamente transformado num homem muito mais respeitável durante viagem, porque todos os polícias por que tinha passado o tinham tratado por “Sr. Padre”.

– Ou terá sido só da barriga? É que o Padre Alberto é muito mais magro do que eu e os polícias acharam todos que ele era o meu empregado. Ahaha!
– Sim, só pode ter sido isso – brincava o Padre Alberto – eu ao menos tenho cara de empregado de padre, sempre me “emprestas” alguma dignidade. Podia ser pior. Podia ter cara de empregado das finanças…

Foi uma noite de boa disposição! Falou-me do trabalho da associação na luta para a erradicação da lepra e na assistência médica e moral aos doentes. Eu estava tocadíssima pela história da Inês. Nunca antes tinha sentido tão na pele o sentido da palavra “estigma”. Daí que quando, meses depois, me convidaram para ir novamente para Moçambique integrada no programa de combate à lepra emocionei-me. Claro que aceitaria. Por pouco tempo que fosse. Se pudesse devolver a vida a alguém que ainda tivesse vida, a minha própria vida teria mais sentido.

E pronto, foi assim que tudo começou. O que se seguiu, talvez um dia vos conte... Acompanhei outros voluntários no seu trabalho lindíssimo. E fui testemunha de verdadeiros milagres. E assisti à alegria de ver devolvido um futuro a muitas vidas que afinal não tinham terminado!

No ano seguinte a Irmã Lurdes fundou a missão do Gilé, na Zambézia (como foi que ele teve coragem de deixar Iapala é coisa que ainda hoje me intriga...). A Inês foi com ela porque em Iapala só havia escola até à 7ª classe. Completou a 12ª no Gilé e foi depois estudar enfermagem para Quelimane. A última vez que soube dela, estava a trabalhar em Tete, já com o curso tirado e, imagino, casada e já com filhos. Os pais ainda hoje de vez em quando me telefonam ou mandam SMS a agradecer o que fiz pela filha. Por vezes, quando alguma das Irmãs vem a Portugal, mandam-me pequenos presentes: castanha de caju, café da sua machamba, desenhos feitos pelos irmãos mais novos da minha menina. Enchem-me a alma. Quero acreditar que ela é feliz.

Obrigada a todos os que vieram comigo nesta viagem...
(um) beijo de mulata
07
Dez11

[outras palavras] reconstruir-se...

beijo de mulata


Homem triste à janela...
(Ilha de Moçambique, Nampula)
Foto da net. Mais uma vez lamento mas não tenho o link...


Demoro-me no outro lado de mim
porque me atrai
esse ser impossível
que sou
esse ser que me nega
... para que seja ainda eu

Porque desejo esse alguém
que me invade e me ocupa
que me usurpou a palavra e o gesto
me fez estrangeiro do meu corpo
e me deixou mudo, contemplando-me.

Lanço-me na procura da minha pedra
no infindável trabalho
de me reconstruir
recolhendo os sinais do meu desaparecimento
percorrendo o revés da viagem
para regressar a um lugar inabitável.

Todas as vezes que me venci
não me separei do meu sonho derrotado
e, assim, me fiz nuvem
reparti-me em infinitas gotas
para que fosse bebido, vertido, transpirado
e voltasse de novo a ser céu
transparência de azul, harmonia perfeita
e poder regressar ao lugar interior
para me deitar, de novo,
no sangue que me iniciou.

Mia Couto
06
Dez11

[aviso à navegação] a história da inês chegou ao fim!

beijo de mulata
Dois meses depois, com angústias pelo meio, reclamações, unhas roídas, desistências, risos e desesperos, a história da Inês e do Sr. Rafael chega ao fim com todos vivos e saudáveis. Há ainda umas pontas soltas e por isso vou ter de fazer um epílogo (sim, que qualquer história que se preze tem sempre um epílogo), até porque ainda vos vou contar como foi que regressámos a Iapala e, mais importante do que tudo o resto, o que foi que fiz com o que esta história me ensinou, que não foi nada pouco... A todos os que conseguiram chegar ao fim da história: os meus parabéns! A vida afinal também pode ser simples.
01
Dez11

[inspiração para uma despedida] requiem em mal menor

beijo de mulata

Girl with umbrella 
 (Street art by Banksy, New Orleans)

Menina, o céu às vezes vinha sacudir as nuvens sobre os teus olhos para que o teu corpo as temperasse de sal (ou de saudade, que é a flor-de-sal à tona da memória)... e então o teu corpo transbordava. E o céu chovia. Ou chuviscava, pelo menos, que dizem que a chuva molha-tolos reaviva as memórias delicadas e reaquece as recordações que teimam em esfriar...

Mas sabes, esta noite sentiste o sol queimar-te a pele e então percebeste que era o sal do teu corpo que estava exausto. Eu sei quando foi que aconteceu. Foi quando o céu deixou de chorar por ti. Agora podes escolher: ir ao fundo da memória e chorar sozinha, com o sal grosseiro e sujo que não se esgota, ou ser feliz, sob um céu sem nuvens. E chorar só de vez em quando, com a caixinha de flor-de-sal que guardaste para as memórias felizes.

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