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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

13
Abr17

[psiquiatrices] uma crise de soluços improvável

beijo de mulata

Abril é o mês em que me lembro sempre, com um sorriso, desta improbabilidade que me aconteceu há já mais de 10 anos... Perdoem-me os que já leram e releram este post. Mas eu não resisto a contar de novo esta história...

O mentor espiritual desta blogger mulata certa vez teve uma crise de soluços. Nada há de extraordinário nisto, não fosse dar-se o facto de a crise ter sido desencadeada por um desgosto de amor e ter sido tão prolongada que o colocou em perigo de vida...

Dois dias depois do início da crise, exausto de tanto soluçar involuntariamente (sem nunca ter chorado, obviamente, que um homem não chora!) telefonou-me. A início não liguei nada. Que mal poderia advir de uma crise de soluços? Quase levei a peito. Mais valia que chorasse a sério no meu ombro e não deixasse o corpo chorar por si nesse chove-não-molha tão incomodativo. Retorquiu que não era nada disso. Estava com uma grande ansiedade, sim senhor, estava de coração partido, era verdade, mas que não tinha vontade de chorar. Tudo bem, respondia eu, que era certamente tudo verdade, que o Psiquiatra era ele, mas que isso era o corpo a chorar por ele, que viesse tomar café comigo que era o que fazia melhor... Não veio. De onde se conclui que um homem que não chora também não toma café com as amigas.

Mas no dia seguinte, depois de uma noite sem conseguir adormecer, ele estava uma lástima e com sensação de morte iminente. Com o otimismo que me caracteriza quando trato de pessoas de quem gosto e com os remorsos de quem tinha desvalorizado a situação clínica, comecei a pensar em coisas selvagens: um abcesso subfrénico, um tumor do tronco cerebral, uma neoplasia da pleura... Lá nos fizemos ao caminho para o hospital e, metodicamente, começámos numa ponta (na TAC de crânio, obviamente) e acabámos na eco abdominal. Nada. Saudável que nem um pêro, que um homem que não chora e que não toma café com as amigas também nunca tem nada de grave, ora essa, era só o que faltava.

Ficámos a olhar um para o outro... O que fazer a seguir? Seria desta, então, que íamos tomar café? Também não... Que a sensação de morte iminente não passava, que já quase não tinha forças, que se sentia mesmo mal, que estava quase a desfalecer. A sorte dele é que conseguia mesmo parecer o que dizia, respondi, de outra forma já estaríamos fora dali, na Versailles, a tomar café. E lá fomos para o laboratório fazer uma gasimetria. E qual não foi o meu susto, que ele estava com uma alcalose respiratória descompensada, com uma hipocaliémia e hipocalcémia (era grave, meus amigos, era grave...).

Pronto, já estava convencida. Que tínhamos de resolver aquilo (caraças para os homens que não choram, que são sãozinhos que nem um pêro, que não tomam café com as amigas e ainda por cima as deixam assim em situações difíceis) e só havia uma maneira: tinha de ficar internado e fazer uma injeção intramuscular de cloropromazina...

Que não, que nem pensar! Que me estava a esquecer que era Psiquiatra naquele mesmo hospital e que não podia ficar internado a fazer um antipsicótico. Nem que fosse life-saving. Ora, que como eu própria sempre dizia, ele que não se preocupasse, que mesmo que um Psiquiatra desse em doido nunca perderia a reputação entre os doentes. Nem mesmo entre os enfermeiros. Que não me fizesse de engraçadinha, que nem por sombras ficaria no hospital!

Estaria eu a ouvir bem? Para minha casa?! Nestas condições, se ocorresse alguma complicação havia risco de mortalidade (que 20% não era brincadeira!), mas foi inamovível. Ou em minha casa ou preferia morrer. Caraças para os homens que não choram mas que em situações destas se tornam drama-queens! (E vamos lá despachar a coisa, que a história já vai longa e a nossa vida não é isto!). Então resumindo, passei uma das piores noites da minha vida com ele a dormir placidamente, depois de os soluços terem passado. Doze horas depois, acordou muito bem disposto, embora a falar à "Prlesidente da Xunta" e a dizer que achava que se calhar precisava de um café para acordar...

De onde se conclui que os homens que não choram, também vão às vezes tomar café com as amigas, mas em pijama, depois de uma noite em casa delas... e só depois de uma dose valente de antipsicóticos..
19
Mar17

[histórias de amor] as visitas ao baby-de-mulata #3

beijo de mulata
(continuando a minha história de amor...)

Imagem obviamente da web...

Dias depois da saga na Santa Casa voltei ao centro de acolhimento temporário. O menino já tinha começado a frequentar o jardim de infância, mas nem por isso estava mais integrado, mais aberto a comunicar ou a confiar nas pessoas que o rodeavam... Já era mais fácil de cuidar, mas as preocupações continuavam as mesmas: não olhava nos olhos, não comunicava de forma nenhuma, não se interessava por brinquedos nem fazia qualquer esforço para os alcançar, parecia absorto no seu mundo, abria e fechava portas e janelas sempre que tinha oportunidade de as alcançar. Dessa vez e das vezes seguintes a cena da primeira visita repetia-se, deixando-me cada vez mais preocupada e triste.

Eu tinha estado a pensar e, já que o menino abria e fechava portas compulsivamente, talvez se interessasse por outro tipo de movimentos no ar, como o das bolas de sabão e dos balões, que quando os soltamos fazem movimentos irreverentes e imprevisíveis. Levava bolas, balões, brinquedos com luzes e música. Tudo para ver se o interessava noutra coisa que não a malfadada janela daquela sala de visitas. Mas eram frações de segundos... Tudo era demasiado intenso, demasiada informação, demasiado assustador. O calor era imenso, o que o deixava irritado, transpirado e a mim exausta. Afastava-se de mim ostensivamente, pesando-me cada vez mais no colo, por vezes aceitava água no biberão, mas não me deixava dar-lhe, tirava-mo da mão para beber sozinho. De todas as vezes fiz de tudo para captar a sua atenção, mas nada. Nem cantando, nem ficando calada, nem apontando para os carros que passavam na rua, nem fingindo que íamos cair...

Até que certa vez tenho ideia de ter começado a escurecer. Não sei bem como, se era julho e eu só tinha duas horas de visita (mais porque as funcionárias amorosamente fechavam os olhos), mas não eram horas de anoitecer, disso tenho a certeza... talvez uma nuvem tivesse tapado o sol, não me lembro. Sei que começou a escurecer. Eu já estava exaurida e ele cheio de sono, quando lhe peguei na mão e acendi a luz com os seus dedos moles e sem vontade... mostrei-lhe com entusiasmo que tinha sido ele a acender a luz, saltei e festejei aquele "feito". Miraculosamente, aqueles saltos e festejos tiveram o condão de o fazer sorrir pela primeira vez. Apaguei a luz com a mão dele. Mostrei-lhe que a luz se tinha apagado e depois acendemo-la novamente. O menino saltou-me no colo de imediato, como quem diz: "Então, salta, como fizeste há pouco!". Saltei novamente e ele sorriu de novo, agora numa gargalhada. Eu estava estupefacta! Como era possível um milagre destes, tão gratuito e tão simples? Ah... a força que um sorriso pode ter!

Então, mas... bastava saltar para o fazer rir?! Mas não tinha muito mais tempo, estavam quase a vir buscar o menino... continuei a abrir e a fechar a luz e a saltar com ele ao colo até que parei de propósito. Olhei para ele e, por um instante, cruzou os olhos com os meus. Pegou-me na mão e acedeu com ela o interruptor... Pela primeira vez parecia estar a dar conta da minha presença, a "instrumentalizar-me" eu sei, mas pelo menos a manifestar uma vontade... Pela primeira vez senti que afinal não era louca em ter esperança e em ignorar os cochichos das funcionárias: "Mas ela é médica, ela deve perceber que ele não é normal. Deve saber o que está a fazer e o que quer levar para casa..."

(Continua, pois, que não acabou mesmo!)
12
Mar17

[histórias de amor] as visitas ao baby-de-mulata #2

beijo de mulata


Há tempos comecei a contar a história do longo caminho que levou o meu baby até casa, antes de nos tornarmos família. Mas é sempre difícil escrever sobre momentos tão dolorosos, por isso me tenho esquivado a continuar a história. Mas hoje lá me decidi a continuar um pouco mais.

Nesse primeiro dia de visita à instituição, no final a funcionária pegou no menino ao colo e perguntou-me:
- É a senhora que quer adotar o menino?
- [Estranhei a pergunta. Eu não tinha feito constar no hospital que o queria adotar. Mas também não tinha pedido segredo às poucas pessoas que se tinham apercebido, talvez alguém tivesse comentado com alguém...] Sim, eu queria muito adotá-lo.
- Então se faz favor, fale com a nossa diretora, ela disse-me para lhe ligar se a pessoa aparecesse.

Peguei então no telefone, com a voz trémula. A diretora do CAT, do outro lado da linha, com voz viva e delicada perguntou-me:
- É o casal que quer adotar o menino?
- Eu quero adotá-lo, sim, mas deve haver algum engano, eu sou solteira, não sou casada.
- Ah [o tom de voz tinha mudado], é que me tinham dito que havia um casal interessado. Mas até agora não apareceram, nem deram sinal. E a senhora, conhece o menino de onde?
- Sou médica no hospital onde ele esteve.
- E está inscrita na Segurança Social como candidata a adoção?
- Ainda não, mas estou tratar disso.
- Então tem de tratar do assunto. E venha um dia destes falar comigo.
- Está bem.

Combinámos o dia e fui para casa com o coração apertado. O menino podia não ter olhado para mim, podia ter tido uma regressão de desenvolvimento, podia não recuperar, eu sabia, mas ele estava num sofrimento atroz e eu continuava apaixonada por ele. Era como se fosse um amor de adolescente. Daqueles não correspondidos e espinhosos, mas não tinha vontade nenhuma de desistir. Aquele menino esperava por mim, eu sentia-o desde o primeiro dia.

Na semana seguinte consegui finalmente reunir os papéis todos necessários para apresentação da minha candidatura a adoção na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e dirigi-me para lá (nos entretantos tinham-me roubado a carteira e tinha tido de ir refazer todos os documentos pessoais, para além da imensidão de documentos e certidões necessários adicionais). A assistente social do serviço de adoções que me atendeu foi muito prestável e informou-me de que sim senhora, eu tinha todos os papéis, mas que o sistema não funcionava assim. Primeiro tinha de ir à "Formação A" e só depois me poderia aceitar os papéis da candidatura. E que, by the way, o processo não era assim tão simples no meu caso, mas que depois me haveriam de esclarecer (eu bem vi que tinha franzido o sobrolho quando lhe tinha dito que me candidatava para uma criança específica... ou teria sido quando lhe disse que sim, que era solteira - ela tinha-me perguntado "É sozinha, não é?", mas não conseguia lidar com tanta informação ao mesmo tempo).

Ai, valesse-me Nossa Senhora, então tantos dias na Loja do Cidadão e ainda estava na estaca zero? E o que era isso de Formação A? Era a primeira das formações obrigatórias. E e também havia a B e a C, se queria saber, informou-me a assistente social, mas que isso eram já segundas núpcias. Eu que não me preocupasse, estava com sorte, haveria uma formação já agendada para a semana seguinte e, depois de um período de uns dias, que era obrigatório para poder pensar, poderiam aceitar-me os papéis. O atestado médico que eu tinha é que estava errado. Era preciso outro onde o médico atestasse que eu não sofria de cancro, infertilidade, doença psiquiátrica, etc. (já não me lembro bem) e deu-me a minuta para poder ir pedindo consulta no meu médico assistente.

Pedi dispensa no serviço para ir à bendita Formação A, a tal que abriria as portas para me poderem finalmente aceitar os papéis da candidatura. O meu chefe chamou-me: "Tu és uma mulher de armas, eu sei, mas já pensaste bem no que te vais meter?" "Já doutor, já pensei." "Então vai, rapariga!" Nisto já se tinham passado duas semanas desde a visita ao baby e chegou o dia da Formação. Uma sessão de esclarecimento em que bem mais de metade dos candidatos desistiram e não chegaram a entregar os papéis. Nessa mesma sessão era suposto preenchermos um questionário de 40 páginas com perguntas abertas do tipo: "Descreva sucintamente o seu percurso de vida e as razões pelas quais gostaria de adotar uma criança". Tinha 10 ou 20 linhas para responder a cada pergunta. Enfim, era o que tinha de ser feito. Depois dos dias regulamentares da "moratória", fui entregar os papéis. Ou melhor, pensava eu que ia "entregar os papéis". Mas o que se passou foi muito diferente:

Tive a sorte de encontrar uma pessoa extraordinária. Esta assistente social também franziu o sobrolho, tal como a anterior, quando lhe disse que me candidatava para adotar uma criança específica. Ao que parece a anterior não me tinha dito nada porque imaginou que eu desistiria nos entretantos, como mais de 80% das pessoas que os procuram num primeiro momento, e que portanto não precisaria de me explicar que o sistema não funcionava assim. E não pode funcionar, claro. Eu sei e sempre tive consciência de que não pode funcionar assim. As pessoas inscrevem-se e ficam em lista de espera e não podem passar adiante de ninguém que já se tenha inscrito há mais tempo. Nem me poderia ser atribuída qualquer vantagem por já ser "amiga voluntária" da criança. Assim qualquer um que tivesse acesso a hospitais, maternidades ou centros de acolhimento poderia ter vantagem. Fiquei gelada, mais uma vez. Tanta esperança para nada... Por um lado era o fim das minhas esperanças, mas por outro lado podia ser um alívio para o calvário que se adivinhava, com uma perturbação tão grave do desenvolvimento que o baby tinha... Ficaria dispensada dessa espinhosa cruz que me tinha proposto carregar... Mas não, não estava certo, não podia estar certo! Aquele era o meu menino, eu sabia-o desde o primeiro dia no hospital! Não era uma cruz, eu sempre tinha rezado por um menino que me caísse nos braços, mas para me cair nos braços tinha de ser um menino que mais ninguém quisesse! E não estava a ver mais ninguém a querer adotá-lo! Não podia baixar os braços.

- Mas eu não estou aqui para enganar ninguém - respondi, depois de vacilar -, eu estou aqui porque acho que ninguém vai querer adotar o menino. Ele tem vários problemas de saúde e todos graves. E tem uma perturbação de desenvolvimento. Eu quero muito ser mãe dele, é verdade, mas acho que provavelmente sou a única candidata nestas circunstâncias.

A assistente social franziu o sobrolho mais uma vez, fazendo o mundo cair-me aos pés de novo, mas em vez de me "despachar" com um "mas isso é ilegal e ponto final", resolveu dar-se ao trabalho de ir averiguar os factos. E estou-lhe eternamente grata por isso. Regressou mais de 45 minutos depois, após vários telefonemas, com a informação de que o que eu dizia era verdade.

- Tem razão, para esta criança não se vislumbram candidatos. Mas isto é até à data. Se entretanto aparecer mais alguém a situação poderá modificar-se. E só podemos fazer o estudo do seu caso com autorização do Senhor Provedor da Santa Casa.
- [Ah, finalmente, uma esperança!] Mas claro, quem pode pedir autorização? Sou eu? Eu peço!
- Sim, mas tenha calma. Vamos aceitar a sua candidatura, depois falamos sobre isso, por acaso o seu processo vai ser para a minha equipa. Vamos então marcar a primeira entrevista...

Nesse dia, depois de tantos momentos estranhos e tantas emoções contraditórias, cheguei a casa cheia de esperança... Talvez fosse mesmo verdade que o baby me estivesse destinado. Talvez não fosse só um devaneio, talvez fosse mesmo o meu sonho a tornar-se realidade!

(Há-de continuar...)
23
Fev17

[bullying no jardim de infância] histórias de fora de casa

beijo de mulata
Correu tudo bem, felizmente, obrigada pelo vosso apoio e preocupação. No dia seguinte estivemos a treinar o que fazer e o que responder em caso de novas investidas do pequeno bully lá da escola. Teatro cá em casa até à hora de dormir:

- Vá, baby, faz uma cara feliz. E agora uma cara triste. E agora uma cara de corajoso! Boa!

E ele lá ia fazendo as caras e nós quase nos desmanchávamos a rir.
- E que cara achas que poderias fazer se ele viesse outra vez para te bater?
- Uma cara de corajoso!
- Isso, vamos a isso! E agora o que podes dizer?
- Não me podes bater, ou nunca mais brincas comigo!
- Boa, mas desviaste os olhos, assim ele não te leva a sério. Tens de olhar para a cor dos olhos dele, vamos, olha para a cor dos meus olhos e diz!

E o papá tirava-lhe um brinquedo à má fila e ele olhava-o nos olhos com "cara de corajoso":
- Alto aí, aguenta os cavalos! Eu é que estava a brincar com isso!
- Boa, filho!

Quando o fui buscar à escola perguntei como lhe tinha corrido o dia.
- Correu bem, mãe, quando o B. veio para me bater eu olhei para a cor dos olhos dele e disse-lhe "as regras".
- [Fiquei espantada, não tínhamos falado em regras] - Que regras?
- Disse que se me batesse eu ia chamar o meu pai, que era o chefe das tropas e que nunca mais brincava comigo!
- [O chefe das tropas? Mas de onde é que isto veio?] E ele?
- Ele ficou a olhar e depois fugiu. Mas depois veio perguntar-me se eu queria brincar às preguiças.
- Ah... e tu?
- Eu fui brincar com ele.
- E depois?
- Brincámos às preguiças ao pé do escorrega. E depois às escondidas...

Ah, a beleza da infância! A vida é simples, felizmente... Ainda é cedo, eu sei, mas já se passaram dias e nem mais uma queixa!
17
Fev17

[bullying no jardim de infância] histórias de dentro de casa

beijo de mulata

 Ontem o meu pintainho saiu da escola a coxear com a vovó. Estava triste, magoado, não olhava nos olhos, respondia com monossílabos. A minha mãe tinha tentado fazê-lo falar ainda na escola, diante da auxiliar da sala, mas ele recusara-se a dizer o que tinha acontecido. Nunca ninguém o tinha visto assim... É um desespero saber que temos uma criança que não só não se defende como não consegue ir pedir ajuda nem contar o que se passou. Até que em casa lá conseguiu contar à vovó que tinha sido o seu amigo B. que lhe batera. Que quando se aproximara da auxiliar para pedir ajuda, o B. tinha começado a chorar e quem tinha acabado por ficar de castigo tinha sido ele. Vinha mesmo magoado. E pior, acabou por dizer que isto vinha a acontecer há muito tempo...

Quando cheguei a casa fiquei estarrecida... no meu trabalho sou confrontada diariamente com situações de bullying que tento ajudar a resolver de forma positiva. Por isso desde sempre tentei prevenir esta situação em casa. Em primeiro lugar, a última coisa que quereria era ter um bully em casa, por isso desde os quatro anos que praticamos "exercícios de empatia"... Não sei como se chama, mas pronto, eu chamo-lhe assim... Da primeira vez que me ocorreu falar sobre o assunto, perguntei-lhe se havia meninos que batessem em outros lá na escola. Respondeu-me que sim, mas que eram os "grandes". (Ele era dos "médios").

- E porque é que não se pode bater?
- Porque magoa, mãe.

Fiquei feliz com a resposta do meu pequenino. E desde então que sempre continuei. Em histórias lidas ao deitar e em situações hipotéticas: "Como achas que o menino tal se haveria de sentir se o outro lhe chamasse assim e assado? Como é que ele poderia responder?" Sempre o meu pintainho me passou com distinção nas provas e perguntas. Há tempos descobri o livro "Orelhas de Borboleta" da Luísa Aguilar, que achei mesmo útil, quer para despertar a empatia, quer para treinar respostas criativas e dar um exemplo de resiliência.

Mas eu vejo, felizmente, que não tenho um bully em casa. O meu baby não é impulsivo, não se zanga com facilidade, quando fica frustrado não tenta bater (nem a mim, que supostamente é a pessoa com quem mais está à vontade, nem atira coisas ao chão), quando brinca com os primos rapazes é barulhento e desobediente para com os adultos, mas nunca entram em lutas físicas nem se chamam nomes. E claro, também não vê nada em casa que possa replicar na escola, que não me venham dizer que os meninos batem do nada. Só batem quando são batidos! Por isso fiquei tão desconcertada quando percebi que o meu baby andava a ser vítima sem me dizer nada e ontem ainda tinha ficado com culpas, sem apelo nem agravo. Acabou ainda por me confessar que o B. o tinha ameaçado para não ir dizer nada à educadora!

De facto, nunca tinha batalhado no reverso da medalha. Na necessidade de pedir ajuda e de dizer sempre a um adulto, mesmo sob ameaça, se alguém lhe batesse ou o fizesse sentir mal ou desconfortável. E então contei-lhe a história verdadeira de um menino meu da consulta. Mr. Shaka, o meu marido, até me perguntava disfarçadamente se só seria uma história "daquelas que eu conto" mas é mesmo verdadeira, infelizmente:

- Sabes, filho, tive uma vez um menino a quem um professor fez mal.
- Bateu-lhe, mãe?
- Não, calcula tu, que quando estavam sozinhos, o professor lhe mexia na pilinha.
- Ah...
- Quem é que pode mexer na tua pilinha, tu sabes?
- Sim, só eu. E o pai e a mãe para lavar. - suspirei de alívio, ainda sabia, valesse-me Nossa Senhora. Também ando há anos a batalhar neste assunto.
- E então o professor dizia-lhe assim: "Se contares a alguém vais para o castigo". E o menino acreditou. Não contou a ninguém e andava muito triste, cheio de dores de cabeça. [Uma vez até foi à minha consulta e tentou dizer-me que o professor lhe fazia muitas perguntas e que isso é que lhe fazia dores de cabeça. Eu já vi muitas coisas e desconfiei logo, mas perguntei-lhe de todas as maneiras e feitios, até mandei a mãe sair da sala de consulta, mas o menino foi incapaz de revelar o que tinha acontecido. Só aconselhei a mãe a mudar de professor, o que a mãe fez, felizmente, porque a sua intuição já lho tinha dito para o fazer].
- E depois, mãe?
- Então houve um menino que sabia que tinha de dizer sempre a um adulto se alguém lhe fizesse mal e que disse à mãe que o professor lhe tinha mexido na pilinha. E então o professor foi preso e o meu menino, que já não era aluno dele foi chamado à polícia. Depois de saber que o professor estava preso ele contou ao polícia o que o professor lhe tinha feito. E depois, sabes o que é que ele fez?
- O quê, mãe?
- Quando chegou a casa, foi logo explicar ao irmão mais novo o que o polícia lhe tinha explicado a ele: "Sabes, mano, nunca deixes ninguém mexer na tua pilinha ou no teu rabinho. Só tu é que podes mexer. E se alguém te mexer ou magoar deves logo ir dizer ao pai ou à mãe ou a outro adulto, porque os adultos que gostam de nós acreditam em nós e eles é que nos podem proteger!" Percebeste, filho?
- Sim, mãe, eu então digo. Se alguém me fizer mal ou se o B. me voltar a bater eu digo-te.

Bem, hoje lá fui falar com a educadora e fiquei mais descansada que estarão atentas. Mas não vou baixar a guarda até o ver seguro. Raio dos miúdos, que nos deixam sempre com o coração nas mãos...
19
Nov16

[oh happy day!] então, beijo-de-mulata, não falas do casamento?

beijo de mulata
É verdade, meus queridos amigos... casei-me com Mr. Shaka no dia 12 de novembro. Ganhei toda uma nova credibilidade, um anel de noivado, uma aliança de casada, dois apelidos novos (agora chamo-me Senhora Dona beijo-de-mulata-de-Shaka-Zulu, valha-me Deus, beijo-de-mulata Maria, onde é que tu estavas com a cabeça?), uma despedida de solteira de sonho e um dia de princesa! E quinze dias (just say it!, quinze!) de licença!

Eu nunca tinha sonhado com esse dia. A minha felicidade não passava por aí... É verdade, meus amigos, garanto-vos. Mas enfim, os milagres acontecem na minha vida e tenho de os aceitar... O dia foi simplesmente perfeito para mim... foi quase mágico entrar mais uma vez na Basílica da Estrela, onde ia à missa em criança e ouvir o órgão histórico que acompanhava as missas da minha infância. E onde Mr. Shaka foi organista durante anos. E recordar que foi ali que eu e Mr. Shaka nos reconhecemos, vários anos depois de nos termos visto apenas uma vez... Ouvir a música de entrada, que era a pièce de resistance do concerto em que nos conhecemos (traduzida e adaptada por mim, claro, porque eu não queria que se falasse nos moinhos satânicos de Inglaterra no casamento, valha-me Nossa Senhora da Língua Portuguesa), cantada pelo melhor coro feminino que alguma vez poderíamos ter. E foi uma quase-surpresa ouvir as músicas que Mr. Shaka escreveu e orquestrou para a missa do casamento (não tenho autorização para as divulgar, que são apenas para consumo doméstico, um quase-segredo de família, diz ele).

Também o meu amigo João Andrade Nunes, para mim o melhor compositor da atualidade, não me desiludiu. Como aliás, nunca desilude em nada do que faz ou escreve. Já tinha escrito a ação de graças para o batismo do meu sobrinho, Baby M., com a letra da canção de embalar que eu ouvia cantar às mamãs macuas no hospital em Moçambique. Lembram-se?

Quero agradecer-te por teres nascido
Dorme, meu amor, fica tranquilo
Porque enquanto estiveres a dormir
eu fico aqui a repetir o teu nome
E Deus vela por todos nós...

Desta vez escreveu-nos uma ação de graças de ir às lágrimas. Podem ouvi-la aqui, desde que a ouçam até ao fim...



E perguntam vocês, e o baby-de-mulata, como se portou? Ah, esse foi um querido! Quer-se dizer... foi um querido depois de passado o choque inicial, semanas antes. O drama e o horror aconteceram quando descobriu que o tal de vestido de noiva com cauda, de que tanto se falava, tinha uma cauda sim, mas não como os dragões ou os dinossauros. Era de renda, acredite-se! E ele que estava tão entusiasmado... Como era possível? Traição! De renda, mãe? E... branco?! Ai valesse-lhe São Jorge...

Mas como eu dizia, passado o choque inicial, ainda demorou a aceitar que não podia ir vestido de dragãozinho, a fazer pendant com sua mãe. Mas, por fim, depois de várias negociações (e de alguns subornos, confesso, que nestes casos não há que olhar a meios), lá aceitou ir à baixa experimentar um fato a condizer com o papá. Mas sempre a ameaçar que só entrava na igreja se fosse ao meu colo. Menino das alianças é que ele não queria ser. Ainda por cima para me dar de mão beijada ao pai... Como se sabe, Freud pode ter dito muitos disparates, mas nisto não falhou!

Passou-me de tudo pela cabeça, que fugisse da basílica, que se me atirasse para o colo, que se borrifasse para as alianças e fosse jogar à bola para o adro da igreja. Tudo menos a forma irrepreensível como se portou! No momento certo olhou para mim e para o avô, que me dava o braço, e lá foi à minha frente, no compasso certo, ao lado dos primos, Mr. B. e Baby M., com a salva de prata na mão, direitinho até ao altar. Só vacilou no consentimento, quando eu e Mr. Shaka trocámos as alianças. Vi bem na cara dele que ficou triste quando percebeu que a mãe só se casou com o pai. Mas bastou sairmos do nosso lugar, mesmo a meio da missa, para lhe irmos dar um abraço e o baby lá se animou outra vez.

Não me apetecia despegar dali no fim, ao ouvir mais um cântico de Mr. Shaka, o cântico de vida nova... Mas lá fora aguardavam-me aqueles que amo incondicionalmente. Não estavam todos, é certo, porque não é possível nunca que venham todos os que queremos, por variadíssimas razões. Mas todos os que estavam eram muito, muito especiais. E isso basta.
15
Ago16

[histórias de amor] as visitas ao baby-de-mulata

beijo de mulata
Nestes dias, talvez porque o baby tem estado em casa dos avós há um dia e meio e as saudades me apertam o peito, tenho-me lembrado dos dias em que o ia visitar, ainda antes de saber se o poderia levar para casa, ainda antes de me terem declarado apta para ser mãe dele, durante o processo de "escrutínio" que demora seis meses, em que somos entrevistados, submetidos a testes e provas e temos de provar quem somos e o que realmente queremos.

Tinha conhecido o baby no meu hospital um mês antes e, antes desse mesmo dia terminar, decidira que não o iria deixar ficar sem mãe. Se não aparecesse uma família para ele, eu própria iria lutar para que fosse meu filho para sempre. Nem quinze dias depois o baby teve alta do hospital e eu mal tinha tido tempo de o conhecer bem e de brincar com ele. Foi para um CAT (Centro de Acolhimento Temporário) a mais de uma centena de quilómetros de Lisboa, que se tornou o meu local de peregrinação nos meses seguintes. Não assisti à saída dele. As enfermeira depois relataram-me que tinham ficado inconsoláveis de o terem entregue depois de mais de um ano a cuidar dele, tão ligadas que estavam. Que só esperavam que fosse adotado depressa para ir finalmente para uma família...

No primeiro dia de visita o coração pulava-me, as borboletas na barriga saltavam: será que ele me vai reconhecer? Será que vai aceitar vir para os meus braços? Como será que as senhoras da instituição me vão tratar? Será que aceitam a visita de uma desconhecida que quer adotar o menino mas que ainda não tem autorização legal para tal? Será que me vão dar condições para vir visitar novamente amanhã? Ou vão impedir que crie laços com o menino se não têm a certeza de que vou ser mãe dele, já que depois vai ser ainda mais difícil para ele adaptar-se a outra família... E eu? Será que vou conseguir no meio disto tudo sobreviver se no fim não me entregarem o menino? E se não me declararem apta para adotar? Será boa ideia passar por isto sem ao menos me proteger um pouco?

Foi então que toquei à porta e a auxiliar da instituição me abriu a porta com o baby ao colo... O coração gelou-se-me... O baby não me sorriu, não deu qualquer sinal de me reconhecer, nem sequer olhou para mim. Antes da alta do hospital ele sorria para quem quer que fosse, como qualquer criança que não tem uma vinculação com ninguém em especial. Pensei que me estava a estranhar. Afinal de contas já não me via há um bom par de dias. Mas não, também não olhava para a auxiliar... Perguntei-lhe o que achava sobre isso. Respondeu-me que ele evitava o contacto ocular. Que no primeiro dia depois de ter chegado do hospital tinha dormido o dia todo, não lhe tinham conseguido quase dar de comer, tinha-se recusado a levantar-se da cama. Mas nos dias seguintes, com alguma insistência lá se tinha adaptado à rotina da casa. Já lhe conseguiam dar de comer. Desde há alguns dias também já lhe conseguiam pegar ao colo. Mas era um uma fita das antigas para mudar a fralda e dar banho... Estavam preocupadas e desconcertadas. Perplexas. Não sabiam o que se estava a passar. Ninguém lhes tinha dito que o menino tivesse assim tantos problemas de desenvolvimento... "Problemas de desenvolvimento" (!), foi o termo que a auxiliar usou, certamente já verbalizado pela psicóloga da instituição...

Uma fúria surda encheu-me o coração. Eu sabia que tinham ido buscar o meu menino ao hospital assim sem mais nem menos. Sem uma única hora de transição. "Viemos busca-lo, deem-no cá!" E foram-se embora com ele para o CAT. Eu sei que são instituições públicas, que não havia mães no processo, que as duas instituições distavam mais de cem quilómetros uma da outra. Que os recursos humanos são escassos e que um hospital e um centro de acolhimento têm dificuldade em dispensar dois elementos durante vários dias para fazer uma transição. Mas isto não se faz a um bebé! O meu menino, já de si tão frágil, abandonado à nascença, sem vínculo com ninguém em especial, que já tinha passado por oito cirurgias e mil tratamentos dolorosos, tinha perdido de um dia para o outro todas as referências e estava num sofrimento atroz!

Entregou-me o menino e fomos os dois para a sala de visitas. Era julho. Ou junho, aliás. Recordo-me do calor que se fazia sentir, que me sufocava, do olhar do baby que se me esquivava, dos seus movimento do tronco inclinando-se para a janela. Sem comunicar de forma nenhum. E, ao meu colo mas de costas para mim, abria e fechava a janela sem parar, alheado de tudo. Sem olhar para mim, sem olhar para o que se passava na rua. Apenas concentrado no movimento da janela a abrir e fechar. Eu tinha levado livros, brinquedos. Tentei diversas vezes chamar-lhe a atenção para o que trazia, mas em vão. De cada vez que lhe tentava captar a atenção, desencadeava uma birra descomunal. Se lhe mostrava um livro, levava com uma rosnadela. Uma hora e meia de visita passou-se deixando-me exausta, triste e frustrada. E ao baby também. Quando o entreguei, sem que lhe tivesse conseguido captar o olhar ou provocar um sorriso, estava destroçada e só pensava: "Será que vou aguentar voltar aqui? Será que aguento mais um dia disto? O que será que se está a passar?"

Fiquei arrasada. Não consegui contar a ninguém o que se tinha passado nem o que tinha sentido. Não consegui dizer o que se passava com o meu baby. Eu própria não compreendia muito bem. E tinha receio que alguém dissesse o que eu efetivamente vim a ouvir, ipsis verbis, semanas depois (que o menino tinha tido "uma regressão autística") e que me tentasse demover do meu projeto meio louco.

Agora sei, mas na altura não sabia: o meu menino tinha uma depressão da primeira infância! Uma depressão tão grave que se confundiu com autismo. Pela primeira vez vacilei. Mas não podia desistir. Com o diagnóstico de autismo então é que não apareceriam candidados a adoção e o menino ficaria sem família. E era este o menino que eu sempre imaginara que me cairia nos braços: um menino que mais ninguém quisesse. A única certeza que eu tinha é que era este o menino. Mas já não sabia se seria capaz de cuidar dele...

(talvez continue...)
01
Ago16

[vozes brancas*] voar mais alto do que a vista imagina...

beijo de mulata
Há poucos dias, antes da sesta, a minha mãe contava pela enésima vez ao baby-de-mulata a história do David e Golias (a quem o baby teima em chamar Gorilas), quando aquela alminha resolveu puxar mais um assunto difícil...

- Avó, o Rei David já morreu?
- Já, meu querido, o Rei David já morreu há muitos, muitos anos, que esta história aconteceu ainda antes de o Jesus ter nascido...
- Ah... pois, avó... Eu sabia, foi há mesmo muitos anos. [Ainda não era aqui que ele queria chegar, certamente.] Mas ele morreu porquê?
- Porque era muito velhinho, querido. [A resposta chapa-cinco lá de casa, não há cá mais explicação nenhuma antes dos sete ou oito anos, altura em que entrará a nuance chapa-sete à baila, das doenças e dos acidentes, muito mais ansiogénica e que por enquanto, felizmente, ainda não apareceu.]
- Ah. Pois, avó, era velhinho... E para onde é que ele foi?
- Foi para o céu.
- E quando eu morrer também vou para o céu? [Ah, era aqui que ele queria chegar!]
- Sim, querido, quando morrermos vamos todos para o céu.
- Tu também vais? [E aqui também...]
- Sim, filho, eu também.
- Ah, então já sei! Posso ir ao teu colo?
- Claro que sim, querido! [A minha mãe, já com a voz embargada... Como se explica o que nem nós próprios compreendemos? Como aplacar a angústia do desconhecido de uma criança?]
- Pronto, então está decidido, quando morrer vou para o céu ao colo da vovó! E depois, avó?... Voltamos cá para baixo?

*Voz branca - Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
10
Mar16

[inspiração para uma despedida] até sempre, irmã

beijo de mulata
Quem me conhece ou acompanha há mais tempo este blogue sabe que houve um blogue-antes-do-baby-blogue. Antes de ser mãe-do-baby-de-mulata eu era a beijo-de-mulata, e escrevia um blogue de aventura e saudade, um blogue que escrevia para manter vivas as recordações das missões em Moçambique, para que não me fugissem as imagens, nem os cheiros, nem as palavras, nem as músicas... nem a Irmã Lourdes. A irmã que me ajudou em tudo, que foi minha mãe, amiga, companheira, orientadora, animadora, mediadora cultural. Foi com os olhos dela que aprendi a amar o povo macua, compreender os seus paradoxos, as suas angústias, perdoar as suas negligências e atrocidades, admirar o amor incondicional que tinham pelas crianças, respeitar as tradições que protegiam as mulheres, as crianças e os idosos. Com ela aprendi a conhecer crenças, ritos, feitiços, aprendi a compreender de que falavam as pessoas no hospital quando me falavam de doença e o que esperavam de mim. E aprendi que só conhecendo a cultura podemos tratar verdadeiramente as pessoas, conquistar a sua confiança e comunicar.

Há dois dias, depois de quase um ano de luta contra uma leucemia debilitante, não resistiu mais e partiu... Desgraçadamente não pude estar presente no funeral, porque o baby-de-mulata anda adoentado e com mãezite agudizada e porque tinha uma sessão da "Oficina de Pais" para crianças com atraso de desenvolvimento de que era responsável. Mas como ela própria dizia lá em Moçambique, quando eu chegava atrasada à missa depois de um dia longo no hospital: "Não te preocupes, trabalhar também é rezar..."

Felizmente a minha mensagem de despedida chegou a tempo para ser lida no funeral. Foi o meu milagre desta manhã.

"Meus queridos amigos, é com muito pesar que por motivos familiares e profissionais não posso estar presente nesta última despedida da nossa querida Irmã Lurdes, mas gostaria de deixar o meu testemunho como leiga que conheceu uma mulher santa, uma mulher de coragem, absolutamente extraordinária.

Conheci-a em Iapala, província de Nampula, em Moçambique, quando a missão estava no seu apogeu. Para quem a conheceu, a missão era um paraíso no meio de uma paisagem avassaladora, com montanhas, savana verde e céu a perder de vista. Era também um oásis num mar de dor e devastação, de doença a pobreza. E a Irmã Lurdes tinha passado a guerra com o povo. Tinha comido à mesma mesa que os habitantes locais, tinha passado fome com a população, tinha dormido no mato muitas vezes, para no dia seguinte descobrir que uma cobra ou um escorpião se tinha ido aninhar no meio da esteira com ela. Nunca teve medo. No tempo da guerra as cobras não mordiam porque o homem fazia parte da paisagem. Durante a guerra sofreu ataques de bandidos, pilhagens sucessivas, tratou feridos, consolou órfãos e viúvas, tratou doenças até ao limite das suas forças.

Quando conheci a Irmã Lurdes, a guerra já tinha acabado, já não havia minas, já se podia andar com o jipe pelas picadas. A irmã, baixinha, frágil e com voz um pouco trémula, era a última pessoa que eu imaginava ver num jipe enorme a atravessar pontes feitas de bambu, atravessar areais onde se podia ficar enterrado sem dó nem piedade, e a fugir com destreza de buracos no meio da estrada capazes de partir um camião. Dava assistência no hospital, cuidava das meninas do lar, assistia a população envolvente e deslocava-se quase diariamente às quase cem comunidades distantes para vacinar as crianças e as grávidas, pesar os bebés, confortar quem tinha visto morrer os seus entes mais queridos, tratar os doentes que sabia tratar, com os medicamentos da sua bolsa verde-tropa de onde saiam os artigos mais improváveis... e transportar para o hospital da missão quem só no hospital pudesse receber assistência.

Mas a Irmã ia deixar Iapala. Na altura em que a conheci, já estava de partida. Ia fundar a missão do Gilé, na Zambézia. E eu perguntava-me como seria possível deixar Iapala, aquele paraíso fantástico, e ir para uma terra onde não havia nada, onde até as mandiocas eram raquíticas, onde até o terreno tinha areia, onde nem a fé nem a esperança vingavam e a morte espreitava atrás de cada cajueiro. Mas a sua coragem e confiança era inabaláveis: Se era para lá que Deus a mandava... seria para lá que iria! Com a alegria de quem vai ver nascer um novo mundo! E foi o que aconteceu. Podem não acreditar, mas eu vi o "antes" e o "depois". Todo o distrito se desenvolveu com a chegada das irmãs. A Irmã Lurdes tinha fama de santa entre as pessoas. Todos a procuravam e respeitavam. Vinham partilhar dores, preocupações e depois trazer alegrias.

Quando a sua doença começou, cedo percebeu que o fim da vida se aproximava. Mas a sua fé permaneceu inabalável. Se Deus a chamava, pois com certeza que iria! Quando Deus quisesse. E continuou espalhando fé e esperança por onde passava, desde casa até ao hospital, menos por palavras do que pelo exemplo de força e coragem.

E tenho a certeza de que partiu para casa do Pai com a mesma confiança de sempre. E podemos ter a certeza de que de hoje em diante, o próprio céu será um local ainda melhor com a sua presença!

Deixa-me desolada, ainda assim, por não me ter conseguido despedir de si... Parece que é a minha cruz, a de por vezes não chegar a tempo... Mas bem-haja por todo o bem que fez e por tudo quanto me fez descobrir!

Até sempre!"
29
Dez15

[improbabilidades] uma vela a santa rita de cássia

beijo de mulata
Ontem na consulta do hospital, vi um menino pela primeira vez. Pareceu-me um menino um pouco tristonho, meio macambúzio, tímido, reservado, respondia com monossílabos, mas olhava-me com um olhar expressivo, intenso, como se quisesse compensar com o olhar o que não conseguia encontrar palavras para dizer. Educado, com vontade de agradar, coisa rara em pré-adolescentes (e, para mim, mau sinal, que um pré-adolescente a tentar agradar-me sem me conhecer de lado nenhum deixa-me sempre com a orelha levantada de que pode estar deprimido...).

- Então o que a traz a esta consulta? - pergunto à mãe.
- Doutora, eu vim aqui porque não sou de automedicar os meus filhos, eu tenho muito medo e só me automedico a mim e aos meus filhos com receita médica. Mas ele há uns tempos para cá que anda assim muito distraído, parece-me desmotivado. Lê uma coisa e no momento a seguir esquece-a, sabe uma coisa num dia, no outro dia já não sabe. Vai para os testes uma pilha de nervos... eu já pensei em acender uma vela a Santa Rita (piscadela de olho), mas tenho medo que não resulte ou que lhe faça reação...
- Uma vela a Santa Rita? Mas Santa Rita de Cássia, padroeira das causas impossíveis?
- Sim, doutora.
- Bem, mal não faz, miminhos e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém. Mas isto é uma consulta de Desenvolvimento, não veio aqui para lhe ensinar a rezar a Santa Rita, pois não?
- Ó doutora, eu já experimentei com a Santa Rita e não deu resultado, por isso pensei na outra Rita... (nova piscadela de olho)
(Eu já incomodada com tanta piscadela de olho desadequada...) - Na outra Rita? Qual outra Rita, a Ritalina?
- Sim, doutora, a Ritalina! É que o irmão toma. Eu experimentei-lhe a dar e ele deu-se muito bem, mas como não sabia se lhe podia continuar a dar resolvi pedir esta consulta.

(Custou a desembuchar! Só me fez lembrar aquela anedota do século passado do senhor muito bem posto que vai à farmácia e pergunta: "Tem camisas com colarinhos e botões de punho prateados?" "Não, senhor, isto é uma farmácia, não vendemos camisas dessas." "Então dê-me das outras." Quanto ao resto, não comento!)

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