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Dez10
[improbabilidades] das coisas que só me acontecem a mim...
beijo de mulata
Uma criança amorosa e sua mãe no hospital do Gilé (Zambézia, Moçambique).
Não são as protagonistas desta história, tal como se vê pelo olhar vivo de ambas e pelo seu bom estado nutricional.
(continuando...)
Ora, como eu ia dizendo no post anterior antes de me ter perdido, certa noite, no hospital do Gilé, na enfermaria de Pediatria, sofri um pequeno incidente. Um incidente tão peculiar e improvável que se tivesse corrido mal talvez até se tornasse num caso clínico para publicar. Mas como tudo acabou em beleza, foi só mais uma aventura moçambicana e uma história para contar...
Nessa noite, como habitual, eu e a R. fomos ao hospital depois de jantar para ver como estavam os meninos e reparámos que havia uma nova criança na enfermaria, de seus 5 ou 6 meses, que tinha sido internada umas horas antes. Motivo de internamento: desnutrição grave. A mãe, que a acompanhava, estava também visivelmente desnutrida e doente e ia contando à R., no meio de tosse e calafrios, que a sua menina estava desnutrida porque ela tinha deixado de ter leite havia três semanas... Arrebitei a orelha! Que ouvira eu de raspão, voltada de costas a observar uma outra criança? Aquela mãe perdera o leite?! Metida em brios, entrei em acção de imediato:
- Mas, mamã, não tem nem uma gota que possa estimular? - perguntei.
- Não, não tem mais leite.
- Mas, mostre, mamã, não tem mesmo nem uma gota? - já vos disse que consigo ser chata-como-a-potassa? Só para confirmar...
- [Com um olhar infinitamente triste] Não...
- [No meu macua macarrónico] Mas olhe, nós podemos dar-lhe um medicamento para fazer o leite voltar. Não tem mesmo nem uma gota? Mostre lá...
Consegui, então, convencer a senhora a fazer a expressão do leite para ver se pelo menos teria "uma gotinha que pudesse estimular" e ela mandou-me, sem cerimónias, um esguicho de leite materno, abundante e certeiro, para o meu olho direito! E, pronto, meus amigos, foi então que compreendi que afinal, neste caso, o problema não era de todo ausência de leite materno. A menina tinha deixado de aumentar de peso porque estava doente e não porque a mãe tivesse perdido o leite!
Fiquei para morrer... Aquela senhora pálida, emagrecida, com feridas na boca e olhos mortiços bradava a quem a olhasse com mais atenção que estava infectada com o vírus da sida. Tinha uma carga viral certamente elevadíssima porque de outro modo a filha não estaria desnutrida e, portanto, juntando dois mais dois, isto queria dizer que eu tinha acabado de levar com um esguicho de leite materno, certeiro e abundante, carregadíssimo de VIH, directamente nos olhos...
A R., que assistira a tudo como que em câmara lenta e previra o acidente fracções de segundos antes, só não me esganou com o estetoscópio porque não calhou... Como pudera eu ser tão loira, tão imprudente, ó valesse-lhe a Santa do Pau Preto, repreendia-me enquanto me lavava os olhos com soro fisiológico e pegava na ficha da criança para confirmar o diagnóstico que literalmente se metia pelos olhos adentro... A ficha da criança confirmava a nossa suspeita: filha de mãe VIH positiva! Terminámos o que tínhamos a fazer e fomos para casa tentando acalmar-nos. Que a probabilidade de contágio era ínfima, que nunca tal se vira, Santo Deus, e então logo com leite materno, haveria coisa mais improvável? É que nem valia a pena pensar mais no assunto...
Mas eu estava com os cabelos em pé... Enfim, vocês já me conhecem. Eu até sou uma optimista por natureza. E sou católica. No fundo, eu estou quase sempre plenamente convencida de que "o meu pai é o dono disto tudo" e portanto nada de mal me pode acontecer, mas daquela vez, talvez pelo adiantado da hora, pelo modo como me dera conta do diagnóstico ou pela sensação de ter sido apanhada desprevenida, não estava descansada... E também sou da opinião de que, apesar de ser filha do dono disto tudo, nunca nos devemos fiar na Virgem sem tentar fugir. E instalou-se a dúvida, deveria ou não fazer profilaxia com anti-retrovirais? Lá peguei no telemóvel e telefonei para Lisboa a uma colega especialista nestes assados, que foi peremptória: era mesmo para fazer terapêutica. Tripla se possível, mas que não tomasse efavirenz porque aquilo dava umas insónias desgraçadas, que me poderiam arruinar o resto da estadia.
E pronto, lá me rendi à evidência de que tinha pouco mais de duas horas para começar profilaxia e teria de procurar arranjar anti-retrovirais, esquema triplo sem efavirenz, dentro do prazo de validade, àquela hora da noite, em que já mais de metade do Gilé estava deitado e a outra metade estaria a pensar que também já iam sendo horas de procurar a horizontal...
(continua)