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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

06
Mai17

[welcome to gorongosa] encontro com um pangolim

beijo de mulata

Pôr do sol na Gorongosa e Pangolim
(Gorongosa, Sofala, Moçambique)


Transcrevo uma parte de um texto que me tocou particularmente. A Gorongosa representa a parte de mim que acredita que há de regressar a Moçambique: é que eu sei que vou voltar porque nunca fui à Gorongosa! Daqui.

1 Maio, 2017


Maximillian Prager, Harvard University, Turma de 2019, Biologia Orgânica e Evolutiva

No verão de 2014 encontrei-me pela primeira vez em África, pela primeira vez vivendo longe dos meus pais, e pela primeira vez colocando a fascinação da minha vida pela fauna bravia em ação. Eu era um estudante do ensino médio de Nova York, a estudar no Laboratório de Biodiversidade E. O. Wilson, com os biólogos e conservacionistas do Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique. Mais especificamente eu estava a trabalhar com Piotr Naskrecki, um entomologista, fotógrafo de natureza, diretor do Laboratório Wilson, e meu mentor e amigo. Ao voar para o Parque, eu não sabia que iria “gastar” os meus dois verões seguintes neste lugar, e que ficaria tão encantado com a paisagem, a fauna bravia, as pessoas e a causa da conservação da natureza.

A minha primeira curta visita ficou repleta de experiências inesquecíveis. No meu breve tempo no Parque, segui bandos de leões acompanhado por especialistas, segurei uma inhala que dava coices enquanto um veterinário a tentava anestesiar e colocar uma coleira de rádio, apanhei morcegos em redes de malha fina, e fui continuamente mordido, arranhado, picado e pulverizado por uma miríade de pequenos répteis e invertebrados. No entanto, o episódio mais memorável desse primeiro verão em Moçambique foi o meu envolvimento no resgate de uma mãe pangolim e do seu bebé.

O pangolim terrestre (Smutsia temminckii) é um mamífero bizarro nativo da África subsaariana. O pangolim movimenta-se lentamente mas é surpreendentemente elusivo, e alimenta-se de térmites; preenche um nicho ecológico semelhante, embora totalmente alheio, aos tatus das Américas. Com a sua cauda longa, garras escavadoras arredondadas, e uma armadura de placas queratinosas, o pangolim é uma verdadeira quimera. Pode ser encontrado em várias formas em toda a Ásia e África, algumas terrestres e outras arbóreas. Nunca poderíamos supor que o pangolim é o mamífero mais traficado ilegalmente do planeta. Os pangolins têm muita procura na China e no Vietname, onde sua carne é considerada uma guloseima, e as suas escamas são falsamente acreditadas como a cura para o reumatismo e a artrite. A prevalência de uma infeliz e desnecessária causa de morte dessa incrível criatura não passa de uma farsa.

Os pangolins não são fáceis de encontrar. Ao longo dos seus anos de investigação, não só em Moçambique, mas em toda a metade sul da África, Piotr nunca “tropeçou” num pangolim. Na verdade, parecia que o pangolim sempre se escapava à sua vista; ao voltar ao acampamento uma noite, ele poderia ouvir dizer que outro cientista tinha visto um, mas que não sabia onde Piotr estava na altura, ou que não tinha uma câmara à mão. O pangolim era a baleia branca de Piotr, como me foi lembrado repetidamente nos dias que antecederam o encontro.

No dia anterior ao que eu tinha programado para deixar a Gorongosa, recebemos a notícia de que um caçador furtivo numa aldeia próxima tinha dois pangolins na sua posse, uma mãe e um bebé. Ele estava anunciar a sua venda por 23.000 Meticais, na altura o equivalente a cerca de $750 US. Alguns guardas do Parque partiram para prender o ladrão e recuperar os animais. O par foi recuperado com segurança, pelo que soubemos naquela noite, e permaneceu num quarto de armazenamento até à sua libertação. Seria nossa responsabilidade encontrar um lar adequado para eles e entregá-los de volta ao Parque.

Na manhã seguinte, horas antes de sair do Parque, eu saltei para a nossa Toyota Hilux com o Piotr e a Jen Guyton, uma mamalogista, e fomos buscar os pangolins. Estacionámos o carro, e Piotr entrou na pequeno quarto de armazenamento para ir buscar os pangolins. Minutos mais tarde, ele ressurgiu com os braços em torno de uma esfera pesada e com escamas que se assemelhava a uma alcachofra gigante. Colocou-a nos braços de Jen e ligou o carro. Depois de algum tempo o esfera descontraiu-se, e um focinho longo, semelhante ao de um galgo, emergiu para provar o ar exterior pela primeira vez em poucos dias. Levantando mais a cabeça, revelou um pálido recém-nascido, coberto por uma pele de escamas que lembravam unhas frágeis. As mães pangolins, quando ameaçadas, enrolam-se em torno dos seus bebés para os proteger. O odor do bebé era mais comparável ao cheiro de uma caixa de parto após um cão ou gato ter dado à luz, ligeiramente suave, mas acentuado pelo aroma do leite doce. Sobressaltada pelos solavancos da condução, a mãe desdobrou-se mais uma vez, derramando o bebé no meu colo. Piotr disse-me para agir rapidamente - eu tinha que segurar o bebé perto do meu peito e protegê-lo. O bebé tremia nos meus braços. Ele era muito delicado para ser movimentado. Assim segurei-o de forma apertada enquanto acelerávamos em direção ao nosso destino.

O ponto de libertação foi uma área de mato arenoso pontilhada com termiteiras; a mãe pangolim teria muita comida aqui. Jen colocou o par no chão, com a mãe desenrolada. O poderoso pangolim parecia um gigante de madeira, como uma montanha com garras, apenas encolhido para o tamanho de um cão de raça “beagle”. Ela colocou o bebé às costas tal como esperávamos. A montanha em miniatura ergueu o seu longo focinho e começou a caminhar para o mato. Quando ela desapareceu, o farfalhar da relva e o estalar de pequenos galhos foram ficando cada vez mais fracos.

(Ler mais aqui)
22
Mai12

[outras palavras] "é leão?" "nada, é moçambicano mêmo!"

beijo de mulata



Os elefantes da Gorongosa, a cuidar da sua beleza com pó di terra...
Fotos daqui

(continuando...)

Uma outra noite, a caminho de uma espera aos elefantes que andavam a dizimar as machambas, atravessando uma aldeia - seriam umas 4 horas da madrugada -, veio ao nosso encontro um homem armado de catana. Era o chefe da povoação que pedia ajuda para perseguir um leão que pelas 20 horas tinha emboscado um rapaz à porta da palhota (julgo que era seu filho…). Não consigo descrever a expressão de angústia no rosto daquele homem e nem a impressão sentida. África dá-nos a provar todas as sensações, mesmo as do horror. O corpo do rapaz foi recuperado ao amanhecer, mas do leão não ouve notícias, perdeu-se na imensidão da mata cerrada.

Os rastos que víamos provavam haver vários leões. Atacavam onde calhava, num raio de muitos quilómetros e nada dizia ser apenas um, vicioso. Nunca foram ao isco da carcaça do elefante, que seria tentador havendo pouca caça-grossa, salvo bastantes facocheros, os elefantes e algum gado, sobretudo cabras, em que não tocavam. Atacavam sobretudo mulheres e crianças, ou isoladas ou as últimas de um grupo, de tal modo que por vezes nem davam por isso a não ser quando notavam a falta! Estando as aldeias muito dispersas, poder-se-ia pensar que seriam leões oportunistas tornados caçadores de homens pela fome e que criaram este hábito pela facilidade em achar esta presa de substituição, ou então...

Numa daquelas soberbas madrugadas, ao lusco-fusco avermelhado, sereno, fresco e húmido, quando mais se sente o cheiro do mato e da terra, ao nascer do Sol, o Manel Carona parou o carro e foi "atrás da moita", levado por uma necessidade menos poética mas imperiosa... o velho Arruéque saltou para cima da caixa da carrinha com a .375 e postou-se atento, comentando entre dentes a falta de cuidado do "patrão Manéle”.

Aproveitei estarmos sózinho e achando que podia abordar o assunto, pois o avaliador e sabido caçador-pisteiro, seco e franzino, que a despeito de ter menos um palmo de altura sempre parecia olhar por cima de mim, já devia ter percebido que o respeitava e às suas crenças. De forma monossilábica, no escasso português que comungávamos, trocámos então algumas palavras:

kharamu*, Arruéque?"
Ele de olhos semi-cerrados e impassível, sem me olhar directamente:

"Nada! É moçambicano mêmo."
"E não pode fazer nada, uma cerimónia?"
"Hum!” [Sim] e depois em tom de impotência conformada, “Eles não acredita..."
"Vão na escola e julgam que sabem tudo, não é? Mas as coisas que acontecem no mato não aprende na escola, não é?"

Luziram os seus estranhos olhos amarelados de velho leão, e numa espécie de sorriso de dentes incrivelmente gastos: "Sim!"

A verdade é que aquilo que desdenhamos sentados a uma mesa de café, ali naquele local e naquele ambiente tendo já ouvido "cantar o leão" ao dormir no mato, dito pela boca daquele homem faz outro sentido... aliás é por isso mesmo que há muito deixei de frequentar cafés!


* Kharamu - "Leão" em macua.
Kharamu - O Leão Ruge em Moçambiquein Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco
(A propósito d'A Confissão da Leoa de Mia Couto)
20
Mai12

[outras palavras] leões, elefantes e antepassados

beijo de mulata



Fotos de uma visita à Gorongosa nos anos 60 (por Jorge Ribeiro Lume)
(Parque Nacional da Gorongosa, Sofala)


(continuando...)

Ora eu já vinha dando apoio ao projecto de instalação da empresa de safaris havia dois anos e tinha contratado caçar com a Negomano Safaris, mas combinara antes disso com o Manuel Carona, caçador profissional e sócio-gerente, que entre a partida e vinda de outros clientes iríamos passar uns dias com as nossas mulheres em Pangane, uma povoação na praia a Norte de Pemba, onde alugamos uma casa, por sinal a única de cimento, que era posto comercial de um chinês. A aldeia era habitada maioritariamente por pescadores que se dedicavam a secar o peixe. Existia mesmo uma curiosa e rudimentar estrutura frigorífica mantida por gerador para armazenar lagosta e onde era proibida a entrada não autorizada (com letreiro e tudo!). Para lá seguiram o Unimog, equipamento e pessoal necessários para a estadia. Além de mergulhar e pescar, de visitar o lindíssimo litoral e as numerosas ilhas, iria acompanhar o Manel, a quem havia sido solicitado apoio às populações, procedendo ao abate selectivo dos animais que faziam perigar vidas humanas e colheitas.

Por cerca de duas semanas percorremos a região, as lagoas, rios, matas e numerosos povoados, contactando de perto uma gente absolutamente isolada que nos festejava e sobretudo às duas senhoras brancas (coisa rara) com entusiasmo, regressada a um quase selvagismo, porém amável, inteirando-me do seu viver e da dura realidade de uma África já contaminada pela coca-cola, a mais terrível e implacável arma da colonização jamais inventada! Umas vezes rompendo ou abrindo caminho por força e graça do Unimog para chegar a aldeias recônditas, outras vezes eram os próprios aldeãos que, à catanada, reabriam picadas esquecidas para que pudéssemos ir até junto deles! Nesta fase, pela necessidade de rapidez, das distâncias e dispersão pelo mato, usávamos sobretudo o Unimog mas não nos poupámos a uma ou outra caminhada, das de sol a sol.

Os elefantes, numerosos e descontrolados eram a maior queixa e receio pela consequente fome que provocavam, destruindo e comendo colheitas no campo ou já nos eirados e celeiros rudimentares de cana, mesmo atacando e matando alguns camponeses que tentavam espantá-los. Mas o grande tema de conversa em breve passou a ser o dos leões devoradores-de-homens!

Recordei que na "Ronda de África", Henrique Galvão falava destas feras e também de práticas de canibalismo a coberto da actuação dos leões. Muitos outros autores referem estas seitas secretas, cujo objectivo era o consumo de carne humana, como os homens-leopardo, os homens-crocodilo e os homens-leão em diversos pontos de África, consoante nos grandes rios, florestas ou savana, quando homens simulam o ataque destas feras para ocultar as suas actividades e assim se cria a lenda de que possuem o poder de se transformar em animais e retomar a forma humana. Pallejá relata mesmo a história de um "leão" que só comia gente da mesma família, causou desconfianças e conduziu à descoberta de um destes casos! Vai mais longe ao recordar que os macondes haviam sido antropófagos. O próprio Galvão narra um caso que investigou, em que duas mulheres e dois homens, usando peles e garras de leão, encenavam e disfarçavam os seus crimes, comendo as vítimas, inclusive fotografou-os em simulação e com detalhe, fotos essas que ilustram a sua obra e depois reunido esse e outros casos, deram origem a um dos seus mais divulgados títulos, e talvez dos mais controversos: “Antropófagos”, de 1947 - Diário de Notícias.

Numa tarde quente em fim de jornada, descansando e comendo à sombra de uma árvore falei disto ao Carona e a conversa alargou-se a um moço que era nosso guia. O Carona perguntou ao seu pisteiro-chefe, o velho Arruéque, celebrante de cerimónias mistas de Islão e animismo, se tinha algum conhecimento disto. O velho fez-se desentendido mas o outro rapaz, parecendo saber alguma coisa falou-nos num muito mau e limitado português, de homens-leão, espíritos da floresta que castigavam os homens maus e os que faziam mal à floresta ou uns aos outros. Eram leões-fantasmas, antepassados que tomavam esta forma para avisar ou punir... enfim coisas que podiam servir muito bem a diversos fins, explorando a crendice e superstição de pessoas simples. Ouvi atentamente e contei o que sabia destas e outras lendas, sempre de forma séria. O Arruéque, que eu vigiava disfarçadamente, não perdeu pitada mas sem se desarmar ou manifestar.

Kharamu - O Leão Ruge em Moçambique
in Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco

(continua...)
19
Mai12

[outras palavras] as batidas ao leão

beijo de mulata

Foto de leão da Gorongosa... Daqui.


(continuando...)

Algumas destas aldeias e vilas remotas, perdidas no mato, têm vindo a ser flageladas pelos leões. As pessoas só se deslocam em grupos e de dia, as casas têm altas cercas, e há mesmo aldeias abandonadas pelos habitantes que se concentram nas sedes, como pude constatar.

Nos meses anteriores à nossa passagem por Mocímboa, haviam os leões morto 47 pessoas confirmadas, segundo relato e informação das autoridades, que recebiam estas queixas. E os elefantes ainda eram piores, pois comendo e destruindo as lavras semi-abandonadas pelos seus cultivadores, refugiados nas aldeias maiores pelo medo ao leão, ameaçavam provocar a fome nesta região. Foi nesse sentido que solicitaram ao meu amigo Manuel Carona que os localizasse e abatesse! A carne seria da população e o marfim recolhido pelo serviço da fauna, numa medida de gestão de super-abundância.

Durante as nossas deambulações na região, atrás dos elefantes, começaram, a partir de certa altura, a contar-nos episódios com leões! Víamos as suas pegadas em volta das habitações, seguimo-los no mato e contactámos directamente com a morte de um rapaz, naquilo que pode ser viver, realmente, no mato.

No último dia em que fomos tentar perseguir um leão agressor, tendo saído de noite, regressámos à casa na praia ao fim da manhã, frustrados, cansados e aborrecidos pelo insucesso e dificuldade da empresa num mato muito cerrado com chão seco, duro e cheio de folhas, onde o leão não deixa rasto. A melhor prática era a visita regular e de madrugada às carcaças dalgum elefante abatido, donde todavia não comiam senão os macondes, (os macuas islamizados não comem elefante) mesmo depois de esta já estar bem "maturada", com oito dias de exposição e larvas aos metros cúbicos, cujo cheiro se sentia a 300 metros.

- "Maconde come tudo o que não lhe dá os bons dias”, dizem os macuas!

No caminho, por razões alimentares e para júbilo do Sverenga, um caçador local, fiz com a .458 um doble aos facocheros que sendo muito abundantes também causam prejuízos nas culturas, por sinal um deles bem bom de dentes! Quando chegámos a casa, encontrámos ali um jovem casal europeu no melhor estilo “eco-hippie-ONG”, típicamente ataviados de lenços e camisas largas indianas, sandálias e mochila, ela de farta cabeleira crespa apanhada, cheia de missangas, búzios e ornamentos como uma selvagem urbana, e ele de cabelo e barba curtos mais os fatais óculos redondos de armação em metal. Não percebemos quem eram ou de onde vinham mas andavam a passeio segundo diziam. Ela falava em francês, ele num português com sotaque abrasileirado. Após confirmarem que os poderíamos albergar e alimentar, a rapariga, pálida, reprovadora e julgo que não vegetariana porque depois e talvez por caída na realidade de onde estavam e não haver por ali restaurante nem supermercado fez-se ao bife dos facos, inquiriu imediatamente com a desfaçatez de quem se julga dono do mundo, porque é que “estávamos a matar animais”? O Manel Carona, com pouca paciência, resumiu o que se estava a passar. A jovem trocou imediatamente o ar seguro de missionária convicta por uma expressão de pânico, e perante confirmação das pessoas que ali se encontravam, declarou decidida ao companheiro que acabava ali o passeio e não abandonaria as paredes do pátio nos dois dias em que ficariam à espera da boleia de regresso. Nós, os "maus", partimos naquela tarde para Montepuez.

(continua...)

Kharamu - O Leão Ruge em Moçambique
in Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco
18
Mai12

[outras palavras] o tributo ao leão...

beijo de mulata

Um leão na Gorongosa...
(Parque Nacional da Gorongosa, Sofala)
Foto daqui. Para um vídeo sobre os leões da Gorongosa, podem também ir ali.

(continuando...)

Que distância vai do computador onde isto é escrito às estradas poeirentas onde aquilo acontece!
Moçambique sempre foi país de leões e comedores de homens, sobretudo nas províncias do Norte além-Zambeze. Terra onde as lendas se cruzam com a realidade, pela dureza do dia-a-dia nestas paragens onde ainda se vive na e da natureza e o passado se mistura com o presente.

Nas zonas rurais do Norte, na província de Cabo Delgado e vizinhas, vive-se como sempre se viveu em África: a população junta-se em pequenos povoados, aglomerado de palhotas, todavia limpas, perto de uma fonte, rio ou poço de água. Em volta fazem as suas "machambas", terras que a poder de fogo, catana e enxada, são limpas de mato e onde cultivam sobretudo mandioca e um cereal, a mapira, base da sua alimentação.

Espalham-se estas aldeias e lugares por vasta área, em volta de uma maior que é a sede, onde haja escola, eventualmente posto comercial ou se faz comércio a céu aberto. Ligam-se entre si por caminhos de pé-posto, sendo as povoações principais servidas por picadas, onde circulam raros camiões ou carrinhas transportando alguma gente e mercadorias, ao sabor da existência de combustível e matérias de troca, mas na maior parte, tudo se faz andando e carregando à cabeça, ou de bicicleta os mais afortunados.

A vida é regida pelo nascer e pôr-do-sol, ao ritmo das estações seca e chuvosa, entre as lavras e a pesca, de onde obtêm parco sustento e o pouco mais de que precisam.
São muito pobres, conseguindo porém não ser miseráveis, pois a sua atitude é a de gente simples, conseguindo sobreviver, duramente e com muito pouco. São gente remota e esquecida, aldeãos do mato, sem electricidade, assistência médica, nem as mais elementares comodidades como mobília ou água corrente, que sabem fazer arcos e flechas para caçar "cacas"(galinhas-do-mato), “ipálas” (cabras-do-mato) ou "pacos" (facocheros); que sabem fazer cordas de tiras vegetais para armar laços e redes; sabem caçar, pescar, colher mel e plantar. Navegam nos seus barcos à vela ou canoas a remo, tecem esteiras, constroem secadores, vedações e casas, trabalham o ferro para as suas ferramentas, talham e esculpem madeira... estão no seu elemento.

Mas do seu elemento faz também parte o leão!

Vivem com ele e a ele pagam tributo, o tributo que outros pagam às minas, às balas, às doenças, aos acidentes rodoviários e outras violências quando trocam a aldeia limpa pela cidade imunda onde pedem esmola ou vivem outras servidões de miséria.

(continua...)

Kharamu - O Leão Ruge em Moçambique
in Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco
17
Mai12

[outras palavras] o leão e a vida no mato...

beijo de mulata

Leões da Gorongosa...
(Parque Nacional da Gorongosa, Sofala)
Foto daqui.

(continuando...)

O leão tem acompanhado a humanidade ao longo dos tempos, sempre como aquilo que é, um predador de topo que naturalmente impressionou homens e culturas.

Os primeiros hominídeos, aconchegados nos seus eventuais refúgios, terão tremido com o seu rugir nas madrugadas frias. Mais tarde, já poderosos caçadores, terão avivado as fogueiras nas cavernas e paliçadas, as mães puxado para si os filhos, pelo mesmo motivo: esse rugir, profundo e vibrante que parece viajar pelo chão e não pelo éter, na forma como ecoa em nós, trazendo-nos uma mensagem de morte violenta. A ameaça que encerra ainda hoje arrepia quem o escute ao vivo, seja na segurança de um cómodo lodge, seja numa tenda de campanha algures no mato, e leva-nos a passar a mão pelo frio aço da espingarda poisada ao lado, numa busca de consolo, comum ao do nosso longínquo antepassado.

O leão ocupa em África um lugar destacado, tanto na ecologia como no folclore. Os seus hábitos, poder físico e sobretudo o aspecto, de que se destacam o olhar e a voz, tornam-no sempre temido nas suas múltiplas relações com o homem, reservando-lhe também um lugar de relevo no nosso imaginário, bem patente na forma como é retratado na heráldica, tradição, no folclore, artes e tantas outras expressões desse fascínio, respeito ou medo!

Para quem, na comodidade de um sofá e com o frigorifico abastecido, o oiça e veja no ecrã‚ é fácil que o interesse se transforme em ideias que pouco têm a ver com a realidade de outros abrigados em casas de pau a pique, protecção que diariamente têm de abandonar para providenciar sustento e tratar da sua vida, movimentando-se dentro do território do leão… Para estes, qualquer deslocação seja para a escola, para a machamba, ir à água ou lenha, ir a uma consulta, ao peixe, à loja ou outra necessidade, implica jornadas de quilómetros e até dias, percorridos a pé, por caminhos do mato, acampando à sua beira e a céu aberto, por dentro de um vasto jardim zoológico sem vedações nem guardas, tão pouco armas de defesa eficazes... Imagine-se isto, ouvindo rugir o leão nas madrugadas e crepúsculos, cercados pela vegetação densa, sabendo que ontem ali, hoje aqui, foram apanhados um miúdo à porta da cubata, uma velha que foi à lenha, um retardatário no caminho...

(continua...)

Kharamu - O Leão Ruge em Moçambique
in Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco
15
Mai12

[outras palavras] kharamu...

beijo de mulata

Os leões da Gorongosa...
(Parque Nacional da Gorongosa, Sofala)

Karamu significa leão, lá no Norte de Moçambique entre macuas, macondes, e julgo que mesmo até à Gorongosa.

Os macuas, pescadores e agricultores, gente pacífica e islamizada que tradicionalmente usa o arco como arma, eram assim chamados pelos árabes por "usarem pouca roupa". Sendo os mais espalhados e numerosos, estiveram também sempre mais ligados aos portugueses de quem foram aliados.

Os macondes, tão aguerridos quanto hábeis artesãos, são homens do mato puros, cuja arma preferida é a lança. Têm uma longa história de resistência indómita, inclusive foram usados pelos alemães de Von Lettow contra os Portugueses, na I Grande Guerra. Pacificados só em 1936, rebelaram-se novamente com a eclosão dos movimentos armados na África Portuguesa. Ali, no seu planalto, a guerra foi sempre particularmente dura.

Estas terras longínquas, com uma história de isolamento e impenetrabilidade hostil, sempre foram terra de leão e, dos contactos destes com os humanos, sempre se contaram baixas de ambos os lados.

A maior e mais vivida referência que encontrei a leões devoradores de homens‚ foi no livro "Kináni” [Quem vive?], onde o então furriel miliciano Cardoso Mirão faz a sua crónica de campanha na Grande Guerra de 14-18, desenrolada lá no Norte de Moçambique.

Conta que os leões seguiam as colunas do exército, entrando de noite nos acampamentos militares, a que ele assistiu amiúde e com pavor, causando muitas baixas entre carregadores e soldados. Ao longo do livro faz inúmeras referências aos leões e seus ataques à população ou à tropa. Entre outros, descreve com minúcia um ataque a uma patrulha enviada em missão de ligação que foi forçada a regressar na sequência de ter sido cercada e acometida por leões, tendo ficado feridos alguns dos soldados indígenas ao alvejarem-se mutuamente na confusão da defesa.

Ainda José Maria de Pallejá, no seu livro "Sobre la pista de los animales salvages", faz referências quer à agressividade dos leões da região, quer  à lenda que vim depois a confirmar como verdadeira,  de que os macondes caçavam leões à lança, coisa que diz só os Masai fazerem também!

(continua...)

Kharamu - O Leão Ruge em Moçambique
in Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco

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