Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

27
Nov11

[e agora, só para compor o ramalhete...] delirium tremens

beijo de mulata
(...continuando a história que começou aqui...)

Regressei a casa perturbada, mas feliz. Finalmente estava a ver uma luz ao fundo do túnel. Só esperava poder cumprir a minha promessa de que haveria de curar a Inês. Será que encontraria algum medicamento para ela em Nampula? Que raio de doença para se ter no fim do mundo…


Mas o dia ainda não tinha terminado. E a noite era ainda uma criança… Ao portão, o guarda esperava-me com a notícia de que o Sr. Rafael estava doente. Que estava “com espíritos”, mas que as Irmãs não tinham dado autorização para ele ir buscar um curandeiro.

– Com espíritos, Sr. Revenda?
– Sim, Doutora, ele não está a falar certo, fala com os espíritos, treme as mãos e os braços e parece que vê bichos…
Delirium tremens! Valha-me Deus! E já estava a ficar assim ontem de manhã… Vi-o tremer quando lhe fui levar o mata-bicho, mas naquele momento nem sequer associei a nada, achei que seria fraqueza porque não tínhamos jantado… Ele hoje também continuava com as mãos a tremer?
– Não sei, Doutora, de manhã fomos ao Anchilo procurar a minina Inês e durante o resto do dia estive a dormir só...
– Pois... calculo. E eu hoje de manhã nem fui vê-lo, com a preocupação de irmos ao Anchilo. Era só o que nos faltava agora um delirium tremens...
Tremes? O que é isso, Doutora?
– É a doença dos homens que bebem muito. O corpo fica envenenado pelo álcool e já não passa sem ele. Basta ficar um ou dois dias sem beber e começa a tremer, a ver coisas e ouvir coisas…
– Não, Doutora, não é isso. Isto são espíritos maus. Maus mesmo. Quando os espíritos vêm na forma di bichos, as pessoas morrem quase sempre. É preciso chamar curandeiro para tirar os espíritos. As Irmãs não acreditam em mim!
– Sim, Sr. Revenda, tem razão, esta doença provoca alucinações com bichos e pode matar, é mesmo isso! Mas eu também sei tratar esta doença, não são só os curandeiros.

O guarda estava perplexo. Devia achar que eu era completamente tonta. Não compreendia como é que eu podia, na mesma frase, concordar com ele, que era um facto que o Sr. Rafael estava a ver bichos, e depois dizer que conseguia tratá-lo sem a ajuda de um curandeiro.

– Doutora não está a perceber… Isto é uma doença que vem da tradição! Ele vai morrer se não lhe tirarem os espíritos.
– Está bem, Sr. Revenda, mas não se preocupe que ele vai ficar bem…

O guarda olhava-me incrédulo e assustado. Claramente não acreditava em mim e provavelmente estava cheio de medo de morrer também, receoso de que aqueles espíritos violentos e malignos o atacassem por tabela, já que o Sr. Rafael estava em sua casa… Não valia a pena insistir na conversa. Não falávamos de todo a mesma linguagem e eu nesse dia já tinha tido irritação suficiente com a “tradição” para conseguir sentar-me e explicar-lhe com calma que raio era isso de delirium tremens. E no fundo não valia a pena, não ia conseguir. Era uma doença impressionante demais para alguém mudar assim de opinião.

Entrei no quarto. Deitado na cama, o Sr. Rafael tremia por todos os lados com uma expressão de terror, alagado em suor e, fazia movimentos bruscos com as mãos, como se tentasse apanhar insectos ou afastar qualquer coisa que só ele via e que parecia que o ameaçava. Tomei-lhe o pulso, que batia descompassado, ardia em febre e debatia-se sem me reconhecer… Tartamudeava qualquer coisa em macua que não entendia: “Massi, massi.”

– Que diz ele, Sr. Revenda?
– Está a dizer "água".
– Traga-me água, então, numa garrafa para beber e num alguidar também, que temos de o arrefecer. E depois vá buscar o Sr. Cachimbo a Namutequeliwa, é a terceira casa ao lado do portão das Irmãs da Apresentação. Diga-lhe que preciso que me venha fazer um teste de malária, que isto pode ser também malária cerebral…
– Sim, Doutora.

Minutos depois chegavam as Irmãs com a água que eu tinha pedido.

– Não acha que é melhor levá-lo para o hospital? Não sei se nós sozinhas conseguimos tratar dele…

“Bonito!”, ironizei comigo própria. “Está um homem aqui ao pé de ti em perigo de vida e tu nem sequer ponderas levá-lo para o hospital, só te ocorre mandar chamar o homem que te fez bater o coração há dois dias [e reflectir sobre a vida emocional dos pinguins]… Isto está bonito, sim, senhora!”

(continua...)
14
Nov11

[nampula] mas o que foste lá tu fazer, beijo-de-mulata?

beijo de mulata

Na escolinha das Irmãs.
(Nampula)
(continuando...)

E perguntam vocês, caríssimos amigos: "Mas afinal o que foste tu, beijo-de-mulata, fazer sozinha para Nampula? Já percebemos que acabaste por procurar a Inês do post ali abaixo. Mas tu já estavas quase a caminho quando a Irmã Lurdes te pediu que a fosses procurar."

E eu respondo: "Sim, Senhor! Muito atentos que vocês são todos, amigos do meu coração!"

Bem, a verdade é que, se bem se recordam, em Iapala não havia rede de telemóvel e estava a ser um pouco duro para mim estar incomunicável... Mas não foi essa, obviamente, a principal razão. O resto do mundo podia esperar mais um pouco.

A minha ida a Nampula tinha sido em resposta ao apelo das Irmãs, sempre preocupadas com a saúde dos meninos a quem davam apoio na escolinha . Mais de trezentas crianças seleccionadas entre as famílias mais pobres dos bairros vizinhos. Com a ajuda dos “padrinhos”, pessoas anónimas na Europa que contribuíam especificamente para cada criança, as Irmãs conseguiam dar-lhes comida, vestuário e material escolar durante todo o ano. Ainda apoiavam a família das crianças, e incentivavam as mães das crianças a estudar gratuitamente no Centro de Alfabetização, que funcionava ao lado da escolinha. A teoria delas é que se as mães conseguissem aprender a ler, nunca deixariam os filhos desistir da escola e poderiam dar-lhes algum apoio nos estudos. Da experiência daquele projecto, acumulada em tantos anos, quando as mães conseguiam terminar a quarta classe, a maior parte dos filhos formava-se pelo menos num curso médio e as filhas não abandonavam a escola para casar! E eram cada vez mais os “afilhados” que já tinham terminado cursos superiores.

A grande preocupação das Irmãs era mesmo a assistência médica. Os centros de saúde e os hospitais eram caóticos. Ainda são, aliás. Raramente dão uma resposta satisfatória a não ser que se trate de um caso simples de malária ou de parasitose intestinal… Quando suspeitavam de alguma doença mais grave, as Irmãs levavam-nas a uma clínica privada, onde a assistência era ligeiramente superior mas, ainda assim, as melhoras quase nunca eram muito visíveis. Nesse sentido, as Irmãs tinham-me pedido para fazer uma consulta de rastreio a todas as crianças com menos de 5 anos que frequentavam a escolinha. Tudo somado, tinha 150 consultas para fazer em poucos dias… Com o apoio de uma enfermeira e um rastreio auditivo e visual prévios… Seria capaz? Não sabia, de facto, se seria capaz, mas iria certamente dar o meu melhor. Aquela consulta seria provavelmente a primeira consulta de Saúde Infantil que aquelas crianças iriam ter.

(continua...)
20
Out11

[instantes] pode uma mulher apaixonar-se na savana?

beijo de mulata


Hidratando uma criança no hospital. Num outro dia...
(Iapala, Nampula)

(continuando... vá, não desanimem...)

Ah, aqueles homens no seu melhor! Moçambique no seu melhor! Sorri, agradecida por aquele momento de tranquilidade e, de repente, voltei a ouvir o silêncio da savana e a sentir o cheiro do mato. A sensação de perigo e o pânico tinham-se desvanecido. Voltei para dentro do carro à procura do estetoscópio e da bolsa dos medicamentos. Preparei soro oral, consegui encontrar duas seringas dentro da minha mala-safari e voltei para o pé das meninas. Entretanto as mulheres, à boa maneira moçambicana, já se tinham instalado numa esteira no chão e aguardavam sentadas, calmamente, o resultado dos testes.

– Então, Sr. Cachimbo?
– Positivos, Doutora!
– Os dois?
– Sim, os dois. Doutora tem medicamento de malária?
– Tenho aqui quinino em comprimido para a mais nova.
– Para a mais velha eu tenho Coartem. Ando sempre com uma dose porque posso precisar…
– Óptimo! Pode ir buscar, então. Deixe-me só observá-las para ver se precisam de mais alguma coisa.

Observei-as, auscultei-as, vi-lhes os ouvidos, a boca, a garganta, a barriga... Era tudo só malária e desidratação grave. Ofereci-lhes soro na seringa e ambas tiveram a mesma reacção: precipitaram-se, ávidas e sôfregas para o líquido que lhes entrava enfim no corpo. Finalmente alguém as compreendia! Olhavam-me nos olhos e seguravam a seringa com ambas as mãos enquanto bebiam o soro, como uma criança olha a mãe e lhe toca no seio enquanto está a mamar com fome e prazer. Tomaram o paracetamol, o quinino e o Coartem sem qualquer dificuldade.

[Fico sempre admirada pela forma como estes meninos conseguem tomar comprimidos mais amargos que veneno sem um esgar de repulsa, sem o esboçar de um vómito, sem tentar cuspir…]

Quase ao mesmo tempo, o carro estava novamente pronto para partir.
– Vamos embora, então, que temos ainda muito que andar.
– Eu vou lá atrás na caixa do carro – ofereceu-se o Sr. Cachimbo.
– Atrás? Claro que não, Sr. Cachimbo, cabemos quase todos dentro do carro.
– Não, Doutora. As crianças não têm fralda. Têm de ir lá fora porque se não vão sujar o carro todo e as mamãs não vão aceitar.
– Acha?
– Sim, Doutora. Eu vou com elas para controlar se tomam soro.
– Está bem, então. Obrigada por fazer isso.
– Sim, Doutora.

Ajudou as mamãs a subir para a caixa aberta do jipe e entreguei-lhe as meninas, uma a uma e ele aproximou-se e envolveu-as nos meus braços, num abraço conjunto a três que durou um momento, mas o tempo suficiente para me transmitir uma ternura tal que quase me deixou atordoada. Pegou nelas com a delicadeza genuína de um pai enorme e desajeitado que tem receio de magoar as suas meninas doentes e entregou-as à mãe e à tia. Olhei-o, desarmada e ele sorriu-me, olhos nos olhos, brevemente, compenetrado no seu papel de enfermeiro de ambulância.

Partimos novamente. Os quatro adultos a quem íamos dar boleia com um sorriso aliviado nos lábios: as mulheres com um novo brilho no olhar e os homens ainda maravilhados por terem visto de perto a roda de um jipe e descoberto segredos que nunca imaginariam ao seu alcance. O Sr. Cachimbo subiu também para a caixa aberta, certamente de coração mais leve por ter sido prestável, por me ter impressionado e por se ter livrado da discussão azeda com o Sr. Rafael. E este, no banco ao meu lado, seguia agora finalmente tranquilo e disposto a dormir. O carro novamente estável e previsível, e com a direção alinhada. Em menos de meia hora o carro dos loucos tinha ganho uma alma nova. É incrível como às vezes há situações que parece que têm o condão de ir buscar o melhor que há em cada um e ressincronizar o bater dos corações.

(continua...)
03
Fev11

[welcome to mozambique] medicina tradicional

beijo de mulata
Uma banca de medicina tradicional numa rua de Nampula.

(Nampula, Moçambique)

E para quem se interessa pelo assunto: no plano mais afastado de quem aprecia a imagem está a famosa batata africana (namuassa para os macuas e Hypoxis rooperi para os entendidos, para os armados em bons e para os investigadores). Há alguns anos estava muito em voga para tratamento da SIDA, antes de os anti-retrovirais estarem tão disponíveis e difundidos no país. Eu própria também tive oportunidade de ver alguns doentes de SIDA que começaram a tomar batata africana em Iapala e verifiquei que, apesar de não melhorarem da doença, melhoravam do apetite e, consequentemente, do estado nutricional, acabando por quebrar um ciclo vicioso que a breve trecho seria fatal... Hoje em dia já se vê muito menos batata africana à venda pelas estradas. Curiosamente, na Europa, o grande boom da utilização da batata africana foi na Alemanha e para tratamento médico da hiperplasia benigna da próstata. Mas acho que entretanto foi abandonado porque não dava grande resultado...

Ao centro, uma casca de cinchona, de onde de extrai o quinino para tratamento da malária. Mais perto de nós, à esquerda, as "escovas de dentes macuas" para uma higiene dentária profunda e coloração da boca, língua e gengivas de um laranja quente, sinal de status na rara classe média do Norte de Moçambique (os mais pobres não lavam os dentes e os mais ricos utilizam dentífrico importado). À direita, carvão vegetal que imagino que seja utilizado para afecções intestinais. E, ao centro, umas plantas fibrosas que dizem que são incrivelmente eficazes nas parasitoses intestinais (ouvi descrições quase apocalípticas em primeira mão, a que vos vou obviamente poupar, sob pena de nunca mais ninguém querer vir aqui ao mato ouvir mais histórias de África...). Tudo o resto acho que não conheço.
28
Dez10

[improbabilidades] das coisas que, decididamente, só me acontecem a mim...

beijo de mulata
Os meus anti-retrovirais...

(continuando e concluindo)

Telefonei ao director do hospital, que foi um querido e, em menos de meia hora, arrancou o farmacêutico da cama e foi ao hospital entregar-me pessoalmente os medicamentos que tinha disponíveis para profilaxia: um esquema triplo, com zidovudina, lamivudina e... efavirenz. Não havia mais nada. Era o melhor que tinha. O esquema mais sofisticado! Anti-retrovirais dentro do prazo de validade (por pouco, mas pronto...), em genérico e made in India. Um autêntico milagre, considerando que há muito poucos anos não era sequer possível encontrar anti-retrovirais em todo o território moçambicano, quanto mais assim do pé para a mão e no meio do mato... Agradeci-lhe a amabilidade e a disponibilidade, desculpei-me pelo incómodo e voltámos para casa.

Já em casa, eu e a R. sentámo-nos a fazer aquilo que qualquer médico abomina que os doentes façam: lemos as bulas de uma ponta à outra para nos inteirarmos das reacções adversas possíveis que a medicação me poderia provocar. E do exame cuidado da literatura inclusa concluímos que a reacção adversa mais provável que eu poderia ter era... uma crise psicótica! Isto, com a agravante de estar já a tomar mefloquina para profilaxia da malária, também ela sobejamente conhecida por conseguir provocar psicoses assim gratuitamente. Valesse-me São Vito se para além da infâmia de vir a ter insónias de meia-noite, ainda fosse desta que havia de dar em doida. 

Acho que nem dei pelo dia seguinte. Passei-o a dormir profundamente, com um sono quase patológico. Só me lembro de acordar de quando em vez com o pensamento absurdamente reconfortante de não estar a ter insónias, contente por ainda não ter dado em doida e com a imagem amorosa da R., que não arredou pé dali o dia inteiro, sentada na minha cama, ao meu lado, a ler um livro e a olhar para mim tentando descortinar uma réstia de sentido no absurdo que estava a acontecer. Tudo isto enquanto tentava acalmar as Irmãs, explicando-lhes que aquilo era tudo normal. Que era normalíssimo eu não acordar há quase 24 horas e que só estava a tomar aqueles medicamentos por excesso de zelo, já que a bem dizer, no fundo, no fundo não havia perigo nenhum...

No dia seguinte o sono já não era nada comigo. Insónias também não. Quanto aos outros efeitos secundários possíveis, as náuseas, vómitos, dores de cabeça, diarreia, crises psicóticas, crises maníacas, depressão, ansiedade, mucosites, icterícia, falência hepática, pedras nos rins e o diabo a quatro (ou a sete, que como sabem um diabo nunca vem só e quatro diabos trazem no mínimo mais três, atrelados, como damas de companhia), nem ao de leve me pegaram! E foi assim que concluí que estava certamente a tomar um placebo. Também, o que é que eu havia de querer de uns pobres anti-retrovirais genéricos made in India adquiridos pela Direcção Distrital da Saúde do Gilé? Mas à cautela lá os fui tomando.

Só comecei a pensar que se calhar os medicamentos afinal talvez não fossem só Farinha Amparo quando uma madrugada acordei a vomitar e percebi, horas depois, que estava com malária: os anti-retrovirais tinham-me certamente baixado os níveis de mefloquina no sangue e portanto tinha deixado de estar protegida. Mas a confirmação de que afinal os anti-retrovirais não eram de contrafacção só a tive em Lisboa quando fiz as análises da praxe: 350 de colesterol, 300 de triglicéridos, função hepática pelas ruas da amargura e... VIH negativo! Decididamente os medicamentos tinham funcionado. Thank you, India!
30
Jun10

[bem, vamos lá acabar com a história] antes que cheguem à fase das ameaças...

beijo de mulata
(É desta que a história termina. A sério que é. Não era preciso era terem reclamado tanto, que se não a terminei antes foi porque não pude... estive a trabalhar até às 21:00, depois entrei de Urgência durante a noite e, vai daí, como já estava com as mãos na massa, continuei a trabalhar até às 18:00. Como queriam que ainda escrevesse alguma coisa? Só se dissesse aos doentes, Ah e tal, tenho ali umas coisas para acabar de escrever, volte mais tarde...)




Num segundo tudo ficou pronto para partir, foi como se alguém tivesse ligado novamente a câmara rápida. Até o menino se tentou colocar de pé, mas foi impedido pelo próprio tio, que insistiu em carregá-lo às cavalitas. Quando chegamos, o carro já está pronto para partir porque o Padre Filomeno já imaginava a gravidade da situação. O menino, surpreendentemente, depois de tomar a água com açúcar não voltou a ter outra convulsão e parece ter já um novo brilho no olhar... Mas até quando? Subimos para o carro. Não há lugares sentados para todos, por isso a família vai na caixa aberta do jeep, juntamente com outros doentes que pediram para ser transportados para o hospital: uma grávida em fim de tempo, uma menina com um abcesso dentário e celulite da face e um menino desnutrido, todos com as respectivas famílias. Não podemos avançar muito rápido porque a estrada é péssima, o carro vai muito carregado [não vai como o da imagem acima, mas para lá caminha...] e ainda temos de passar pela outra aldeia para vacinar as crianças.

– Para a semana temos de ir a uma aldeia aqui perto. Nessa altura podemos fazer um desvio e vir também a esta. Vou só descer para os avisar que levamos um doente grave mas que voltamos para a semana, decidiu a Irmã.

Quando a Irmã Lurdes sobe novamente para o carro traz uma má notícia. O menino acabou de ter nova convulsão e desta vez ainda não recuperou a consciência. Só me apetece chorar... Subitamente vêm-me à memória as aulas de Infecciologia… Como pude ser tão auto-confiante e insistir para que o menino viesse? Aquela melhoria aparente pode não ter sido por termos tratado uma possível hipoglicémia, podem ter sido as típicas "melhoras da morte" da malária cerebral! Por que fui eu dar falsas esperanças e deslocar uma família tão pobre? Para os deixar com uma dor ainda maior? Olho novamente para trás. O menino acordou de novo. Parece que não aguento mais tanta angústia... Dão-lhe mais água com açúcar e mais uma vez parece melhorar... A Irmã parece ler os meus maus pensamentos:

– Estamos a fazer o que podemos, já não seria o primeiro doente a morrer-nos no caminho. Mas Nossa Senhora há-de nos ajudar, vamos rezar por ele.
A Martine também me tenta confortar:
– Não podemos fazer mais do que aquilo que estamos a fazer.

Parece que as palavras delas me acalmam um pouco... Não sei quantas vezes mais o menino convulsiva até chegarmos ao hospital, com ele completamente inconsciente há mais de 15 minutos. Já levo a medicação programada e as contas todas feitas. Enquanto os enfermeiros lhe colocam uma via de acesso venoso, ajudo os outros doentes a descer do carro. Um dos meninos está a tremer de frio... (Arrefeceu durante o fim da tarde). Tento abraçá-lo para o aquecer, mas tem medo de mim. Claramente nunca viu uma mulher branca. Entrego o meu casaco de malha à mãe para vestir o menino, mas tenho de correr para dentro para preparar a medicação, "Meu Deus, não me falhes, se conseguimos chegar até aqui com ele vivo, não é justo que ele nos morra agora, lutou tanto..." A febre volta a subir, mas desta vez foi mais fácil arrefecê-lo e, uma hora depois, já está novamente fresco.

– Vá lá, acorda, ainda tens tanto para viver!

O quinino vai correndo gota a gota, lentamente para dentro da veia. Ainda faltam três horas para terminar a primeira dose. Quase ao fim das quatro horas abre os olhos e, pela primeira vez, volta a falar. Pergunta onde está, que lugar é aquele. O exame neurológico não mostra alterações. Contra todas as expectativas, está vencida a batalha, felizmente! Ao menos valeu a pena tanto sofrimento… Nimutthapele Muluku!

Já me posso preocupar com os outros doentes. A grávida está bem, mas é o décimo filho e ainda não há qualquer sinal do trabalho de parto. Vão ser uns dias longos por aqui... A menina do abcesso dentário e celulite da face vai começar o antibiótico e o menino desnutrido está ao colo do cozinheiro do hospital, o Sr. Manuel, que já lhe começou a preparar as soluções de recuperação nutricional, feitas segundo os preceitos da Organização Mundial de Saúde, com um toque da alta cozinha Iapalense, “uns pozinhos do Sr. Manuel”, como o próprio faz questão de dizer.

Foi um dia rápido! Rápido demais, talvez, para digerir tudo quanto vi... Ontem não podia mesmo imaginar que viria a ter mesmo um curso relâmpago de inculturação no primeiro dia. Só espero terminar a minha estadia compreendendo um pouco melhor este povo. A Irmã Lurdes move-se no meio deles como peixe na água, tenho isso a meu favor, pelo menos...
28
Jun10

[welcome to mozambique] a doença a céu aberto

beijo de mulata
(Continuação do post de ontem, como prometido. Está aqui mesmo coladinho abaixo, mas o link vai na mesma.)


Chegamos por fim a casa do menino, após uma caminhada que deve ter demorado uns bons 15 minutos quase a correr. A família está reunida cá fora sob o alpendre da casa, fitando o menino com um ar consternado, como se estivessem a velar um caixão. O menino deitado no chão, com a cabeça apoiada sobre os joelhos de um outro jovem está vivo! Consciente e orientado. Suspiro de alívio. Graças a Deus! Mas está a arder em febre. Deve ter tido uma crise convulsiva e depois entrado em coma durante alguns minutos e a família pensou que tinha morrido. Tem malária cerebral de certeza! Está prostradíssimo, suado e com a tonalidade acinzentada que só se vê nas doenças graves. Temos de o levar para o hospital o mais rápido possível, mas sabe Deus se lá conseguirá chegar vivo... Começo a observar o menino, que no mesmo instante começa a fazer movimentos periódicos com os olhos. Vai convulsivar novamente.
– Vamos deitá-lo, que é melhor.

Durante minutos intermináveis o menino é sacudido por movimentos clónicos dos quatro membros, ante o choro manso da família.

– Temos de o levar para o hospital o mais rápido possível, senão morre de certeza! – digo à família, mas ninguém me parece ter compreendido. Peço ao senhor Rafael para me traduzir para macua, mas também ele permanece calado, como se nem tivesse prestado atenção. O que será que se passa? Por que é que de repente ficou tudo em câmara lenta? Por que é que ninguém se move, ninguém fala, ninguém faz nada para salvar este menino?

– O que é que se passa, Irmã, não vamos?
– Espera um pouco, não te impacientes, o pai e a mãe estão a decidir se levam ou não o menino para o hospital.
(Terei ouvido bem?)
– A decidir se o levam ou não?! Mas não sabem que o menino vai morrer de certeza se não o levarem?
– Tem calma, esta cultura é muito especial, há valores que se sobrepõem a todos os outros. Se por acaso acontece o menino morrer longe daqui, a sua alma nunca mais vai encontrar o caminho de volta, nunca poderá ser feliz na outra vida e a família vai sentir-se responsável por isso.

O menino começa novamente a convulsivar e ajoelho-me para o amparar enquanto a família se coloca de pé em redor, com uma face solene.
– Estão a dizer que os antepassados tomaram conta do menino, já estão no corpo dele. Para eles é como se já estivesse morto...

De facto, que outra interpretação é que uma cultura que nunca teve contacto com a ciência, poderia dar a uma convulsão? Se calhar foi por isso que disseram há pouco que ele tinha morrido, quando era óbvio que ainda estava vivo. Mas assim não vai haver maneira de convencer a família de que o menino ainda pode sobreviver... A Irmã continua a tentar. Fala calmamente com os pais, expondo os seus argumentos, ajudada pelo Sr. Rafael. Diz que podemos tratar a doença do menino e, se ele sobreviver, os antepassados não vão entrar no corpo dele.

Eu estou completamente fora de mim, estamos a perder um tempo precioso, já podíamos estar a chegar ao carro e o menino está com convulsões quase de cinco em cinco minutos. Os pais, por fim, dão sinal de anuimento e a mãe desaparece dentro de casa, para colocar roupa, comida e uma panela dentro de um cesto para irem para o hospital.

– Então, vamos?
– Ainda não, foram chamar o tio.
– Como?! Chamar o tio para quê, se os pais já concordaram? Agora é preciso ir chamar a família toda?!
– Fala mais baixo, que eles podem compreender-te! Entre os macuas quem tem direito e exerce o poder paternal sobre as crianças não é o pai, mas o irmão mais velho da mãe. O pai pode dar a sua opinião, mas quem tem efectivamente o poder de decisão é o tio, e isso é incontornável.

Subitamente recordo que alguém me tinha dito antes de vir que a sociedade macua era matrilinear, mas nunca me tinha dado ao trabalho de interiorizar e operacionalizar essa informação... Nem me tinha passado pela cabeça que nunca conseguiria exercer Medicina sem conhecer a estrutura e o funcionamento da sociedade. São tantas as coisas que damos como adquiridas quando nos movemos em terreno conhecido... Os próprios macuas têm um provérbio que diz: Quando chegamos ao mar, as leis do rio já não servem...

Mais uma convulsão. A situação é crítica, mas temos de tentar mantê-lo vivo até chegarmos ao hospital. Só então começo a raciocinar em termos médicos, vamos arrefecê-lo, dar-lhe paracetamol e cloroquina. Nada disto vai resolver o problema, mas pode ser que o ajude a não piorar. Outra causa tratável de convulsão é a hipoglicémia, que é muito frequente na malária maligna.
– Vamos dar-lhe água com açúcar.
A família olha-me, consternada:
– Não temos açúcar, Irmã...

Meu Deus, como é possível uma pobreza a este ponto? O que é que eu estou aqui a fazer, no meio de uma cultura que não conheço e não compreendo e ainda por cima com a fantasia de que consigo tratar alguém sem meios nenhuns... Procuro na carteira, esperançada de encontrar algum pacote esquecido de um café de Lisboa e, de facto, lá encontro alguns pacotes de açúcar Delta®, que coloco num copo de água que me trazem.
– Como se chama o menino? – aproveito para perguntar.

Levítico é o nome. O tio chega, finalmente, espavorido e com lágrimas nos olhos, estava na machamba, um pouco longe dali. Ficou contente com a proposta de levar o menino para o hospital e deu o seu acordo de imediato.

(Bem, já se percebeu que a história ainda não terminou... Mas continua.)

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub