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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

27
Abr12

[iapala] os crocodilos e os perus...

beijo de mulata

O Rio Monapo
(Iapala, Nampula)


(continuando...)

Calei-me durante um bocadoe tentei desviar a conversa, enquanto me sentia culpada por ter recordado assimde chofre àquela menina, ainda para mais em frente da sua amiga, que ela aindanão era mulher. E enquanto prosseguia a conversa sobre o dia a dia na escola,fui fazendo, angustiada, um filme sobre a desgraça que se abateria sobre aquelajovem.

Para qualquer adolescentede uma sociedade dita desenvolvida, não chegar à puberdade e não menstruar podeser muito perturbador, mas em África, isso implica um total aniquilamentosocial! Não sendo menstruada não poderia participar nos ritos de iniciação e,portanto, nunca poderia ser tratada e reconhecida como adulta. Ficaria parasempre interditada de ter um lugar na sociedade, de tomar parte em cerimóniastradicionais, em festas de adultos, não poderia assistir a ritos fúnebres – osmais importantes ritos das sociedades africanas. Seria sempre tratada por todoscomo uma criança. E escusado será dizer que não se poderia casar porque nenhumhomem aceitaria como esposa uma mulher que não tivesse cumprido a iniciação e,pior, que claramente não pudesse ter filhos. A única condição que confereestatuto social a uma mulher africana é a maternidade e as mulheres que não conseguemconceber são ostracizadas. Esta menina estava condenada a ser infeliz, semapelo nem agravo...

– Desculpa, Artemisa, achoque te magoei quando te perguntei se já eras menstruada – disse-lhe por fim –,mas se quiseres falar sobre isso um dia, fica à vontade.
– Sim, tia P.

Estávamos a aproximar-nosde um rio, onde mulheres e crianças tomavam banho, lavavam roupa e chapinhavam,tentando refrescar-se do calor do fim de tarde. A vegetação perto do rio eracada vez mais densa. Comecei a ficar nervosa por não conseguir ver bem ondepunha os pés.

– Costuma haver cobras poraqui, Artemisa?
– Não muito, tia P.,só mesmo crocodilos…

Arrepiei-me, subitamentegelada. Crocodilos, valesse-me São Francisco de Assis?
– Estás a brincar?
– Não, tia P.
– Mas estão pessoas alavar a roupa, crianças a tomar banho, não há perigo?
– Sim, há perigo, mas é d’fícil eles saírem a esta hora datarde. Aqui há sombra e eles gostam disol...
– Mas já tem havidoacidentes?
– Sim, às vezes háacidentes com crocodilos.
– E mesmo assim as pessoaspermanecem tanto tempo expostas ao pé do rio?
– Ah, tia P. – umsorriso condescendente –, os acidentes só dependem do destino das pessoas... 

Voltámos para casa quaseao anoitecer, depois de termos falado sobre muitas coisas, e visitado o bairro,a escola, o lar público onde os estudantes viviam acantonados, numa pobreza edesolação arrepiantes, o fontanário, o mercado… Eu vinha menos alegre,pensativa, perturbada com a miséria e a dureza do dia a dia com que me tinha deparado,perturbada com o diagnóstico de Síndrome de Turner que tinha acabado de fazer,com todas as suas implicações para a vida da menina, estava triste com a minhaprópria precipitação, por ter iniciado a conversa de forma tão desastrada e nãoter sabido depois conduzi-la de forma construtiva.

Foram comigo até à portado hospital e, num gesto de cortesia, encarregaram-se de enxotar por mim ocasal de perus, que continuava no mesmo sítio.
– Vocês conhecem estesbicharocos?
– Sim, tia P., sãoperus!
– Não! Pergunto se conhecemestes mesmos perus. Costumam estar aqui?
– Sim, são do SenhorRamos, comerciante do bairro. São muito mal-educados. Perseguem pessoas!
– Pois, já percebi… Maspensei que poderia ser uma “praxe” para mim…
– Irmã?
– Ah, deixem estar…Obrigada pela companhia! Até logo.

Deixaram-me e voltarampara casa, que eram horas de fazer o jantar. Eu queria ir visitar o menino quetinha internado com diarreia. Já estaria melhor?

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