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Mai10
[circularidades de uma pediatra loira] a minha vida dava um filme cigano
beijo de mulata
Há alguns anos, era eu uns anos mais nova (com a devida vénia aos soldados gozões que imortalizaram o Marquês de la Palice), quando uma noite, estando de urgência no meu hospital, uma colega me veio chamar porque estava a ver um menino de etnia cigana e suspeitava que ele podia ter uma displasia ectodérmica (tinha dois anos, ainda não tinha dentinho nenhum - e, ao contrário da outra mãe, esta nunca o tinha pensado em levar ao dentista - tinha muito pouco cabelo, não transpirava e tinha infecções respiratórias umas atrás das outras).
A mãe, como qualquer cigana que se preze, estava apenas preocupada com as "inginas" e com o "gómitos" e completamente a leste do quadro global. Expliquei-lhe que lhe ia marcar uma consulta para esclarecermos melhor o que se passava, mas a mãe começou de imediato a desvalorizar a situação. E que tinha de ir todos os dias com o marido para a venda e que não ia ter tempo, que até já uma vez tinha andado lá no hospital nas consultas com o irmão mais velho porque "era atrasado" e que até o "tinham posto a dormir para fazer uma sornância" e nunca se tinha descoberto nada. Que não, que não ia, que ela não era pessoa para acreditar em médicos e andar em hospitais a perder tempo.
Lá me enchi de paciência e expliquei à mãe que a consulta era para ver se o menino deixava de ter tantas vezes falta de ar, para perceber se ele transpirava ou não porque se não transpirasse de todo podia ter um golpe de calor - e até podia ter convulsões - e para esclarecer por que é que ainda não tinham nascido os dentinhos ao menino. Isto, pelo menos, é o que eu me recordo de ter dito. Como se a mãe tivesse ficado razoavelmente convencida, marquei a consulta para a semana seguinte.
Na segunda-feira, chego de manhã ao hospital e deparo-me com um acampamento de ciganos por todo o jardim, as carrinhas nas traseiras do hospital, fogões de ar livre estrategicamente montados mesmo em frente ao reservatório de gases medicinais e vários grupos dispersos, sentados aqui e ali como quem espera alguma notícia importante e pensei: "Deve estar algum ciganito muito doente internado por aí em alguma enfermaria..." E fui trabalhar.
Ao início da tarde deixei a enfermaria e fui para o pavilhão das consultas. De súbito, reconheci os pais do menino que eu tinha mandado vir à minha consulta, notei que estavam numa posição de destaque no grupo, que pareciam tensos e que cochicharam qualquer coisa para um homem mais velho, após o que todos se voltaram na minha direcção... E foi mais ou menos assim que percebi que aquele ajuntamento étnico estava à espera... da minha pessoa. E preparavam-se para me seguir para dentro do pavilhão.
Engoli em seco e lá fiz das tripas coração, dirigi-me à mãe, cumprimentei-a e perguntei-lhe quem era o sogro. Este apresentou-se de imediato e convidei-o para entrar como acompanhante dos pais. Para meu alívio, ele fez o que se espera de um chefe de família: voltou-se para a multidão e ordenou-lhes que esperassem, que ele ia ali a uma consulta com o neto e já vinha.
Lá entrámos, comigo intrigadíssima por aquele aparato todo, com a mãe e o pai a desfazerem-se em lágrimas e com o avô com um ar muito circunspecto. "Isto promete...", pensei. Já na consulta, depois de algumas perguntas, fiquei a saber que a mãe tinha percebido que eu lhe tinha dito que o menino não teria dentes.
- Como?! - exclamei para mim mesma. Mas verdade verdadinha é que, embora eu não me lembrasse de lhe ter dito isso, lá que existia essa possibilidade, existia... E então, ó valesse-me Nosso Senhor dos Aflitos, como é que eu ia descalçar aquela bota assim sem mais nem menos? Lá peguei no telefone e expliquei à técnica de radiologia que precisava de uma ortopantomografia urgente. Que sabia que não era um exame para se pedir àquela hora, que sabia que era preciso marcar com antecedência, que sabia que só excepcionalmente se fazia a uma criança de dois anos, mas que compreendesse que era uma absoluta emergência médica... A técnica, estupefacta e desconfiada, mas compadecida da minha voz aflita, lá anuiu num "Venha lá, então." como quem diz "Olhe que se continua a preocupar-se tanto com os meninos vai morrer cedo."
Meia hora depois, naquele hospital havia mais uma família aliviada, mais uma médica histericamente feliz (embora por razões ligeiramente diversas), mais uma técnica de radiologia a pensar "Estas pediatras d'agora são loucas!", menos um ajuntamento étnico - que dispersou em menos de um ai. E mais uma consulta começou tranquilamente...
A mãe, como qualquer cigana que se preze, estava apenas preocupada com as "inginas" e com o "gómitos" e completamente a leste do quadro global. Expliquei-lhe que lhe ia marcar uma consulta para esclarecermos melhor o que se passava, mas a mãe começou de imediato a desvalorizar a situação. E que tinha de ir todos os dias com o marido para a venda e que não ia ter tempo, que até já uma vez tinha andado lá no hospital nas consultas com o irmão mais velho porque "era atrasado" e que até o "tinham posto a dormir para fazer uma sornância" e nunca se tinha descoberto nada. Que não, que não ia, que ela não era pessoa para acreditar em médicos e andar em hospitais a perder tempo.
Lá me enchi de paciência e expliquei à mãe que a consulta era para ver se o menino deixava de ter tantas vezes falta de ar, para perceber se ele transpirava ou não porque se não transpirasse de todo podia ter um golpe de calor - e até podia ter convulsões - e para esclarecer por que é que ainda não tinham nascido os dentinhos ao menino. Isto, pelo menos, é o que eu me recordo de ter dito. Como se a mãe tivesse ficado razoavelmente convencida, marquei a consulta para a semana seguinte.
Na segunda-feira, chego de manhã ao hospital e deparo-me com um acampamento de ciganos por todo o jardim, as carrinhas nas traseiras do hospital, fogões de ar livre estrategicamente montados mesmo em frente ao reservatório de gases medicinais e vários grupos dispersos, sentados aqui e ali como quem espera alguma notícia importante e pensei: "Deve estar algum ciganito muito doente internado por aí em alguma enfermaria..." E fui trabalhar.
Ao início da tarde deixei a enfermaria e fui para o pavilhão das consultas. De súbito, reconheci os pais do menino que eu tinha mandado vir à minha consulta, notei que estavam numa posição de destaque no grupo, que pareciam tensos e que cochicharam qualquer coisa para um homem mais velho, após o que todos se voltaram na minha direcção... E foi mais ou menos assim que percebi que aquele ajuntamento étnico estava à espera... da minha pessoa. E preparavam-se para me seguir para dentro do pavilhão.
Engoli em seco e lá fiz das tripas coração, dirigi-me à mãe, cumprimentei-a e perguntei-lhe quem era o sogro. Este apresentou-se de imediato e convidei-o para entrar como acompanhante dos pais. Para meu alívio, ele fez o que se espera de um chefe de família: voltou-se para a multidão e ordenou-lhes que esperassem, que ele ia ali a uma consulta com o neto e já vinha.
Lá entrámos, comigo intrigadíssima por aquele aparato todo, com a mãe e o pai a desfazerem-se em lágrimas e com o avô com um ar muito circunspecto. "Isto promete...", pensei. Já na consulta, depois de algumas perguntas, fiquei a saber que a mãe tinha percebido que eu lhe tinha dito que o menino não teria dentes.
- Como?! - exclamei para mim mesma. Mas verdade verdadinha é que, embora eu não me lembrasse de lhe ter dito isso, lá que existia essa possibilidade, existia... E então, ó valesse-me Nosso Senhor dos Aflitos, como é que eu ia descalçar aquela bota assim sem mais nem menos? Lá peguei no telefone e expliquei à técnica de radiologia que precisava de uma ortopantomografia urgente. Que sabia que não era um exame para se pedir àquela hora, que sabia que era preciso marcar com antecedência, que sabia que só excepcionalmente se fazia a uma criança de dois anos, mas que compreendesse que era uma absoluta emergência médica... A técnica, estupefacta e desconfiada, mas compadecida da minha voz aflita, lá anuiu num "Venha lá, então." como quem diz "Olhe que se continua a preocupar-se tanto com os meninos vai morrer cedo."
Meia hora depois, naquele hospital havia mais uma família aliviada, mais uma médica histericamente feliz (embora por razões ligeiramente diversas), mais uma técnica de radiologia a pensar "Estas pediatras d'agora são loucas!", menos um ajuntamento étnico - que dispersou em menos de um ai. E mais uma consulta começou tranquilamente...