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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

13
Jul10

[et in iapala ego] a visita da manhã

beijo de mulata
(E agora que já rompeu a madrugada...)

Deixo-me ficar na cama mais uns minutos depois do alarme do telemóvel tocar (tarefa ingrata para um telemóvel, servir apenas de despertador – e o pobrezinho ainda é dos únicos aparelhos electrónicos que funcionam na Missão, depois de termos ficado sem energia... só enquanto a bateria durar...). Recordo-me desta noite... ainda nem acredito que recebi um recém-nascido à luz das velas, como nas mais antigas histórias que ouvia contar! Escrevi uma mensagem ao meu mentor espiritual: “Estou completamente em euforia! Deixa-me mandar-te beijinhos, abraços, festas de Carnaval, pássaros do paraíso, ramos de petúnias, vidros da Marinha Grande. Azuis. Azuis porque é rapaz, ainda não tem nome mas há-de ter, pesa 2.900 g e teve choro imediato num espanto desmedido, o primeiro bebé que nasceu pela minha mão!” Mas o telemóvel, em vez de enviar a mensagem para o éter, na esperança de uma nesguinha de rede, avisou-me que a guardaria na memória, mesmo a tempo de dar um último suspiro antes de expirar de vez por falta de bateria.

Arrepio-me de pensar em levantar-me para ir tomar duche. Se há coisa a que seria improvável habituar-me é ao duche de água fria pela manhã. Um importante aspecto em que a minha inculturação falharia sem apelo nem agravo... As Irmãs sempre solícitas: "Pode pedir ao cozinheiro que lhe aqueça água para o banho." Mas nem pensar em indulgenciar nessas mordomias quando a lenha é tão difícil de arranjar... Normalmente alterno entre duas modalidades de entrar no chuveiro, a marcha lenta e o sprint, consoante a inspiração do momento, mas hoje, dado o adiantado da hora, vou mesmo ter de vencer os três metros barreiras femininos se quiser estar pronta a tempo e não me fazer esperar. Avanço para a minha casa de banho privativa (luxo único!), apenas para descobrir que novamente não há água corrente. Mas nestes dias já aprendi a tomar um banho completo apenas com um balde de água e um jarro. (Outra coisa que também já aprendi é que há quem consiga tomar com menos! Aliás, tenho uma amiga que nasceu em Angola e recorda muitas vezes o tempo em que uma garrafa de litro e meio de água do Luso dava direito a um banho completo com champô e amaciador! Será que alguma vez chegarei a esta perfeição?)

Saio do banho mais desperta e revigorada (afinal todas as manhãs descubro que tomar banho de água fria até pode ser um exercício muito útil). Cumprimento a Amélia, a minha discreta companheira de quarto, uma osga simpática e madrugadora, que a esta hora já se encontra colada aos vidros da janela ao sol (desconfio que terá passado ali a noite...), com as patinhas cheias de dedos esticadas numa enorme preguiça, à espera do pequeno-almoço esvoaçante. Instalou-se no meu quarto há três dias, trazida pelo cozinheiro ante o meu olhar de ponto de interrogação (eu tinha-lhe pedido insecticida pois não tinha rede mosquiteira no quarto, ao que ele respondera:

– Não sei o que é "set'cida", Doutóra...
– Remédio para os mosquitos – reformulei.
– Ah, não tem problema!
E horas depois regressou com a Amélia...). A verdade é que esta minha inquilina é uma exímia caçadora de mosquitas, mosquitos e moscas e ainda não precisei de usar insecticida. Já vestida, apresso-me para a sala de jantar para tomar o pequeno-almoço de pão com doce de manga, banana-macaco e café natural, deliciosamente perfumado, criado, torrado e moído na própria Missão.

Chego ao hospital já passa das 07:00 e esperam-me para iniciar a visita. O Rufino, o menino de nove anos que chegou durante a noite, miraculosamente, ainda sem ter feito sequer a segunda dose de quinino, já acordou, levantou-se para ir à latrina e toma agora o mata-bicho com o ar vagamente desorientado de quem não conhece o sítio onde está nem faz ideia da forma como lá foi parar...

(Ditosa pátria que tais filhos tens! Assim vale a pena trabalhar, se ficam bem logo à primeira dose!)

À excepção deste susto, no internamento foi uma noite calma, sem intercorrências e há poucas novidades dos doentes internados. Como são poucos os que permanecem nas suas camas após o acordar (só mesmo os que não se conseguem pôr de pé é que ficam na cama), para os observar temos de os ir procurar ao pátio. Sempre o mesmo alvoroço hilariante todas as manhãs. Nunca me tinha passado pela cabeça uma situação destas: ir para o hospital trabalhar e ter de ir à procura dos doentes para os observar... E nunca estão todos no pátio! Uns foram ao rio lavar a roupa ou tomar banho, outros foram ao mercado, outros foram a casa se moravam perto, outros foram à missa das 07:00, enfim... estão presentes à hora da medicação e depois fazem uma vida o mais normal possível, porque não têm quem lhes dê banho, lave a roupa, providencie lençóis lavados ou cozinhe para eles. Mas em Moçambique não sejas romano e eu cá vou trabalhando com as condições que tenho... Mas estão quase todos a melhorar, portanto depois da visita deixo o trabalho nas mãos dos enfermeiros e vou para a Pediatria. Não resisto a passar pela maternidade primeiro para visitar o recém-nascido e a mãe. Estão ambos bem. A mãe, então, está radiante com o seu menino tão esperado.

(São 8 horas de manhã, caramba, não perguntem se continua, que obviamente não vou já descansar!)

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