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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

20
Set11

[aviso] ignore este aviso!

beijo de mulata
Meus queridos amigos, serve este pequeno parêntesis para vos explicar que aqui no mato não possuímos livro de reclamações, tal como está patente ali ao fundo, do lado esquerdo daquele exíguo mapa onde se pode acompanhar o crescimento deste improvável beijo de uma mulata que, por acaso, e ao fim de todas as contas, não é mulata nem nada. E, que se formos bem a ver, também não é beijo coisíssima nenhuma, mas adiante, que há coisas que não se devem pôr em causa e os beijos das mulatas são uma delas. Os beijos das mulatas são sempre de coração. Mesmo das mulatas que só são mulatas por dentro.*

Mas o que eu vos queria dizer é que nós aqui no mato, não possuímos livro de reclamações. Pode alguém reclamar de um beijo, homens de Deus? De um beijo não se reclama, nem que seja roubado. Bem... sobretudo se for roubado... E pode alguém repudiar uma flor? Mesmo que seja só uma flor fingida, enterrada num balde de gelo, meus amigos, ou que tenha nascido nos confins da savana, uma flor é sempre uma flor!

E há ainda outras razões para não termos livro de reclamações. Nenhuma delas minimamente defensável, mas enfim, são as nossas. E quem dá o que tem, a mais não está obrigado, não é assim? Em primeiro lugar porque o Sr. Pompisk, padrinho honoris causa deste mato, também não possui um livro de reclamações.

[Para os que só chegaram agora, ou para os mais distraídos, há todo um conjunto de hiperligações ali numa das colunas da direita, onde se fala sobre o Sr. Pompisk (para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um abraço), embora, infelizmente, acho que não se fique a saber rigorosamente nada sobre ele. Ou bem... quase nada... Uma das coisas que ostensivamente não se fica a saber é a razão obscura pela qual a sua barraca "Só Basta Viver" no Gilé não possui um livro de reclamações. Mas isso, presumo, é lá com ele. Com ele e com a barraca dele...]

E enquanto o Sr. Pompisk não tiver um canhenho, por pequeno que seja, onde, honesta e dignamente, um cliente possa destilar todo o fel que guarda em segredo na sua alma contra aquele negócio, nós também não nos achamos no direito de o ter. E, por último, achamos assim um bocado idiota ter um livro de reclamações num blog. É sobretudo isso.

Por isso, meus caros, estas ruminações bloguísticas servem para dizer que não adianta mandarem mails atrás de mails para aquele endereço que está mesmo a pedi-los, justamente por debaixo do aviso de que este blog não possui livro de reclamações, a reclamar sobre a minha mania de falar sobre nomes de pessoas quando podia estar a falar de coisas sérias e a fazer serviço público, porque eu continuo a achar que é um excelente tema de conversa. Só vou responder à simpática senhora que observou que os três pequenos freaks mencionados no post abaixo, os irmãos Faquir de Domingo, Milagre de Domingo e Vidêncio de Domingo, não tinham necessariamente de ser filhos de um senhor chamado Domingo. A sua tese é que eles podiam perfeitamente ser filhos de um weekend man que projectasse na descendência todo o seu exotismo de fim de semana. E, portanto,"de Domingo" poderia perfeitamente ser nome próprio.

Podia, é verdade. Mas não, cara leitora, "de Domingo" neste caso não é nome próprio. Em Moçambique, pelo menos nas zonas de mato por onde trabalhei (suspeito que noutras províncias e nas grandes cidades não seja assim), o apelido das crianças não é o apelido do pai, mas o seu primeiro nome. A título de exemplo, o filho do senhor Ozias Trinta chamar-se-á José Ozias e não José Trinta. E não vejo qualquer inconveniente nesta prática. Pelo contrário. Assim obvia-se a confusa tradição que é dar ao filho o nome do pai sob pena de a criança ficar com o nome ridículo de João João ou coisa que o valha. Que isto de nomes repetidos é coisa que mais tarde ou mais cedo acaba por trazer desordem na família.

*O aviso que chama a atenção para a inexistência de um livro de reclamações está lá em baixo, confiem em mim, vão lá depois, que se não nunca mais saímos disto... Pronto, sim, logo vi que não bastava uma nota de rodapé, está mesmo ao lado do mapa das bolinhas vermelhas, onde até se pode constatar que os beijos de mulata têm, como se quer, uma especial apetência por zonas soalheiras e assim pertinho do mar e que se reproduzem desenfreadamente, pior que uma erva daninha, meus amigos, é o que vos digo... mas agora voltem cá para cima, que diabo! Até parece que têm bichos carpinteiros!
11
Jul11

[das coisas que me alegram...] mais além!

beijo de mulata
Calculem, meus amigos... então não é que uma leitora que vem amiúde visitar-me aqui a este mato de beijos, mulatas e recordações, há uns dias, passando pelo Gilé a caminho de Nampula, teve uma avaria no jeep. Parece que se rompeu a bomba da água, ou coisa que o valha... uma daquelas avarias que conseguem transformar uma viatura que se tem por garantida (e em quem não se pensa a não ser quando é para encher distraidamente o depósito, mais a pensar na crise do que no bem-estar da dita), numa criatura odiosa que deita fumo, cheira a queimado e que fica teimosamente no meio da estrada como uma mula ruça a quem deu a travadinha e não dá nem mais um passo até que venha um macho buscá-la. E mesmo assim, só com muitas cenouras e alguma sorte [ai, mas que erudito que isto está hoje, com machos, cenouras e mulas ruças e tudo... qualquer dia admirem-se que apareça por aqui uma cigana a dançar flamenco...]. Isto a 300 km da cidade de Nampula, sem rede de telemóvel e sem qualquer hipótese de chamar um reboque porque [surpresa!], estamos precisamente no mato em Moçambique e Assistência em Viagem é coisa que não existe por aqui.

O povo macua é pacífico e muitíssimo prestável, delira por poder ajudar nestas situações. É sempre uma oportunidade de sair da rotina, de demonstrar a sua habilidade aos outros homens, divertir as crianças e de se exibirem às mulheres que se amontoam, curiosas, para observar o processo. Mas desta vez, por mais homens que aparecessem, não se tratava de mudar um pneu ou ajudar a retirar o carro de um dos imensos buracos da estrada onde é muito provável cair...

Foi então que a nossa estimada amiga se lembrou, brilhantemente, de que o Sr. Pompisk, tão falado neste blog (e até com direito a tag na coluna dos motes, à vossa direita) é que poderia ser a pessoa que a conseguiria ajudar naquela hora de aflição! E era verdade. Este quase apátrida, filho de mãe alemã e pai polaco mas auto-proclamado Moçambicano por usucapião, comerciante riquíssimo, bon vivant e dono de um coração mais do que generoso, era provavelmente a única pessoa que lhes poderia valer naquele mato... Voltaram à vila e, mesmo sem o conhecerem, perguntaram pelo Sr. Pompisk. E foi ele quem, pragmático, generoso e prestável como só ele, improvisou um reboque e as levou até Nampula! Para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um grande abraço... Fiquei mesmo feliz por mais uma prova de que a vida é simples. Ou, pelo menos, devia...
29
Abr11

[a tale of three markets] os mercados, a especulação e o sr. pompisk

beijo de mulata

I love New York, I'd live in Paris but...
Mozambique is easier!

No centro do mundo há a bolsa de valores, a especulação e a manipulação financeiras, há a subida e descida do preço das acções e do petróleo de acordo com o nervosismo dos mercados... A lei da oferta e da procura seria uma lei natural e básica se não existissem todos os outros factores estranhos e parasitas que a impedem de funcionar de forma linear. No Gilé há o Sr. Pompisk e a sua barraca "Só Basta Viver". ?O Sr. Pompisk é o garante da estabilidade da oferta e da ausência de oscilações dos preços. Para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um grande abraço!

É ele quem compra quase todos os produtos agrícolas da região, garantindo o escoamento dos pequenos produtores e controlando a oferta de bens alimentares de primeira necessidade. Assim, enquanto o Sr. Pompisk tiver stock, todos os outros comerciantes mantêm os preços a um nível acessível. De tal forma é importante a sua actividade para a estabilidade do nível de vida do Gilé, que foi impedido pelo Governador de fechar a loja durante os períodos das suas férias, precisamente para evitar a especulação e subida de preços por parte dos outros comerciantes, situação que poderia, literalmente, precipitar uma catástrofe alimentar!

P.S. - Tenciono continuar a escrever posts sobre o Sr. Pompisk até que alguém se decida, finalmente, a perguntar: "Mas afinal, quem raio é o Sr. Pompisk, podes explicar-nos, beijo-de-mulata? Se faz favor."
26
Abr11

[e porque hoje é necessário] um abraço ao sr. pompisk

beijo de mulata


Sonho um dia reescrever esta letra intitulando-a de "Um abraço ao Sr. Pompisk!" Ele não nos está a ouvir, certamente (no Gilé não há internet de banda larga, há um preço a pagar por viver no paraíso...). Mas não quero deixar de lhe prestar homenagem e de lhe enviar um grande, grande abraço. Obrigada e bom dia a todos.
17
Abr11

[a tale of three cities] as notícias

beijo de mulata

I love New York, I'd live in Paris but...
in Zambezia you can also have first-hand news... with Mr. Pompisk!

Fácil. Muito fácil! E, de facto, muito mais divertido. Nas palavras dos próprios habitantes do Gilé: "Se o Sr. Pompisk não sabe de nada é porque não aconteceu!"? Para ele, se nos estiver a ouvir, um grande abraço!
09
Jan11

[fotografando a zambézia] fotos frescas...

beijo de mulata
Há um senhor, jornalista no Diário da Zambézia (graças ao Professor leio-o ainda mais religiosamente que o Público, o DN e o JN), que criou recentemente um fotoblog da Zambézia. Fotos frescas, que aliteração irresistível! Resta-me dar-lhe as boas vindas e fazer votos para que se mantenha por aqui por muito tempo, para dar alegrias a este mato, que sofre profundamente com as saudades desse pedaço de céu... e com a falta de sol, de papaias frescas acabadas de colher, dos cozinhados do Sr. Ernesto, das histórias de curandeiros e danças tradicionais. Com a ausência de uma entidade omnisciente e omnipresente no local (o Sr. Pompisk-para-ele-um-grande-abraço!). E sobretudo com a falta de um sentido mais profundo nas pequenas coisas do dia-a-dia...

Já agora, se não for pedir muito, senhor Zefanias, se passar pelo Gilé... tire-lhe mais umas fotografias... e veja se um improvável casal de perus à porta do hospital ainda está vivo e continua a perseguir afincadamente os transeuntes e se as árvores que eu e a R. plantámos, nos terrenos da missão ao lado do depósito municipal, ainda estão akumi...

(um) beijo de mulata
14
Dez10

[pássaros feridos] improbabilidades da vida no mato

beijo de mulata
A avenida do hospital
(Gilé, Zambézia)

E a propósito de traficantes de ouro... Há dois anos um negociante holandês, numa viagem de avioneta para o Gilé, teve uma avaria no trem de aterragem e ficou a sobrevoar a vila durante tempos infindos para tentar esgotar o diesel e procurar um local de aterragem mais plano e seguro do que o descampado onde costumava aterrar. A chegada de um avião é sempre um acontecimento empolgante no mato e uma meia hora em djika-djika sobre a vila foi suficiente para colocar metade do Gilé na rua em polvorosa e de nariz no ar, tentando perceber que raio é que se passava com aquele passarão branco que rosnava de perto, ameaçadoramente perto, parecendo lutar contra a gravidade sem se atrever a arriscar o inevitável encontro com o solo. Que lhe valesse Santa Rita de Cássia, padroeira das causas impossíveis, se os estivesse a ouvir...

Por fim, o grande pássaro ferido resolveu-se a aterrar... em plena avenida principal! E, apesar de ter visto homens, mulheres e crianças no meio da rua, "arreda que lá vai aço!", de repente, e sem qualquer aviso prévio, poisou no início da avenida e iniciou um sprint interminável de 300 metros digno de um filme de terror, no meio de poeira, gritos e aflições, acabando por embater contra o muro do hospital.

Miraculosamente, toda a gente escapou ilesa, desde as pessoas na avenida até ao piloto da avioneta, passando pelo impagável casal de perus que vive acantonado à porta do hospital e que persegue afincadamente os transeuntes, num glu-glu-glu trôpego e ameaçador. [Nota mental: escrever sobre esta dupla improvável. Será um post algo arriscado porque pode ter efeitos colaterais, não para o casal de perus, que não tem nada a perder, mas para a minha própria reputação. Mas enfim, talvez arrisque... Sabem que geralmente não resisto a uma boa história. E há uma contra-ameaça que talvez me proteja...]

Minutos depois, no meio do silêncio incrédulo que se seguiu àquele acidente odioso mas felizmente sem consequências, o povo viu sair, com apenas duas ou três escoriações na face, o piloto holandês. Mal recomposto do susto, procurou bebida e pousada na residencial do Sr. Pompisk (para ele, mesmo que não nos esteja a ouvir, um abraço!), que lhe disse, obviamente, que nessa noite estariam lotados e que a cerveja estava esgotada. Não se atrapalhou. No mato, para o bem ou para o mal, há sempre alternativas. Pagou regiamente a três agentes da polícia para ficarem a guardar a sua avioneta durante três dias, salvando-a assim da pilhagem mais que certa, pernoitou em casa do administrador e, no dia seguinte, partiu num jeep alugado para regressar dois dias depois com um camião e um grupo de mecânicos que desmontou o aparelho e o levou dali, para nunca mais regressar.
14
Dez10

[welcome to mozambique] das minas e suas armadilhas

beijo de mulata
Garimpo
(Foto surripiada de um outro site, provavelmente com direitos de autor, mas cuja origem não me recordo. Desculpem qualquer coisinha, sim? Se me lembrasse punha aqui o link, juro!)

Uma das riquezas do Gilé, a par com a reserva de caça turística e os cajueiros a perder de vista, são as minas de ouro e de pedras preciosas... Exploradas, obviamente, por grandes multinacionais estrangeiras, que nem por sombras investem no distrito ou nas pessoas. Criam alguns postos de trabalho, é certo, embora altamente precários, mas podiam talvez formar uma ou outra parceria com o Governo para, por exemplo, melhorar as vias de comunicação e assim até escoar mais facilmente o minério... Ganhavam todos... As multinacionais não são a Santa Casa da Misericórdia, disso já toda a gente sabe, mas estão a explorar a riqueza de um país em vias de desenvolvimento, valha-me a Santa! Podiam ter uma conduta ética e demonstrar alguma sensibilidade pela situação do povo, tanto mais que a actividade é extremamente lucrativa. Mas enfim, estou a repetir-me e até já sabemos que eu não gosto de falar sobre este tipo de coisas... E de qualquer modo eu não sou de cá, só cá vim ver a bola...

E onde há minas de ouro há sempre garimpeiros, homens que exploram ilegalmente o solo, numa actividade rudimentar, mas extremamente arriscada e, se possível, ainda mais destruidora do meio ambiente e poluente. As minas são uma atracção enorme para os jovens e são muitos os que lá deixam ficar a vida ou ficam mutilados em acidentes violentos com explosivos ou nos desabamentos de que ouvimos falar quase diariamente... Nunca me vou esquecer que no mesmo dia em que 33 mineiros ficaram soterrados no Chile e meio mundo se mobilizou para os resgatar, vimos chegar um jovem de vinte anos inconsciente, trazido por quatro homens, após ter estado soterrado durante uma manhã inteira na sequência do desabamento de um túnel. Minutos depois percebemos que o absoluto desconhecimento de como fazer um desencarceramento e o transporte em caso de traumatismo vértebro-medular tinha arruinado a vida daquele rapaz para sempre. Tinha ficado tetraplégico... Ainda tentámos fazer-lhe corticóides em altas doses e transferimo-lo para um centro com Neurocirurgia, mas não foi possível fazer mais nada por ele... Aquele acidente horrível e a operação de resgate desastrosa teriam impossibilitado a sua recuperação em qualquer parte do mundo...

E depois também há os traficantes estrangeiros que transaccionam ilegalmente o ouro e as pedras preciosas. Há uns anos ouvíamo-los chegar nas suas avionetas. Aterravam num descampado que hoje é o campo da bola, deixavam o seu guarda particular a tomar conta da aeromáquina, ficavam alojados na residencial do Sr. Pompisk (para ele, se nos estiver a ouvir, mais um grande abraço!) e, um ou dois dias depois, pela calada da noite, ouviamo-los levantar voo levando a riqueza extraída da terra vermelha com o sangue dos homens na força da vida. Tudo isto às claras, com os administradores impávidos, sem impostos e impune (como devem ser irresistíveis estas aliterações para alguém sem escrúpulos na conta bancária)...

Agora já não vemos chegar avionetas... desde que as estradas estão melhores que os traficantes chegam por terra, em jeeps com logotipos pintados que tento não ler nem fixar (não quero nem pensar que existem ONG e lavagens de dinheiro metidas no meio disto tudo...).
12
Dez10

[beijo-de-mulata fashion] o ouro da zambézia

beijo de mulata

Próximo do grande Centro Hospitalar do Gilé, na mesma rua da pousada do Sr. Pompisk (para ele, se nos estiver a ouvir, aquele abraço!), vivia o único ourives, o Sr. Elvis Pires. Não sei muito bem onde é que ele adquiria o ouro, mas suponho que o comprasse aos garimpeiros das minas situadas a poucos quilómetros da vila. Por acaso isso não me choca nada... Nem tenho a certeza de que os próprios garimpeiros teriam perfeita noção de que a exploração das minas e a comercialização do ouro da sua própria terra era ilegal, de tal forma era feita às claras. Choca-me é o lucro desenfreado das multinacionais que não ajudam o país e a quem o governo oferece a exploração de mão beijada a troco de benefícios que o povo não chega a ver... Mas adiante, que eu não tenho pretensões de Wikileaks. Nem sequer gosto muito de falar de assuntos sérios, sobretudo quando estou a contar uma história. Já bem me bastam tantos problemas que tenho de resolver no dia-a-dia e eu sem poder mudar de assunto...

Mas como eu ia dizendo, o Sr. Elvis Pires, a quem eu tratava respeitosamente por Sr. Ourives porque não conseguia evitar sorrir com o nome improvável, era um homem em muitos aspectos admirável. Apesar do nome, que nos faria pensar numa família vanguardista e com algumas pretensões, as suas origens eram as mais humildes. Oitavo filho de uma família de camponeses, viveu uma infância igual à da enorme maioria das pessoas do país: ajudava os pais no cultivo da terra, ia irregularmente à escola, dormiu no mato durante os anos da guerra civil para se esconder dos ataques dos "bandidos armados", teve a casa destruída inúmeras vezes, viu irmãos morrerem às mãos dos guerrilheiros e sucumbir a doenças banais, teve várias doenças graves e medo de morrer em todas elas, foi mordido por uma cobra e sobreviveu miraculosamente graças a um curandeiro (esta última parte talvez não seja assim tão comum, mas enfim...).  Mas o que fazia a diferença, o que fazia dele um homem remediado, que conseguia sobreviver e ganhar a vida sem ser de mão estendida ou dentro da máquina do partido, era ser um homem de iniciativa, um homem de sonhos e de trabalho.

Mas, por muito suor que empregasse nas suas obras, o Sr. Ourives, com muita pena minha, não era um artista nato. Não era um criador genial e inspirado. O melhor que posso dizer dele é que era um excelente homem de família, um empresário honesto, um executante razoável, mas um artista sem ideias e com um gosto sofrível...

Por isso, a Irmã Lurdes, que pelas minhas contas há-de vir a ser santa, nas suas idas a Paris trazia-lhe sempre catálogos de grandes marcas para ele se inspirar. O último tinha sido o da Cartier. Mas nem assim... Por um lado é preciso bom gosto por parte do artesão e, por outro, é preciso bom gosto e poder de compra por parte do mercado. Ou seja, mesmo depois de ter tido contacto com peças de elevadíssimo gosto em comparação com as suas, as obras de Elvis Pires continuavam as mesmas bolinhas e argolinhas algo toscas de sempre, que ele guardava amorosamente em pequenos saquinhos de comprimidos surripiados da farmácia do hospital...

Felizmente, este ano, a Irmã Lurdes teve uma ideia genial! Numa ida ao Carrefour de Paris lembrou-se de pedir o catálogo da ourivesaria... A face do Sr. Pires iluminou-se quando o viu! Era todo um novo mundo de pequenas ideias acessíveis, simples e baratas ao seu alcance. E foi também com base neste catálogo que o Sr. Ourives recebeu a sua primeira encomenda de uma médica europeia. Meus queridos amigos, eu tive de me esforçar genuinamente, mas no meio do catálogo do Carrefour de Paris consegui encontrar um modelo de brincos engraçado. Ele ficou a babar-se. Já antes me tinha tentado vender sem sucesso algumas das suas obras, mas eu, por muito boa vontade que tivesse, não tinha conseguido comprar nada. A minha intenção com esta encomenda era apenas dar trabalho a um homem de família (e, vá, também queria uma história para contar, pronto, já me conhecem...). Não tinha a mais pálida intenção de os usar mais tarde. Mas... e não é que ficaram perfeitos? É que até que não são feios... Actualmente uso-os de vez em quando. Por graça, mas uso.
28
Nov10

[publicidade institucional] beijo-de-mulata também é fada-do-lar

beijo de mulata
A Hora do Bolo... Zambeziano


Beijo-de-mulata, para além de ser igualmente maria-sem-vergonha e boa-noite (vide um post colocado aqui há atrasado), vai hoje começar os ensaios para se tornar numa dona de casa zambeziana exemplar. Desta feita, vem aqui ao mato para vos provar que é possível cozinhar as iguarias mais sofisticadas com os mais finos ingredientes da Zambézia.

O primeiro bolo chama-se, precisa e mui apropriadamente, beijo-de-mulata e será feito apenas com os mais genuínos ingredientes do Gilé (incluindo os adquiridos na Barraca do Sr. Pompisk - para ele, se nos estiver a ouvir, um grande abraço!).

Ingredientes para a Massa
- 400 g de farinha de mapira bem pilada e peneirada
- 1 colher de sopa de fermento em pó da barraca do Sr. Pompisk
- 7 colheres de sopa de açúcar ou 14 colheres de sopa de suco de cana-de-açúcar parcialmente evaporado
- 1 colher de sopa de manteiga do Sr. Pompisk
- 3 ovos das galinhas das Irmãs ou 1 ovo de pata do ourives do Gilé
- 1 colher de sobremesa de doce de manga das Irmãs
- 1/2 xícara de caju grosseiramente pilado
- 1 cálice de licor de amarula do Sr. Pompisk
- Óleo de amendoim qb (para fritura)

Calda de Chocolate
- 1 xícara de chocolate em pó do Sr. Pompisk
- 1 xícara de suco de cana-de-açúcar
- 1/4 de xícara de leite em pó
- 1 xícara de coco semi-fresco ralado
- Chá do Gurué qb 

Modo de Preparação
Peça ao cozinheiro para preparar o forno a lenha. Mantenha-o por ali para qualquer eventualidade mas dê-lhe uma tarefa fora da cozinha para ele não assistir à balbúrdia que se segue...

Para a massa: Num pote de barro artesanal coloque a farinha de mapira bem pilada e peneirada (reserve um pouco), o suco de cana, o fermento, a manteiga à temperatura ambiente (desde que não estejam mais de 40 ºC dentro de casa, obviamente), os ovos de galinha ou o ovo de pata levemente batido(s),o licor de amarula, o doce de manga e o caju grosseiramente pilado. Misture com uma espátula fabricada pelo Sr. Ernesto do Bairro Malema (são as melhores!). A seguir mexa com as mãos, bem lavadas em água potável (neste momento utilize a farinha reservada).

Para a calda: Numa panela coloque suco de cana de açúcar, o chocolate e o leite em pó reconstituído com chá do Gurué. Misture até desmanchar o chocolate e reserve.

Enrole bolinhas na palma das mãos (volto a insistir na necessidade de ter lavado as mãos em água potável) e frite em óleo de amendoim não muito quente. Retire e escorra. Em seguida passe pela calda de chocolate e pelo coco ralado e escorra.

Agradeça ao cozinheiro, ofereça-lhe alguns beijos-de-mulata e dispense-o. Aproveite o calor do forno para aquecer água para o banho.

Os beijos-de-mulata duram vários dias em pote fechado, o que é uma grande vantagem, uma vez que no Gilé não se pode confiar no frigorífico... Sabem, é que os desmandos de Cahora Bassa são mais que muitos nesta altura do ano...

(Nota, este bolo foi concebido para ser saboreado ao som da noite zambeziana, mas a banda sonora pode ser adaptada em Lisboa: Caetano Veloso, Magnetic Fields, Marrabenta... Sky is the limit!)

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