Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

07
Out13

[marasmo] autismo e depressão...

beijo de mulata
 
As crianças desnutridas na varanda da enfermaria de Pediatria.
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Mas a minha amiga Fátima não me deixou parar. "Estas mulheres dizem isto porque não têm filhos desnutridos, se não nunca iam desistir também!" Decidi continuar para não desiludir a minha amiga, mas eu própria estava vacilante.

Felizmente, no dia seguinte o menino recuperou o peso que perdera e não voltou a vomitar com a sonda nasogástrica. Já não sei dizer quantos dias depois começou a aceitar a solução nutricional pela colher e a aumentar de peso. As feridas começavam finalmente a sarar. Mas continuava a guinchar à nossa aproximação, a não se interessar pelos brinquedos com que o tentávamos estimular, a não olhar para o que a mãe lhe mostrava, a não comunicar de forma nenhuma. Agora que recuperava um pouco o peso e tinha mais energia, fazia uns movimentos bizarros com as mãos que se assemelhavam a estereotipias. O Dino tinha uma perturbação do espetro do autismo, concluímos. Fora por isso que a introdução da alimentação tinha sido tão difícil e que tudo o que se seguiu fora uma batalha terrível... Mas a mãe estava feliz e agradecida! Já tinha tido o seu milagre! O filho era assim difícil, mas estava vivo e a salvo, era tudo o que ela queria. Aceitava-o incondicionalmente, tal como ele era.

Entrava por fim em velocidade de cruzeiro na recuperação do peso e era uma questão de dias ou semanas até ter alta. Passaram-se mais uns dias sem que o víssemos com muita atenção. A mãe também aproveitou para ir um fim-de-semana a casa com o filho. Lembro-me vagamente de nessa altura ela me confidenciar tristemente: "Sabe, doutora, o meu filho quando era mais menino sorria muito..." Um murro no estômago... Não soube o que dizer naquele momento. Pus-lhe a mão nas costas e penso que ainda disse qualquer coisa como: "Força!" ou algo que o valha.

Acho que foi por isso que me surpreendi tanto quando, uma semana depois, o vi chegar a sorrir para mim, a andar pelo seu pé e a brincar com um brinquedo que eu lhe dera semanas antes! Onde estava o menino apático a quem tínhamos diagnosticado autismo? O que acontecera? "Nada!", dizia a mãe a sorrir, "Foi de repente. Num dia estava apático, no dia seguinte começou a olhar para as coisas que lhe mostrava, começou a sorrir, a falar um pouco. E ontem voltou a andar!" E a mãe já descobrira o que lhe tinha provocado a doença. Ela sempre suspeitara: fora o pão! Em casa tinha-lhe dado pão e ele vomitara, queixara-se da barriga e a diarreia regressara. Por isso cortara totalmente com o pão. Dentro de casa dela não voltaria a haver esse alimento, afirmava!

O pão?! Ai, valha-me Deus! Uma doença celíaca? O que acham vocês, meus colegas médicos? Eu não sei. Não posso ter a certeza, que não lhe fiz mais exames nenhuns. Mas finalmente tudo fazia sentido. Na introdução precoce dos alimentos, o Dino, miúdo difícil e obstinado, dera conta que algum alimento lhe fazia doer a barriga e preferiu não comer nada. Nem mesmo leite materno. Começou por ser uma defesa. O único alimento em que "confiava" era no milho e, por isso, restringiu a sua alimentação a este cereal. Durante uns tempos a situação manteve-se estável. O milho tem proteínas e conseguia dar-lhe as calorias necessárias para se sustentar. Mas falta-lhe um aminoácido essencial. Mesmo com o feijão, que comia ocasionalmente, não foi suficiente para manter aquele equilíbrio precário. Daí às lesões na pele e à regressão do desenvolvimento foi um pequeno passo, que uma doença febril acabou por atirar pelo precipício, levando ao marasmo grave que o fizera ser admitido no hospital.

E podia continuar a discorrer por aqui afora, falar de nutrição infantil, de aminoácidos essenciais, vitaminas, dos riscos da alimentação à base de milho, tão frequente na cultura macua, mas não foi para isso que escrevi este post. Só te queria dizer, Maria, que sei bem o que sentes quando falas de fome e desnutrição. Mais, que sei que uma criança desnutrida não sorri, não brinca, às vezes nem responde aos nossos esforços mais persistentes e ou às macacadas mais improváveis.

E pior, muito pior: há dias em que acreditamos na expressão de desalento das crianças. E quando uma criança deixa de sorrir é como se o futuro deixasse de fazer sentido. Ficamos sem chão.

É nessas alturas que tens de te lembrar de respirar fundo, princesa, e recordar as razões pelas quais em África se vive um dia de cada vez: é que com a fome nunca há batalhas ganhas. A guerra recomeça todos os dias.

Mas como dizia a minha amiga, nestas coisas não podemos querer 100%. Não vamos nunca conseguir salvar o mundo com os meios que temos, mas tentaremos com todas as nossas forças ajudar quem se cruzar connosco. E fazer como a Fátima: não acreditar nas vozes que nos dizem que as crianças não querem viver. É raro uma criança desistir. Mas elas podem: são crianças. Nós é que não podemos. Força, Maria! Carter não era enfermeiro. Nunca viu ninguém sorrir depois de ter estado às portas da morte. Nunca viu o olhar de agradecimento de uma mãe. Carter estava na profissão errada, confia em mim!

7 comentários

Comentar post

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub