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Mar17
[histórias de amor] as visitas ao baby-de-mulata #2
beijo de mulata
Há tempos comecei a contar a história do longo caminho que levou o meu baby até casa, antes de nos tornarmos família. Mas é sempre difícil escrever sobre momentos tão dolorosos, por isso me tenho esquivado a continuar a história. Mas hoje lá me decidi a continuar um pouco mais.
Nesse primeiro dia de visita à instituição, no final a funcionária pegou no menino ao colo e perguntou-me:
- É a senhora que quer adotar o menino?
- [Estranhei a pergunta. Eu não tinha feito constar no hospital que o queria adotar. Mas também não tinha pedido segredo às poucas pessoas que se tinham apercebido, talvez alguém tivesse comentado com alguém...] Sim, eu queria muito adotá-lo.
- Então se faz favor, fale com a nossa diretora, ela disse-me para lhe ligar se a pessoa aparecesse.
Peguei então no telefone, com a voz trémula. A diretora do CAT, do outro lado da linha, com voz viva e delicada perguntou-me:
- É o casal que quer adotar o menino?
- Eu quero adotá-lo, sim, mas deve haver algum engano, eu sou solteira, não sou casada.
- Ah [o tom de voz tinha mudado], é que me tinham dito que havia um casal interessado. Mas até agora não apareceram, nem deram sinal. E a senhora, conhece o menino de onde?
- Sou médica no hospital onde ele esteve.
- E está inscrita na Segurança Social como candidata a adoção?
- Ainda não, mas estou tratar disso.
- Então tem de tratar do assunto. E venha um dia destes falar comigo.
- Está bem.
Combinámos o dia e fui para casa com o coração apertado. O menino podia não ter olhado para mim, podia ter tido uma regressão de desenvolvimento, podia não recuperar, eu sabia, mas ele estava num sofrimento atroz e eu continuava apaixonada por ele. Era como se fosse um amor de adolescente. Daqueles não correspondidos e espinhosos, mas não tinha vontade nenhuma de desistir. Aquele menino esperava por mim, eu sentia-o desde o primeiro dia.
Na semana seguinte consegui finalmente reunir os papéis todos necessários para apresentação da minha candidatura a adoção na Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e dirigi-me para lá (nos entretantos tinham-me roubado a carteira e tinha tido de ir refazer todos os documentos pessoais, para além da imensidão de documentos e certidões necessários adicionais). A assistente social do serviço de adoções que me atendeu foi muito prestável e informou-me de que sim senhora, eu tinha todos os papéis, mas que o sistema não funcionava assim. Primeiro tinha de ir à "Formação A" e só depois me poderia aceitar os papéis da candidatura. E que, by the way, o processo não era assim tão simples no meu caso, mas que depois me haveriam de esclarecer (eu bem vi que tinha franzido o sobrolho quando lhe tinha dito que me candidatava para uma criança específica... ou teria sido quando lhe disse que sim, que era solteira - ela tinha-me perguntado "É sozinha, não é?", mas não conseguia lidar com tanta informação ao mesmo tempo).
Ai, valesse-me Nossa Senhora, então tantos dias na Loja do Cidadão e ainda estava na estaca zero? E o que era isso de Formação A? Era a primeira das formações obrigatórias. E e também havia a B e a C, se queria saber, informou-me a assistente social, mas que isso eram já segundas núpcias. Eu que não me preocupasse, estava com sorte, haveria uma formação já agendada para a semana seguinte e, depois de um período de uns dias, que era obrigatório para poder pensar, poderiam aceitar-me os papéis. O atestado médico que eu tinha é que estava errado. Era preciso outro onde o médico atestasse que eu não sofria de cancro, infertilidade, doença psiquiátrica, etc. (já não me lembro bem) e deu-me a minuta para poder ir pedindo consulta no meu médico assistente.
Pedi dispensa no serviço para ir à bendita Formação A, a tal que abriria as portas para me poderem finalmente aceitar os papéis da candidatura. O meu chefe chamou-me: "Tu és uma mulher de armas, eu sei, mas já pensaste bem no que te vais meter?" "Já doutor, já pensei." "Então vai, rapariga!" Nisto já se tinham passado duas semanas desde a visita ao baby e chegou o dia da Formação. Uma sessão de esclarecimento em que bem mais de metade dos candidatos desistiram e não chegaram a entregar os papéis. Nessa mesma sessão era suposto preenchermos um questionário de 40 páginas com perguntas abertas do tipo: "Descreva sucintamente o seu percurso de vida e as razões pelas quais gostaria de adotar uma criança". Tinha 10 ou 20 linhas para responder a cada pergunta. Enfim, era o que tinha de ser feito. Depois dos dias regulamentares da "moratória", fui entregar os papéis. Ou melhor, pensava eu que ia "entregar os papéis". Mas o que se passou foi muito diferente:
Tive a sorte de encontrar uma pessoa extraordinária. Esta assistente social também franziu o sobrolho, tal como a anterior, quando lhe disse que me candidatava para adotar uma criança específica. Ao que parece a anterior não me tinha dito nada porque imaginou que eu desistiria nos entretantos, como mais de 80% das pessoas que os procuram num primeiro momento, e que portanto não precisaria de me explicar que o sistema não funcionava assim. E não pode funcionar, claro. Eu sei e sempre tive consciência de que não pode funcionar assim. As pessoas inscrevem-se e ficam em lista de espera e não podem passar adiante de ninguém que já se tenha inscrito há mais tempo. Nem me poderia ser atribuída qualquer vantagem por já ser "amiga voluntária" da criança. Assim qualquer um que tivesse acesso a hospitais, maternidades ou centros de acolhimento poderia ter vantagem. Fiquei gelada, mais uma vez. Tanta esperança para nada... Por um lado era o fim das minhas esperanças, mas por outro lado podia ser um alívio para o calvário que se adivinhava, com uma perturbação tão grave do desenvolvimento que o baby tinha... Ficaria dispensada dessa espinhosa cruz que me tinha proposto carregar... Mas não, não estava certo, não podia estar certo! Aquele era o meu menino, eu sabia-o desde o primeiro dia no hospital! Não era uma cruz, eu sempre tinha rezado por um menino que me caísse nos braços, mas para me cair nos braços tinha de ser um menino que mais ninguém quisesse! E não estava a ver mais ninguém a querer adotá-lo! Não podia baixar os braços.
- Mas eu não estou aqui para enganar ninguém - respondi, depois de vacilar -, eu estou aqui porque acho que ninguém vai querer adotar o menino. Ele tem vários problemas de saúde e todos graves. E tem uma perturbação de desenvolvimento. Eu quero muito ser mãe dele, é verdade, mas acho que provavelmente sou a única candidata nestas circunstâncias.
A assistente social franziu o sobrolho mais uma vez, fazendo o mundo cair-me aos pés de novo, mas em vez de me "despachar" com um "mas isso é ilegal e ponto final", resolveu dar-se ao trabalho de ir averiguar os factos. E estou-lhe eternamente grata por isso. Regressou mais de 45 minutos depois, após vários telefonemas, com a informação de que o que eu dizia era verdade.
- Tem razão, para esta criança não se vislumbram candidatos. Mas isto é até à data. Se entretanto aparecer mais alguém a situação poderá modificar-se. E só podemos fazer o estudo do seu caso com autorização do Senhor Provedor da Santa Casa.
- [Ah, finalmente, uma esperança!] Mas claro, quem pode pedir autorização? Sou eu? Eu peço!
- Sim, mas tenha calma. Vamos aceitar a sua candidatura, depois falamos sobre isso, por acaso o seu processo vai ser para a minha equipa. Vamos então marcar a primeira entrevista...
Nesse dia, depois de tantos momentos estranhos e tantas emoções contraditórias, cheguei a casa cheia de esperança... Talvez fosse mesmo verdade que o baby me estivesse destinado. Talvez não fosse só um devaneio, talvez fosse mesmo o meu sonho a tornar-se realidade!
(Há-de continuar...)