Para sempre me ficou esse abraço. Por via desse cingir de corpo minha vida se mudou. Depois desse abraço, trocou-se, no mundo, o fora pelo dentro. Agora, é dentro que tenho pele. Agora, meus olhos se abrem apenas para as funduras da alma. Nesse reverso, o que a poeira da rua me suja é o coração. Vou perdendo noção de mim, vou desbrilhando. E se eu peço que ele regresse é para sua mão peroleira me descobrir ainda cintilosa por dentro. Todo este tempo me madreperolei, me enfeitei de lembrança.
É isso que essas negras têm que nunca poderemos ter: elas são sempre o corpo inteiro. Todo o seu corpo é mulher, todo o seu tempo é feminino. E nós, brancas, vivemos numa estranha transumância: ora somos alma, ora somos corpo. Acedemos ao pecado para fugir do inferno. Aspiramos à asa do desejo para, depois, tombarmos sob o peso da culpa...
Mia Couto, na abertura do ano lectivo na Universidade em 2005, escreveu e leu uma “oração de sapiência” sobre um dos seus temas mais caros, o combate à pobreza e aos preconceitos enraizados. Ele começou por referir que não podemos entrar na modernidade com o actual fardo de preconceitos. "À porta da modernidade precisamos de nos descalçar.” E contou ”sete sapatos sujos” que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos novos... Um conjunto de ideias, atitudes e superstições, alguns apanágio da sociedade moçambicana, outros de quase todos os povos...
1º sapato - A ideia que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre vítimas; 2º sapato - A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho; 3º sapato - O preconceito de quem critica, é um inimigo; 4º sapato - A ideia que mudar as palavras muda a realidade; 5º sapato - A vergonha de ser pobre e o culto das aparências; 6º sapato - A passividade perante a injustiça; 7º sapato - A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros.
- Tens medo de fazer amor comigo? - Tenho - respondeu ele. - Por eu ser preta? - Tu não és preta. - Aqui, sou. - Não, não é por seres preta que eu tenho medo. - Tens medo de que eu esteja doente... - Sei prevenir-me. - É porque então? - Tenho medo de não regressar. Não regressar de ti...
Para melhor ouvir esta história, nem que seja na reverberação que as palavras fazem no pensamento, é preciso ler com sotaque. Não é preciso mais nada. Mas os puristas de Mia Couto sabem que as histórias dele são como a galinha à zambeziana: pode comer-se apenas com mandioca, mas com mucapata sabe incomparavelmente melhor.
(Para os que só agora chegaram a este mato, aqui fica a receita do acompanhamento: Faça como as crianças, vá até ao jardim, à praia, ao sofá da sala, deite a sua cabeça no colo de alguém de quem goste e ponha-se a jeito para umas festinhas no cabelo. Ou para lhe coçarem a moleirinha. Ao de leve. Feche os olhos. Deixe-se embalar. Não se importe de adormecer. O ritmo de Mia Couto dá mesmo para dormir antes que a história termine. Não lute contra o sono. O segredo é saborear as palavras que o outro vai interpretando. Uma a uma. Se não ouvir o final da história não se preocupe, é a desculpa perfeita para pedir para repetir! E quando a história terminar não abra os olhos. No fundo, a história não termina, vai terminando. Faça como as crianças, fique mais um pouco. E no final pergunte com um sorriso: e depois?)
- “Eu não sou um qualquer, tradicional. Mesmo já vou dormir em colchão”.
E explicou: ainda ele se esteirava na húmida humildade do chão. Mas era por um enquanto. Pois o seu colchão estava no caminho de vir, quase chegando. - “Contra factos só há argumentos”.
E, de facto. Aconteceu nessa semana quando o comboio transfumou-se na estação, despulmonado. Saíram os magaíças, saiu a mercadoria. E entre as descarregações desceu o mencionado colchão. O povo estava ali para testemunhar. Xavier, inchado, dava ordens de cuidados. Que atentassem também no armário. - “Me tratem bem esse arrumário”.
Ele não punha mão no carrego. Suores manuais não eram da sua estatura. Acontece que entre a multidão figurava Maria Amendoinha que logo, em imediato coração, desembarcou nos olhos do Xavier. A moça escutava, embevencida, o ex-mineiro a papagaiar pela estação dos caminhos-de-ferro. Que eu e eu, que isto multiplicado por aquilo, noves fora eu.
A mercadoria subiu num tchova e o povo seguiu o carrego em procissão. Maria Amendoinha seguia na cauda, absorta, coração em pensamento. O cortejo chegou a casa de Zandamela, a carga foi nivelada no rés-da-terra e transpostada para os interiores. Do lado de lá, os curiosos se fatigaram e dispersaram. Ficou apenas a jovem, sonhatriz, em suspiros mais leves que osso de morcego. Nem ela notou a chegada da noite. Xavier saía e entrava a sacudir o cachimbo no pátio. Numa dessas saídas deu pela presença dela. Primeiro não decifrou sombras, desfolhou cautelas. Depois, ele aproximou intimidade, abelhoso. Duas cadeiras se arrastaram para assentar o tempo. O mineiro alargou as falas, endomingando conversa. - “Você nem sabe imaginar as terras onde trabalhei! Lá não há pobre diabo. Sim, lá até o diabo é rico!”
Conversa puxa silêncio e a menina se fantasiava, natalícia. Nunca ninguém lhe lustrara tantos tentos e atentos. Amendoinha, despossuída, parecia a Eva sem maçã.
Xavier adiantou convicto convite: ela que entrasse a experimentar o colchão. Passos ébrios, ela foi entrando. E sucedeu-se: o colchão cumpriu seu destino. Estreou-se o objecto e a menina. Ficou um sanguezinho, vermelho minúsculo a manchar a esponja do colchão.
No dia seguinte, começou vozearia na aldeia: a nuvem é maior que o sol? A Xavier Zandamela lhe pesava o céu de tanto ser mencionado. Eram as falas: - “O sapo incha por não dividir. Agora ele quer dormir sozinho em tanto colchão? - “Esse é que o calcanhar: o gajo não deitou sozinho! - “Acolchoou-se com alguém?” Era urgente fechar o pio, para abrir o corrupio: Xavier tratou-se de casar com Amendoinha. E os dois conjugaram-se, em dia-a-noite. Porém, aquela felicidade se contou pelos dias. O mineiro revelou seus fundos violentos. Volta e volta ele batia na recente esposa. Xavier quis lavar a boca e sujou o sabão. Porque aconteceu então o imediato seguinte: altas horas a mulher acordava, escutando barulhos vivos dentro do colchão. Depois já não eram apenas sons, mas coisa apalpável. Amendoinha começou a colocar hipótese de maldição. - “Marido: há bicho andante aqui dentro! - “Isso nem se menciona”, advertia Xavier. “Somos alguns irracionáveis, igual a essa povaria do subúrbio?”
Amendoinha não se resignava. Se não era igual ao povo seria idêntica a quem? O marido aumentava-se, mas aquilo era corpo de imbondeiro. Ela já vira o engano: molhado, o leopardo não é mais que um gato-bravo. Bem diz o provérbio: a lua morre e é grande enquanto as estrelas, ainda que pequenitas, ficam a brilhar. - “Pois, a partir de agora, você troca colchão por esteira. - “Mas esses barulhos, Xavier... - “Mas quais barulhos, santo e deus! Se eu não escuto nada? - “Se não vêm do colchão é porque, pior, estão a vir da minha cabeça”.
Isso, sim. Xavier admitia, rindo. Mas aquelas gargalhadas eram alegria sem carne: se via através delas o nervo do medo. Os barulhos prosseguiam, quotinocturnos. Mesmo deitada na esteira, Amendoinha passava noites em claridade. Ao longo de tanta insónia, ficou zonza-sonsa, coxeando da razão. E já não prestava respeitos ao seu legítimo. Xavier, despeitado, lhe incrementou nos arraiais. Batia com mais e mais violência. “Nem é por maldade: arreio-lhe para ela ficar cansadinha e dormir melhor”, dizia o mineiro. Fechava o punho e, enquanto amassava o corpo da mulher, comentava: - “Amendoinha, é você; eu sou o pilão”. A família de Maria Amendoinha veio-lhe buscar-lhe ela já não acertava o pé no passo. O pai de Amendoinha passou o olhar fatalício pelo quarto dos separados de fresco, ditando: - “Aqui cheira a coisa parindo”.
E tinha razão. Pois, no ventre do colchão, daquela manchazita de sangue, estava nascendo aparente criatura, o desabrochar de maldição.
Xavier Zandamela quando se deita, sozinho e triste como gato que perdeu a rua, nem nota o adventício ser. Apenas sente que as formas do colchão se lhe amoldam: há duas concavidades, uma ao lado da outra. Seria que o colchão sentiria saudade da ausente esposa? Até que uma noite, sonhava ele através de amores muito sexuais, quando na carícia do lençol reconhece o volume de seios, polpudas proeminências debaixo do seu corpo. Quem estava ali, afinal? Nem ousou acender as luzes, fosse a aparecência se extinguir. Aceitava aquela conversão de bom agrado.
A partir de então, o colchão se convertia em mulher, na mulher em que sonhava. Cada noite Xavier procedia a mais avanços, com tacto e beijo. A mulher - será que lhe poderia chamar assim? - , a mulher vinha da sobrenatureza e lhe dava um pedacito mais de acesso. Mas sem chegar a vias do facto. Ao despertar, Xavier se satisfazia. E sorriam recíprocos, ele e a manhã. Afinal, por que real motivo se necessita mulher no lado de cá da verdade? Até que uma noite ele se preparou, perfumes e pijama lavado. Aquela noite, sim. Aquela noite, ele visitaria o íntimo daquela promessa. E assim aconteceu. Beijo e escuro, suspiro e silêncio. No êxtase, Xavier se viu dizendo inesperadas palavras: - “Amendoinha!”
De repente, o colchão se revolteou, envolvendo o mineiro. Carnes e esponjas, braços e panos se entrerodilharam. O corpo do homem foi perdendo formato, em dissolvição. Quando dele não restavam senão avulsos botões de pijama se escutaram passos entrando pelo quarto. E Xavier Zandamela ainda sentiu apressadas mãos enrolando o colchão e o carregando pela noite afora.
Não fui eu que tirei as fotos do post abaixo. Fui à peregrinação, mas ainda não ia a meio do caminho quando me foram chamar para ir levar uma mamã com uma ruptura uterina ao Hospital de Mocuba, a cinco horas de distância. Eu e um dos padres transportámo-la na caixa aberta do jeep da Missão, deitada num colchão, com a cabeça amparada no colo da irmã e da mãe, e os balões de soro e sangue que a mantiveram viva no caminho pendurados por uma corda no tejadilho. Pois é, meus amigos... é nesses momentos que também ninguém se atreve a dizer que a vida é simples. Foi uma viagem atroz. Para todos, mas sobretudo para a jovem mamã, em trabalho de parto há vários dias, com dores inimagináveis, uma criança já morta no ventre e uma hemorragia interna que ameaçava levar-lhe a vida a qualquer momento.
Recusei-me a levá-la sem uma transfusão de sangue. Alegaram que não tinham sangue no Centro de Saúde de Mulevala, mas fui irredutível: "Esta mamã está em choque e eu não transporto cadáveres!"
O Padre Américo, pároco da Missão e dono do jeep olhava-me, incrédulo. Uma médica loira, que não conhecia de lado nenhum, que estava apenas de visita à sua missão ousava dar-lhe ordens? Não seria melhor partirmos quanto antes? Não! Assim como estava não ia aguentar uma viagem de cinco horas! Acreditou em mim. Bastou uma frase sua em Lomué de que só compreendi a palavra "sangue". Em cinco minutos apareceram vários dadores voluntários. Colhemos sangue compatível e seguimos. Tivemos de parar várias vezes no meio do mato porque, com os solavancos da picada, o soro saía da veia e tínhamos de colocar novo soro a correr. Nos momentos em que parávamos, o silêncio mais profundo da savana invadia-nos por todas as nossas fragilidades adentro e fazia-nos falar num sussurro de igreja, lembrando-nos como somos pequenos e vulneráveis. Apenas o ruído inconsciente dos pássaros e os gemidos da jovem mamã "Ah, mwanaka!*", certa de que a vida se lhe secara no ventre.
E lá voltávamos à estrada. Foi o caminho mais longo da minha vida, mas chegou viva e ainda estável para aguentar uma cirurgia...
Sei que em Mulevala a multidão rezou por ela e pelo padre ausente da peregrinação... Pessoalmente, eu tenho alguma dificuldade em acreditar a este ponto no poder da oração. Até porque se Deus existir ["faz conta um ovo"...], saberá certamente a quem acudir sem que seja necessário pedir-lhe. Mas todos ficaram mais próximos por terem uma causa comum, por pedirem por alguém que naquele momento estava pior do que eles e não tinha a sorte de estar feliz naquela caminhada. E no regresso, esta mamã, viva mas órfã de filho, foi consolada e mimada por todos os que tinham rezado pela sua vida... Mais importante do que a questão se Deus existe é a beleza desta história de fé, oração e proximidade. Poderia ser esta a beleza que, nas palavras de Dostoievski, um dia salvaria o mundo?
Como um dia disse Mia Couto, o melhor do turismo em Moçambique é quase não existir turismo. É poder estar numa das praias mais bonitas do mundo e não haver mais ninguém ao nosso lado!
A menina não palavreava. Nenhuma vogal lhe saía, seus lábios se ocupavam só em sons que não somavam dois nem quatro. Era uma língua só dela, um dialecto pessoal e intransmixível? Por muito que se aplicassem, os pais não conseguiam percepção da menina. Quando lembrava as palavras ela esquecia o pensamento. Quando construía o raciocínio perdia o idioma. Não é que fosse muda. Falava em língua que nem há nesta actual humanidade. Havia quem pensasse que ela cantasse. Que se diga, sua voz era bela de encantar. Mesmo sem entender nada as pessoas ficavam presas na entonação. E era tão tocante que havia sempre quem chorasse.
Seu pai muito lhe dedicava afeição e aflição. Uma noite lhe apertou as mãozinhas e implorou, certo que falava sozinho: - “Fala comigo, filha!”
Os olhos dele deslizaram. A menina beijou a lágrima. Gostoseou aquela água salgada e disse: - “Mar”...
O pai espantou-se de boca e orelha. Ela falara? Deu um pulo e sacudiu os ombros da filha. “Vês, tu falas, ela fala, ela fala!” Gritava para que se ouvisse. “Disse mar, ela disse mar”, repetia o pai pelos aposentos. Acorreram os familiares e se debruçaram sobre ela. Mas mais nenhum som entendível se anunciou.
O pai não se conformou. Pensou e repensou e elabolou um plano. Levou a filha para onde havia mar e mar depois do mar. Se havia sido a única palavra que ela articulara em toda a sua vida seria, então, no mar que se descortinaria a razão da inabilidade.
A menina chegou àquela azulação e seu peito se definhou. Sentou-se na areia, joelhos interferindo na paisagem. E lágrimas interferindo nos joelhos. O mundo que ela pretendera infinito era, afinal, pequeno? Ali ficou simulando pedra, sem som nem tom. O pai pedia que ela voltasse, era preciso regressarem, o mar subia em ameaça. - “Venha, minha filha!”
Mas a miúda estava tão imóvel que nem se dizia parada. Parecia a águia que nem sobe nem desce: simplesmente, se perde do chão. Toda a terra entra no olho da águia. E a retina da ave se converte no mais vasto céu. O pai se admirava, feito tonto: por que razão minha filha me faz recordar a águia? - “Vamos filha! Caso senão as ondas nos vão engolir”.
O pai rodopiava em seu redor, se culpando do estado da menina. Dançou, cantou, pulou. Tudo para a distrair. Depois, decidiu as vias do facto: meteu mãos nas axilas dela e puxou-a. Mas peso tão toneloso jamais se viu. A miúda ganhara raiz, afloração de rocha?
Desistido e cansado, se sentou ao lado dela. Quem sabe cala, quem não sabe fica calado? O mar enchia a noite de silêncios, as ondas pareciam já se enrolar no peito assustado do homem. Foi quando lhe ocorreu: sua filha só podia ser salva por uma história! E logo ali lhe inventou uma, assim:
Era uma vez uma menina que pediu ao pai que fosse apanhar a lua para ela. O pai meteu-se num barco e remou para longe. Quando chegou à dobra do horizonte pôs-se em bicos de sonhos para alcançar as alturas. Segurou o astro com as duas mãos, com mil cuidados. O planeta era leve como um baloa.
Quando ele puxou para arrancar aquele fruto do céu se escutou um rebentamundo. A lua se cintilhaçou em mil estrelinhações. O mar se encrispou, o barco se afundou, engolido num abismo. A praia se cobriu de prata, flocos de luar cobriram o areal. A menina se pôs a andar ao contrário de todas as direcções, para lá e para além, recolhendo os pedaços lunares. Olhou o horizonte e chamou: - “Pai!”
Então, se abriu uma fenda funda, a ferida de nascença da própria terra. Dos lábios dessa cicatriz se derramava sangue. A água sangrava? O sangue se aguava? E foi assim. Essa foi uma vez.
Chegado a este ponto, o pai perdeu voz e se calou. A história tinha perdido fio e meada dentro da sua cabeça. Ou seria o frio da água já cobrindo os pés dele, as pernas de sua filha? E ele, em desespero: - “Agora, é que nunca”.
A menina, nesse repente, se ergueu e avançou por dentro das ondas. O pai a seguiu, temedroso. Viu a filha apontar o mar. Então ele vislumbrou, em toda extensão do oceano, uma fenda profunda. O pai se espantou com aquela inesperada fractura, espelho fantástico da história que ele acabara de inventar. Um medo fundo lhe estranhou as entranhas. Seria naquele abismo que eles ambos se escoariam? - “Filha, venha para trás. Se atrase, filha, por favor”...
Ao invés de recuar a menina se adentrou mais no mar. Depois, parou e passou a mão pela água. A ferida líquida se fechou, instantânea. E o mar se refez, um. A menina voltou atrás, pegou na mão do pai e o conduziu de rumo a casa. No cimo, a lua se recompunha. - “Viu, pai? Eu acabei a sua história!”
E os dois, iluaminados, se extinguiram no quarto de onde nunca haviam saído.
- [Pai,] eu sou mesmo seu filho? - É filho de quem então? - Não sei, a mãe... - As mães, as mães. Que é que ela lhe falou? - Nada, pai. Ela nunca me contou nada. - Pois eu lhe vou dizer uma coisa...
E calou-se. A sua voz se engasgou, parecia ter desistido em meio da garganta. Tentou recomeçar, mas redesistiu. Passou a mão pelo pescoço como se limpasse a voz pelo lado de fora. No enfim de um infinito, ele voltou a falar: - Você é meu filho. E nunca volte a duvidar.
Batia com os dedos sobre os lábios, a lacrar o dito. Até me podia contar como eu fora concebido. Eu não fora gerado logo inicialmente, no início do casamento. Nem de uma só vez. Quando ele e minha mãe namoravam, sempre que o faziam, o céu se desabava em chuva. Debaixo do dilúvio, o casal se prosseguira amando. Faz conta não houvesse mundo nem chuva. Tinham suas razões: pois há ininterruptos anos que eles vinham fabricando seu único primeiro filho. Amavam-se sem paragem. De cada vez que seus corpos se cruzavam, diziam, estavam fabricando mais uma porção do corpinho do vindouro.
- Esta noite vamos fazer-lhe os olhos. Como fosse esse o produto dessa noite, eles escolheram fazer amor sob o inteiro luar. Escolheram um descampado bem debaixo da lua. E assim fizeram, iluminados, dando seguimento à confecção do menino. Quantos tempos andaram nisso? Se encolhiam os ombros: um menino assim pode demorar a vida inteira... - Está-me entender, filho?