23
Fev12
[casa do gaiato] os girassóis da tia cármen
beijo de mulata
Os fantásticos girassóis da tia Cármen... o paradigma da sua defesa da personalidade!
(continuando...)
A tia Cármen, a vovó dos meninos da Casa do Gaiato, contou-me uma tarde a sua dura experiência de uma infância passadadurante a guerra civil de Espanha, em que mais do que uma vez tinha sidoobrigada a fugir a pé com a família. Nesse dia, já rendida àquela personagemmaternal, divertida e invulgar, pedi-lhe para me falar dos seus trabalhosartísticos e ela contou-me simplesmente que o maior prémio de pintura quealguma vez tinha recebido representava um enorme campo de girassóis. Diasdepois mostrou-me uma fotografia desse quadro, em que os girassóis eramretratados a partir de baixo, com os caules cheios de espinhos e a luz do pôrdo sol adivinhando-se coada pelas corolas das enormes flores. Mas longe de sera visão serenamente bucólica que eu tinha imaginado, a imagem veiculava umadesconcertante sensação de movimento e opressão.
– Este quadro chama-se “A Fuga”. Durante anos tive a obsessão de pintargirassóis vistos por baixo porque tinha de deitar cá para fora a imagem do piordia da minha vida, que foi o dia em que perdi o meu pai e tivemos de fugir decasa sem levar nada connosco através de um campo de girassóis. Eu era muitopequena e só tenho a recordação de enterrar os sapatos na areia mole e malconseguir avançar, como nos pesadelos. E os girassóis eram altíssimos e tinhamuns espinhos enormes que não picavam, mas arranhavam a pele até ficar toda emferida.
Pois… estava explicada, portanto, a sua vocação do ensino da expressãoplástica aos meninos. Ao ensiná-los a pintar estava a transmitir-lhes a suamelhor defesa da personalidade, a ensinar-lhes que pintando as suas angústias emedos poderiam mais facilmente vencê-los.
Mas não eram só aulas de pintura queleccionava. O que os meninos mais gostavam de fazer era contar a história dosdesenhos, falar sobre as personagens, inventar diálogos, projectar-se nasfiguras. De vez em quando ouvia um dos meninos dizer:
– Hoje sou eu a contar uma história à tia Cármen!
(continua...)