Era aqui que eu queria estar esta noite e, infelizmente, não posso... Resta-me rezar para que a despedida seja o menos dolorosa possível e que os que ficam encontrem forças para se apoiarem. A mãe deles disse-lhes, pouco antes de morrer (eram eles ainda crianças): "Levo-vos atravessados no meu coração. Amo-vos tanto..." Ele há uns dias disse-lhe o mesmo. E ela, irmã dele e Irmã do mundo inteiro, vai ficando, mas cada vez com mais partes de si longe deste mundo. Há tantos caminhos para a santidade...
Um tanque de guerra feito cama sob as estrelas em Marromeu...
(Marromeu, Sofala)
Marromeu, uma terra encostada à Zambézia, na margem sul do rio que marca o fim da terra dos meus encantos. Há quem diga que foi um indigente que aqui dormiu...
Mas eu pergunto, não pode este carro armado ter sido antes a cama onde duas pessoas se amaram, sob o tecto negro e tórrido do cruzeiro do sul? Não pode a rede mosquiteira ter sido o garante da nudez tranquila de dois corpos que se queriam conhecer sem urgência e saborear o abraço conjunto e a proximidade dos corações? Não pode a chapa fria ter sido coberta pela capulana que ela recebera de presente nesse mesmo dia? Não pode o cantar rítmico das aves nocturnas e dos insectos ter sido a banda sonora mais bonita daquela dança quente a dois? Não pode o mesmo ruído da noite se ter transformado depois na canção de embalar que a savana lhes cantou até de manhã, celebrando aquele amor? Um amor provavelmente impossível, possivelmente proibido... proibitivamente caro, como são todos os amores proibidos?
E por ali ficou, palco de guerra abandonado, testemunha muda dos momentos em que dois corações bateram de repente ao mesmo tempo e depois ficaram por ali, abrandando lentamente, tentando perceber o tamanho do vazio que ficaria quando a manhã rompesse. Terá sido um até sempre? Isso talvez até seja fácil de saber... Se por lá estiver pelo menos um coração destroçado é porque o amor perdeu a guerra...
- Tens medo de fazer amor comigo? - Tenho - respondeu ele. - Por eu ser preta? - Tu não és preta. - Aqui, sou. - Não, não é por seres preta que eu tenho medo. - Tens medo de que eu esteja doente... - Sei prevenir-me. - É porque então? - Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti...
Quando sapos cobriram o Egipto, no livro do Êxodo, foi sinal de graves problemas. E essa foi somente a segunda praga das dez que implacavelmente o atingiram antes que o faraó abrisse os olhos e libertasse Israel da escravidão! Uma chuva repentina de sapos é um dos eventos mais bizarros que pode acontecer mas, meus caros amigos, podem acreditar que não é assim tão incomum...
Claro que os estimados leitores nunca foram tranquilamente à casa de banho lavar os dentes e deram de caras com um sapo no lavatório ou no balde com que tomavam banho, quanto mais com centenas de sapos caídos numa estrada nocturna, algures no meio do Alentejo, depois de um fim de semana de sonho, em que sabiam que dentro de poucas horas haveriam de acordar para nunca mais em toda a sua vida sonhar com a mesma tranquilidade. Ou pelo menos não de um sono só... Mas esta vossa amiga já.
Aquela cena final de Magnólia, que deixou de queixo caído, com nojo e um pouco impressionado quem viu o filme é um retrato quase fiel do fenómeno. Contudo, há uma explicação simples para aquela aparente fantasia bíblica: ela envolve redemoinhos de ventos e criaturas de baixo peso. Os sapos podem pesar somente alguns gramas e, mesmo os mais pesados, podem ser facilmente arrastados centenas de metros por ventos fortes.
E sim, é verdade, meus amigos, choveram sapos nesse dia. Há precisamente um ano atrás. Não foi por causa da chuva e dos sapos que nunca mais dormi de um sono só... mas esta chuva, para mim, é como para o faraó egípcio: it's not going to stop 'til you wise up!
Ontem, depois de um fim de semana maravilhoso, no meio de um abraço de despedida, houve uma frase que me tocou fundo e veio coroar mais de seis mil quilómetros, em que cada centímetro valeu a pena: "Foi tão bom ter-te cá... eu sinto que foi... foi um milagre ter-te aqui comigo!" A vida às vezes é tão simples...
"E todas as pessoas vivem, não pelo amor que têm por si próprias, mas pelo amor por elas que existe nos outros."
"Sempre tive uma tendência terrível para adiar coisas inadiáveis. Sempre que há um prazo para cumprir eu sou aquela que entrega as coisas já a pisar o limite. Tenho tendência a adiar, deixar para depois que hoje não apetece. Não me orgulho mas é verdade. Sou assim com as minhas relações (sentido lato) também, felizmente não tanto, felizmente não chego ao limite. Dou por mim a ignorar sinais de "abuso", dou por mim descontente mas a agarrar-me a migalhas como se disso pudesse depender a minha subsistência, dou por mim a ser ignorada e dou pelas minha energias a baterem no casco. E tolero durante algum tempo, tempo esse em que vou emitindo avisos. Deixo porque gosto, porque tenho carinho, porque são amizades longas e com muito tempo de história, porque não fazem por mal, porque dizer não dá muito trabalho, porque tenho alguma capacidade de sacrifício, porque o céu é azul e porque hoje estão 27ºC. Assisto a uma morte lenta enquanto agonizo até ao dia em que me lembro que sou a favor da eutanásia. Eu acredito que numa situação irremediável, há vários fins possíveis. Quanto mais o protelarmos, pior será a versão. Não sei o máximo que valho, mas sei o mínimo pelo qual mereço ser reconhecida. Com alguém que me veja abaixo disso, é impossível relacionar-me."
O meu frigorífico anda a pisar o risco. Anda de uma frigidez agressiva, capaz até de congelar uma alface no tabuleiro dos frescos! Ontem foi uma meloa inteira para o lixo, queimadinha, queimadinha que até fazia aflição... Hoje pu-lo de castigo na varanda para lhe dar uma coça nos entrefolhos, a ver se aprende. E não me venham dizer que ele é capaz de gostar e de se habituar a coças daquelas, que eu quando quero não sou nada meiga... Ele que não se arme ao pingarelho comigo, que eu sou muito bem capaz de viver sem ele. E para colar post-its qualquer parede serve. Em último caso troco-o por outro! Manias de prima donna, é o que ele tem. Ah, mas ele que não se atreva a boicotar a minha galinha à zambeziana de amanhã, que lhe canto um sermão que nunca mais se arma em Polo Norte!
Pronto. Era só isto. Já me sinto mais aliviada. A emissão segue assim que conseguir resolver a questão do molho de bróculos congelado (grande metáfora para algumas vidas!).
Meu amor, lá onde estiveres, seja onde for, por favor não cresças! Não cresças sem mim! Deixa-me chegar a tempo quando for a minha vez… Não te custa nada continuar a gostar de legos e das canções dos anúncios da televisão, e de carrinhos e de aviões. Se eu tivesse sabido que aquela era a última noite que te ia ter nos meus braços, que no dia seguinte te levariam de mim sem me avisarem, como se eu não fosse a tua mãe e não tivesse de ser tida ou achada no processo, se eu soubesse que depois não chegaria a Moçambique a tempo de te ver uma vez mais… Se eu soubesse, meu amor…
Se eu soubesse que aquela noite ia ser a última, tinha-te deixado chapinhar um pouco mais no banho e não me teria importado que os outros meninos da enfermaria esperassem uns minutos mais. Eles não gostavam tanto do banho como tu. Não ficavam fascinados com uma banheira cheia de água morna e bolhinhas de sais de banho perfumadas, e óleos que deixavam a pele macia. Eles não sabiam que lá onde nasceste a água não vem das torneiras da casa de banho e que a água quente é um luxo que ninguém tem. Os outros meninos não ligavam aos brinquedos no banho. Tu conseguias tirar som e ritmo de qualquer brinquedo que caísse na água e dançar sob qualquer pretexto. Repetias qualquer frase minha ao acaso, fazias dela um refrão e dançavas ao som daquela música improvável, no prazer de gozar comigo, de ver chegar a minha paciência ao limite e de me fazer rir ao mesmo tempo: “Deixa-me só pôr-te o champô. Deixa-me só pôr-te o champô. Deixa-me só pôr-te o champô.”
Tu tinhas os teus tempos, deixavas-te lavar, mas só de vez em quando. Tinhas de fazer pausas para dançar e continuar aquele jogo comigo. No hospital nunca soube respeitar esses tempos porque me sentia pressionada pelos outros doentes. Só lá em casa brincámos a sério, lembras-te? Mas se eu soubesse que era a nossa última noite não te tinha apressado. Até te tinha deixado comer os morangos e os chocolates que me tinhas pedido ali mesmo. Há lá coisa melhor do que um banho de imersão com chocolate e morangos?
Se eu soubesse que era a última noite não te tinha posto na cama, tinha-te deixado adormecer nos meus braços, tinha-te deixado lutar contra o sono o tempo que quisesses. Às vezes, à noite, partias-me o coração porque estavas sempre a abrir os olhos para ver se eu ainda estava ali contigo, se não me ia embora. Estavas sempre de vigia. Tivesse eu sabido e não te tinha dito para fazer silêncio porque os outros meninos do quarto já dormiam e os outros pais precisavam de descansar. Não me tinha importado com o exame de Cirurgia III na semana seguinte e teria passado a noite contigo ao colo a olhar para ti, a sentir-te respirar, como na primeira noite em que te vi… Não te lembras, eu sei. Ainda bem que não te lembras. Quase me morreste nessa noite…
Se eu ao menos suspeitasse, meu amor… Tinha telefonado à enfermeira Susana, aquela que tu adoravas e brincava contigo e te fazia rir como eu nunca consegui. Ela também teria ficado contente de te ver uma vez mais… A Susana deixava-te correr e brincar à vontade, sem ir atrás de ti como eu, sempre com medo que essa perna marota que tinha deixado de se mexer te traísse, e caísses e te magoasses. Mas claro, quando estavas com ela defendias-te mais, andavas com cuidado. Assim que eu chegava afoitavas-te como se o chão não existisse, seguro de que te agarrava em voo, seguro de que não te deixaria cair, mesmo que tivesse de parecer uma barata tonta a correr atrás de ti. E depois gozavas comigo porque mais uma vez tinhas visto que eu estava garantida. E estava, meu amor. Mas comigo eras tão esquivo… Sempre a fazer birras e exigências, como que a ver se eu queria mesmo estar ali contigo, se não te ia deixar, se gostava mesmo de ti. Mas sabias que sim. Eu, aliás, não sei ser de outra maneira. Só sei ser incondicional. Mas isso terias compreendido muitos anos mais tarde, não naquela altura… Com os outros eras o menino mais doce e mais tranquilo da enfermaria. Mas eu sempre compreendi isso, sempre percebi que se agias assim era porque dos outros não te importava saber se gostavam mesmo de ti.
Se soubesse que era a última vez, tinha-te deixado comer as gomas que a mãe do Bernardo te trouxe naquela noite. Ela adorava ver-te comer! Aliás, todos os outros pais ficavam magnetizados com o prazer com que comias, ainda para mais porque os meninos deles estavam doentes e sem apetite nenhum… E o Bernardo já não conseguia comer desde que tinha tido o traumatismo craniano. Alimentava-se por uma sonda. Lembras-te do dia em que entraste no quarto dele e me perguntaste o que era aquele tubo que ele tinha no nariz? Expliquei-te o melhor que soube, mas olhaste depois a mãe dele com estranheza. Como é que ela, que te dava tantos chocolates a ti, não os dava ao filho dela? Será que não gostava dele? Que espécie de mãe seria aquela? Não sei se te consegui fazer entender que era precisamente por isso que ela adorava ver-te comer as guloseimas que te dava. E até sabia que tinhas passado fome em pequeno, daí o teu fascínio por comida. Mas nessa noite já tinhas lavado os dentes. E sabe Deus o que eu penava todas as noites e que histórias tinha de inventar para te convencer a lavá-los…
Se eu soubesse, meu querido, não me tinha demorado no jantar a falar com a mãe do Diogo, que estava destroçada porque o filho tinha a mesma doença que tu. Procurava conforto em mim porque me achava forte e sabia que eu não era tua mãe biológica. Aliás, saltava à vista que não podias ser meu filho. Mas eras. Sempre foste, desde o primeiro dia, o meu menino do coração. Nunca me achei no direito de chorar à tua frente ou à frente de quem quer que fosse, mesmo quando me lembrava que estavas doente. De qualquer modo tu não me davas vontade de chorar, fazias-me esquecer a doença com o teu sorriso e acreditar que esse sorriso que me derretia era uma conquista minha. Que tinha sido eu a conseguir limpar a tristeza do teu olhar.
E quase acreditava genuinamente que amanhã não viria. “Amanhã não existe!”, repetia para mim mesma de todas as vezes que as angústias me assaltavam. Tu só me fazias rir com as tuas brincadeiras e com as danças africanas que gostavas de imitar. Se tivesses crescido tinhas sido um actor talentoso, tinhas continuado a fazer sorrir às gargalhadas os pais mais tristes do mundo.
Perdoa-me, meu amor, mas eu também não sabia… Naquela noite tinha-te por garantido e estava no meu papel de mãe. Se soubesse, ter-te-ia explicado para onde ias. Eu sei que querias voltar para a tua casa em Moçambique, apesar de os teus pais não estarem lá. Era naquela casa que estava o teu irmão e todas as tuas referências. Mas tenho a certeza de que tiveste medo quando te puseram no avião. Não sabias para onde ias. Como poderias acreditar que ias para casa se da última vez que te tinham posto num avião sozinho te levaram para aquele hospital, para um quarto de isolamento? O que foi que pensaste de mim? Eu sei que os cinco anos são a idade da angústia e da culpabilidade. Claro que ninguém te explicou que eu não desapareci da tua vida por te teres portado mal. Claro que ninguém te explicou que não te abandonei e que sofri horrores quando te foste embora. Ninguém te disse que não estava a mentir quando te respondi nessa manhã, depois de uma noite mal dormida naquelas cadeiras horríveis, que sim, que voltaria nessa tarde. Que só ia trabalhar para outro hospital, ver outros meninos e já voltava.
Eu voltei, meu amor, juro que voltei. Com mais um livro de animais, daqueles que tu adoravas. Ainda o tenho lá em casa… Tu é que já não estavas. As enfermeiras nessa tarde abanaram a cabeça, perplexas. “Mas não sabia? Nós também não sabíamos… Não sabíamos que ele ia voltar hoje para Moçambique. Ninguém sabia. Até foi sem nota de alta e tudo. Parece que lhe arranjaram lugar num voo muito mais barato e aproveitaram. Vieram buscá-lo logo ao fim da manhã. De qualquer forma já tinha terminado os tratamentos, já não estava cá a fazer muito mais…” Agora compreendes, não compreendes? Por isso peço-te, por favor, não cresças sem mim. Deixa-me um dia, ao menos uma vez, chegar a tempo.