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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

10
Mar12

[o mato em lisboa #4] lázaro e seus irmãos

beijo de mulata

Irmãos...

A história do Lázaro, o nosso menino angolano internado há 138 dias por uma aplasia medular*, continua e está para durar... uma novela quase sinistra, macabra, com contornos kafkianos. Aliás, se Kafka tivesse nascido em Angola, "O Processo" não seria uma ficção delirante. Tinha escrito um diário e provavelmente nunca lhe teria passado pela cabeça que publicar cenas banais do dia-a-dia lhe pudesse granjear reconhecimento literário... E não teria morrido aos quarenta. Tinha morrido de tédio dez anos antes. Não, não é sarcasmo. É o desespero de quem espera mas não tem tempo para esperar!

O Lázaro tem muitos irmãos em Angola e, por isso, logo nos primeiros dias pedimos que nos enviassem sangue de toda a família para fazer um estudo de compatibilidade para o transplante de medula óssea. Essa parte foi fácil. Colheu-se uma amostra de sangue a cada membro da família. Os sangues chegaram por correio em boas condições, tiparam-se, fizeram-se os estudos. Alguns irmãos tinham vírus incuráveis, outros eram incompatíveis, outros eram compatíveis mas tinham outras doenças de sangue... Por fim, no meio daquela enorme família metida dentro de tubos, lado a lado, num saco-cama de papel de correios, havia um irmão, o Lito, que não tinha doenças de sangue, não tinha vírus... e era compatível!

E podia ter terminado aí o pesadelo. Mas estava só a começar... O mano Lito (Julito?, Manelito?, Joselito?) não estava registado, e portanto não podia vir rapidamente para Portugal salvar o irmão. Em pleno século XXI há crianças que continuam a nascer sem que ninguém dê por elas! É também por isto que continua a haver raptos de crianças para tráfico de órgãos, para escravatura, para a guerrilha... Desaparecem e é como se nunca tivessem existido. Registar o Lito (afinal Alexandre) foi uma aventura, um calvário a que ficámos a assistir, impotentes, deste lado do mundo...

[É por isso que as Irmãs com quem eu colaboro em Nampula, assim que uma criança é apadrinhada por elas, a primeira coisa que fazem é registá-la, bem como aos irmãos e a toda a família. Desde 2004 que fazem isso e desde 2005 que não há raptos naquele bairro!]

(continua...)

* A medula óssea do menino, por qualquer razão que desconhecemos, resolveu "apagar-se" e deixar de produzir sangue.
03
Mar12

[o mato em lisboa #3] o lázaro "ressuscitado"

beijo de mulata
Já vos falei do Lázaro, o menino angolano internado há 132 dias no meu hospital por uma aplasia medular grave e irreversível. Ele e a mãe, vindos directamente de uma localidade na periferia de Luanda, aguardam pacientemente por um transplante de medula óssea que lhe renove a fonte do sangue que, por qualquer razão inexplicável e injusta, se lhe secou há meses.

No entretantos, o Lázaro teve de fazer nova análise da medula óssea. No nosso hospital, felizmente, estas análises são feitas sob anestesia geral no bloco operatório. Nenhuma criança deve passar por um procedimento doloroso desta natureza sem uma anestesia. A dor não pode fazer parte da vida das crianças!

E, há umas semanas, de manhãzinha, lá foi o Lázaro para o bloco operatório, deixando a sua mãe pálida de tanta preocupação, agarrada ao seu terço e à bíblia, sentada do lado de fora, a vê-lo desaparecer numa sala tenebrosa, onde todos andavam de face coberta como os bandidos, vestidos de um verde horrível, e sem sapatos. Como era possível que alguém se atrevesse a trabalhar num hospital de crianças vestido com aquele verde, a cor da decadência e da inveja? Como era possível que lhe tivessem recusado a entrada na sala para estar junto do filho apenas porque se negara a vestir aquela vestimenta que só podia trazer má sorte e maus-olhados?

O procedimento foi rápido e sem complicações. Em menos de meia hora o Lázaro estava novamente no quarto, acompanhado pela sua mãe. Dormia sob o efeito dos tranquilizantes, mas teve um despertar turbulento: as crianças por vezes têm uma reacção paradoxal aos tranquilizantes e, em vez de ficarem calmas, ficam agitadas e irritáveis!

Minutos depois foram dar com eles no quarto, no meio do maior estardalhaço. O Lázaro, ainda meio a dormir, gritava que o estavam a matar, debatia-se, quase a atirar-se da cama, e chamava os nomes mais horrendos à mãe, enquanto esta o segurava com uma mão, para que não caísse da cama, e com a outra brandia a bíblia sobre a cabeça do filho, tentando expulsar-lhe os demónios do corpo: "Sai, Satanás! Sai!"

Felizmente a reacção também passou rápido. Acabou por acordar completamente e ficou meio envergonhado quando se deu conta do que tinha estado a dizer: "Desculpe, Doutora, foi aquele medicamento que me deram que me deixou louco!" E depois, adivinhando que a mãe não tinha percebido nada do que se passara com ele, virou-se para ela e disse-lhe: "Obrigado, mamãe, demónio já saiu!"

Vai longe este menino! Queira Deus que o dador venha a tempo...

(continua...)
24
Fev12

[psiquiatrices] o mato em lisboa #1...

beijo de mulata
Numa das enfermarias do meu hospital, temos um menino vindo de Angola ao abrigo do protocolo com os países de expressão portuguesa. Transferido por aplasia medular: a medula óssea do menino, sem razão aparente, pura e simplesmente deixou de funcionar e produzir sangue.

O Lázaro* tem 8 anos e está internado em isolamento há 124 dias e é um doce de criança. Uma paciência de antigo testamento. Em Portugal tem apenas a mãe, uma típica mulher de armas africana! Uma mulher que não reage, mas resiste até ao limite. Uma mulher que não é pró-activa, não é empreendedora, não se vê tomar qualquer iniciativa, mas é um suporte a toda a prova. É uma mulher acabada de sair do mato, quase analfabeta. que não arreda pé do quarto do filho e permanece o tempo todo sentada à cabeceira, com a bíblia aberta e o ar meio resignado, meio alheado de quem está habituado a sofrer... Cuida do filho. Fala pouco, faz poucas perguntas. Sai do quarto três vezes por dia para comer e tomar banho. Mas tem esperança. E está à espera. Apenas.

Há duas semanas, 110 dias depois de ter sido internado, o Lázaro começou a dar sinais de estar a começar a ficar saturado... Não dormia bem, recusava-se a comer até ao fim, não queria falar muito, resistia a tomar a medicação. Passava mais tempo sem brincar, sem ler ou ver televisão. Os colegas de Pedopsiquiatria foram chamados novamente para intervir junto do menino e de sua mãe.

Depois de mais de uma hora de conversa o menino estava mais calmo, a mãe menos alheada e ligeiramente mais sorridente e o colega da Pedopsiquiatria, ainda a tirar a bata esterilizada, máscara, touca e luvas, apareceu à porta da sala de reuniões.

- Então, o que achou do menino?
- Bem, não me pareceu muito diferente da outra vez, só está mais cansado de estar aqui, o que é compreensível. Não tem nada de anormal. Expliquei à mãe que ele foi retirado do ambiente dele e tem estado muito isolado e não pode brincar com ninguém nem ir para a rua como em Angola. Disse-lhe que ela tinha de brincar mais com ele.
- E ela? Percebeu alguma coisa?
- Sim, acho que sim... Não consegui que falasse muito, mas acho que percebeu o que eu lhe disse...

No dia seguinte, a mãe, colaborante e cheia de boa vontade, fazia o que o médico lhe tinha sugerido que fizesse: brincava, um pouco desajeitada, com os carrinhos e aviões no chão, junto à cama do filho, enquanto este, deitado na cama, alheio a tudo o que se passava em seu redor, via os primeiros programas da manhã do Canal Panda.

[E pronto, meus amigos, só um materialista diria que as palavras que o médico proferiu foram as mesmas que a senhora percebeu. A cultura de fundo é o que faz com que as palavras façam sentido. Numa sociedade africana, em que as crianças brincam livres e soltas pela rua, a ideia de os pais brincarem com os filhos não faz qualquer sentido. O médico dissera-lhe: "A senhora tem de brincar mais com o menino." E a senhora, que estava com o menino, estava a tentar brincar. Certamente intrigada por lhe terem dado um conselho tão bizarro, mas enfim, se o médico tinha dito... por um filho faz-se qualquer coisa...]

(continua...)

* Nome obviamente fictício.
01
Jul11

[outras palavras] mão morta...

beijo de mulata
Diz o meu distinto colega Pedro Serrano - devidamente lincado ali na coluna da direita por debaixo da vénia de olavula sana* - que a minha história de anteontem, sobre a viagem para Mocuba, lhe fez lembrar uma outra. Linda, linda. E magistralmente escrita! Mas também perturbadora. Fortemente desaconselhada a pessoas muito sensíveis. Mas se puderem vão ler, que vale a pena. Basta clicar aqui.

* Expressão macua que quer dizer "palavras bonitas" ou "falar bem".
24
Jun11

[luanda, anos '80] frases que nos marcam

beijo de mulata
Contou-me certa vez uma amiga, que na sua infância em Luanda, uma garrafa de litro e meio de água do Luso era suficiente para um banho completo com direito a champô e amaciador! Isto a propósito de eu ter conseguido no Gilé desenvolver e apurar uma técnica que me permitia tomar banho com apenas um balde de água. A vida é simples, felizmente...
10
Abr11

[olhos quentes de sul] ingenuidade e racismo

beijo de mulata
O engraxador do Rossio...
(Foto daqui)

[Ouvido anteontem...]

- Cheguei pela primeira vez a Portugal, já médica e com vinte e cinco anos, vinda de Angola onde tinha sempre vivido. Tive logo a sensação de que algo de muito estranho se passava, havia muita coisa não batia certo. Nem conseguia dizer ao certo o que era que estranhava até que cheguei ao Rossio e vi um branco dobrado a engraxar os sapatos de outro branco... "Assim não vamos a lado nenhum!", foi logo o que eu pensei!

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