19
Ago12
[outras palavras] confissão de nãozinha, a feiticeira
beijo de mulata
Mulher curandeira...
(Malema, Nampula)
Sou Nãozinha, a feiticeira.Minhas lembranças são custosas de chamar. Não me peça para desenterrarpassados. A serpente engole a própria saliva? Tenho que falar, por suaobrigação? Está certo. Mas fica a saber, senhor. Ninguém obedece senão em fingimento.Não destine ordem em minha alma. Senão quem vai falar é só o meu corpo.
Primeiro, lhe digo: não devíamosfalar assim de noite. Quando se contam coisas no escuro é que nascem mochos.Quando terminar a minha história todos os mochos do mundo estarão suspensossobre essa árvore onde o senhor se encosta. Não tem medo? Eu sei, você mesmo,sendo preto, é lá da cidade. Não sabe nem respeita.
Vamos então escavar nessecemitério. Digo certo: cemitério. Todos os que eu amei estão mortos. Minhamemória é uma campa onde eu me vou enterrando a mim mesmo. As minhas lembrançassão seres morridos, sepultados não em terra mas em água. Remexo nessa água etudo se avermelha. Lhe inspiro medo? Por essa mesma razão, o medo, eu fuiexpulsa de casa. Me acusaram de feitiçaria. Na tradição, lá nas nossas aldeias,uma velha sempre arrisca a ser olhada como feiticeira. Fui também acusada, injustamente.Me culparam de mortes que sucediam em nossa família. Fui expulsa. Sofri. Nós,mulheres, estamos sempre sob a sombra da lâmina: impedidas de viver enquantonovas; acusadas de não morrer quando já velhas. Mas hoje me aproveito dessaacusação. Me dá jeito pensarem que sou feiticeira. Está ver? Meus poderes nascem da mentira.Mia Couto in A Varanda do Frangipani