03
Jun10
[os doentes não estudam por tratados] ...mas deviam
beijo de mulata
(Disclaimer: Atenção, este post deveria ter uma bolinha no canto superior direito. Não é pornográfico nem obsceno, não utiliza palavras que nunca diríamos à frente da nossa mãe, mas fala de doenças do ponto de vista de um aluno que vai fazer exame de Medicina, ou seja, de um modo pouco sensível.)
Ora então, continuando a minha saga do Egas no último ano da faculdade (não, não é aquela da minha prima: "Vais para o Egas? ...e o Becas?" É aquela do Et in Arcadia Egas.): chegou, por fim, o dia em que todos tivemos exame prático, que consistia na elaboração da história clínica de um doente internado e a respectiva discussão do diagnóstico e tratamento. Os estimados leitores não médicos que me desculpem, mas não resisto a contar esta história. Prometo que a vou tentar escrever de forma perceptível, mas não prometo nada, passe o oxímoro...
Nessa manhã, todos os meus colegas chegaram mais cedo do que o costume, para poderem participar na histeria colectiva. Eu cheguei à hora de sempre: é proverbial a minha dificuldade em acordar de manhã e os dias de exame nunca foram excepção. Por outro lado, sempre achei que podia tirar partido da minha personalidade múltipla e fazer a histeria colectiva sozinha! Outra coisa que eles aproveitaram para fazer foi para cuscar os diagnósticos dos doentes internados. Infelizmente eu não podia fazer isso em casa.
Já referi anteriormente que o serviço era peculiar, que tinha uma localização improvável e uma dinâmica de grupos absolutamente única, mas esqueci-me de referir um pormenor não menos importante. Os próprios doentes nunca eram lineares. Doenças que só vêm nos livros e que nunca ninguém viu (check): apareciam frequentemente. Complicações nunca antes descritas de doenças banais (check): várias publicações em revistas internacionais à conta disso. Apresentações estranhíssimas de doenças pouco frequentes (check): aos pontapés! Doenças frequentes com uma apresentação que sugeria outra doença qualquer (check): tão frequentes como essas mesmas doenças...
Enfim... nesse dia eu estava compreensivelmente nervosa! Assim que cheguei mandaram-me ter com o doente que me tinha sido sorteado e, quando olhei para ele, aquilo que me captou de imediato a atenção foi que o senhor tinha o olho esquerdo meio fechado, ligeiramente metido para dentro. Suspirei de alívio. Percebi logo que o senhor tinha a Síndrome de Horner. Isso queria dizer que tinha um compromisso do gânglio nervoso cervical responsável pelo controlo da pupila e da pálpebra superior. Reparei logo, também, que tinha as pontas dos dedos amareladas, sinal de que fumava bastante. E tossia como quem tem uma doença pulmonar obstrutiva. A causa seria provavelmente um tumor localizado no vértice do pulmão e que tem o nome de tumor de Pancoast. Estava safa!
Era um doente simpatiquíssimo, bem disposto e com um sentido de humor contagiante. Apresentei-me, disse ao que vinha e lá fomos fazendo a história clínica alegremente, enquanto eu ia revendo mentalmente as vias nervosas do simpático cervical e da iridoconstrição, já a antecipar o brilharete que ia fazer. Ele próprio sabia o diagnóstico e confirmou-me que tinha um tumor do pulmão, mas que estava a correr tudo bem, felizmente. Congratulei-me do meu diagnóstico à primeira vista! Por fim, já no exame objectivo, pego na minha lanterninha só para confirmar (assim à picuinhas) que o senhor tinha mesmo a pupila esquerda contraída e eis senão quando ele me pergunta, com um sorriso de surpresa:
- Está a olhar para o meu olho de vidro?!
(Adenda à história clínica, para quem não é médico e portanto não ficou bem com a certeza se compreendeu a história: o doente afinal não tinha Síndrome de Horner coisa nenhuma. Tinha uma pálpebra descaída e o olho metido para dentro porque tinha uma prótese ocular e portanto lá caiu por terra o meu diagnóstico brilhante e à primeira vista de Tumor de Pancoast... Ai aquele serviço, valha-me Santa Rita de Cássia!)
Ora então, continuando a minha saga do Egas no último ano da faculdade (não, não é aquela da minha prima: "Vais para o Egas? ...e o Becas?" É aquela do Et in Arcadia Egas.): chegou, por fim, o dia em que todos tivemos exame prático, que consistia na elaboração da história clínica de um doente internado e a respectiva discussão do diagnóstico e tratamento. Os estimados leitores não médicos que me desculpem, mas não resisto a contar esta história. Prometo que a vou tentar escrever de forma perceptível, mas não prometo nada, passe o oxímoro...
Nessa manhã, todos os meus colegas chegaram mais cedo do que o costume, para poderem participar na histeria colectiva. Eu cheguei à hora de sempre: é proverbial a minha dificuldade em acordar de manhã e os dias de exame nunca foram excepção. Por outro lado, sempre achei que podia tirar partido da minha personalidade múltipla e fazer a histeria colectiva sozinha! Outra coisa que eles aproveitaram para fazer foi para cuscar os diagnósticos dos doentes internados. Infelizmente eu não podia fazer isso em casa.
Já referi anteriormente que o serviço era peculiar, que tinha uma localização improvável e uma dinâmica de grupos absolutamente única, mas esqueci-me de referir um pormenor não menos importante. Os próprios doentes nunca eram lineares. Doenças que só vêm nos livros e que nunca ninguém viu (check): apareciam frequentemente. Complicações nunca antes descritas de doenças banais (check): várias publicações em revistas internacionais à conta disso. Apresentações estranhíssimas de doenças pouco frequentes (check): aos pontapés! Doenças frequentes com uma apresentação que sugeria outra doença qualquer (check): tão frequentes como essas mesmas doenças...
Enfim... nesse dia eu estava compreensivelmente nervosa! Assim que cheguei mandaram-me ter com o doente que me tinha sido sorteado e, quando olhei para ele, aquilo que me captou de imediato a atenção foi que o senhor tinha o olho esquerdo meio fechado, ligeiramente metido para dentro. Suspirei de alívio. Percebi logo que o senhor tinha a Síndrome de Horner. Isso queria dizer que tinha um compromisso do gânglio nervoso cervical responsável pelo controlo da pupila e da pálpebra superior. Reparei logo, também, que tinha as pontas dos dedos amareladas, sinal de que fumava bastante. E tossia como quem tem uma doença pulmonar obstrutiva. A causa seria provavelmente um tumor localizado no vértice do pulmão e que tem o nome de tumor de Pancoast. Estava safa!
Era um doente simpatiquíssimo, bem disposto e com um sentido de humor contagiante. Apresentei-me, disse ao que vinha e lá fomos fazendo a história clínica alegremente, enquanto eu ia revendo mentalmente as vias nervosas do simpático cervical e da iridoconstrição, já a antecipar o brilharete que ia fazer. Ele próprio sabia o diagnóstico e confirmou-me que tinha um tumor do pulmão, mas que estava a correr tudo bem, felizmente. Congratulei-me do meu diagnóstico à primeira vista! Por fim, já no exame objectivo, pego na minha lanterninha só para confirmar (assim à picuinhas) que o senhor tinha mesmo a pupila esquerda contraída e eis senão quando ele me pergunta, com um sorriso de surpresa:
- Está a olhar para o meu olho de vidro?!
(Adenda à história clínica, para quem não é médico e portanto não ficou bem com a certeza se compreendeu a história: o doente afinal não tinha Síndrome de Horner coisa nenhuma. Tinha uma pálpebra descaída e o olho metido para dentro porque tinha uma prótese ocular e portanto lá caiu por terra o meu diagnóstico brilhante e à primeira vista de Tumor de Pancoast... Ai aquele serviço, valha-me Santa Rita de Cássia!)