05
Fev12
[iapala] armar-se em deus...
beijo de mulata
(continuando a história que começou aqui...)
(continua...)
– Não me parece que estes pais oqueiram levar para casa. Eles devem ser pessoas esclarecidas. Nem tempo tivepara perguntar, mas o pai até me parece que é professor numa das aldeias ondenós vamos vacinar. Parece-me que o conheço. Olha que até foram a Ribáuè com elequase a morrer. Arriscaram-se a muito. Ele podia ter morrido longe de casa!
– Mas acha que os pais o vãoquerer depois nestas condições? Acha que vão cuidar dele com carinho, não o vãomaltratar ou negligenciar? Se ficar consciente vai sofrer horrores…
– Ainda não conheces bem estacultura. Podes perguntar amanhã aos pais o que querem fazer. Se estás com essasdúvidas podes sempre dar-lhes a escolher. Mas eu já sei a resposta.
– Qual é?
– Já tive esta conversa muitasvezes com a Irmã Sarala e com os pais das crianças. E os pais querem sempre osfilhos. Seja em que circunstâncias for. Eles dizem “os filhos são a nossariqueza.” E só são ricos se tiverem muitos filhos, mesmo que não lhes consigamdar muitas coisas materiais. Os macuas adoram crianças. É o que mais me encantaneste povo.
Na manhã seguinte o menino estavamuito pior. Os lábios quase sem cor, o coração a bater a galope, num esforçoenorme para bombear aquele sangue quase aguado, que claramente tinha sido devastadopela malária, a respiração agora acelerada, num gemido contínuo… A paralisia demetade do corpo não era tão evidente. Provavelmente pela simples razão de queele estava agora em coma mais profundo. Eu continuava terrivelmentedesconfortável. Mas a que propósito é que eu me tinha “armado em Deus” numasituação mais do que desesperada? Para prolongar o sofrimento da criança e dafamília? Às vezes o melhor que temos mesmo a fazer, o mais sensato, o maishumano é abstermo-nos de medidas heróicas [ou fúteis, melhor dizendo] e tentarapenas confortar os meninos e acompanhar a família…
Mas a resposta dos pais foi a quea Irmã Lurdes tinha previsto. Nem sequer perceberam à primeira o que lhesestávamos a perguntar. Até porque a palavra macua para “estar bem” é a mesmaque significa “estar vivo”. Portanto primeiro perceberam que lhes estávamos aperguntar se queriam levar o filho para casa para morrer ou se queriam que ofilho ficasse melhor no hospital. Os pais olharam-me chocados. Depois optámospor explicar em Português. Aí compreenderam. Mas mesmo explicando que a criançapodia ficar profundamente deficiente nem lhes passava pela cabeça interromper otratamento e levá-lo para casa.
A Irmã Lurdes sorriu-me:
– Pronto, aqui tens as tuasdúvidas esclarecidas.
– Bem, então já que é assim, temosde lhe fazer uma transfusão de sangue. Não temos banco de sangue em Iapala, porisso os senhores têm de ir ter com o Sr. Cachimo com este papel para serem ossenhores a dar-lhe sangue.
– Sim, Irmã…
– E temos de o alimentar, vamoscolocar uma sonda até ao estômago para lhe dar comida.
– Tudo bem, até já. Seprecisares de mais alguma coisa estou no escritório – despediu-se a Irmã Lurdes,alegre.
E depois só para mim: “Eles nãoacreditaram, claro. Eles têm esperança. E eu também tenho. Já vi muitosmilagres acontecerem nesta terra.”
– Os milagres não são para estas coisas,Irmã, o menino está mesmo muito mal. E há muito tempo. Continuo a achar que omelhor era mesmo deixá-lo em paz…
– Não digas isso.
– Está bem, Irmã, eu não voudesistir.
(continua...)