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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

08
Mai12

[iapala] e a terceira lei de murphy

beijo de mulata
(continuando...)

[Terceira lei de Murphy:se duas coisas puderem potencialmente correr mal e você conseguiu evitar ambas,então ocorrerá invariavelmente uma terceira, muito mais complexa... Bem, tenhode ir ver o que se passa.]

– Até já, mamã, que vouali perguntar uma coisa...

Fui ter com o enfermeiroque era o mesmo que tinha estado de serviço no dia anterior.
– Sr. Enfermeiro, o meninodo berço 3 tomou mesmo a medicação ontem?
– Sim, tomou.
– Mas ele ainda não estámelhor... Ele tomou mesmo à sua frente? Não terá cuspido os medicamentos?
– Não. Ele tomou à minhafrente.
– Então se calhar eramelhor dar-lhe mais uma dose de ciprofloxacina...
– Ciprofloxacina não tem…
– Não tem? Como assim, nãotem?
– Não tem. Não temciprofloxacina...
– Mas disse-me que eletomou a medicação!
– Sim, tomou o que havia.O que não havia não tomou.
– Então o que é que eletomou ontem?
– Tomou multivitamina eparacetamol.
– Mas ontem, quandointernei o menino, perguntei-lhe se tinha e disse-me que sim.
– Sim, tem.
– Então? – aquilo não mepodia estar a acontecer, valesse-me Santa Rita de Cássia!
– Mas hoje não tem...
– E ontem?
– Ontem também não.
– Mas porque é que não medisse?!
– Irmã?
– Pronto, deixe estar.Obrigada, já percebi. Então tem tetraciclina?
– Tem sim.
– Hoje tem?
– Sim, tem, doutora!
– Vamos então dar aomenino. Não se importa de ir buscar?
– Doutora, tetraciclinanós não damos a criança.
– Está a brincar comigo?
– Não, doutora.Tetraciclina é prejudicial para criança.
– Por favor! Isso sãomariquices da Europa!
– Irmã?
– O máximo que lhe podeacontecer por causa da tetraciclina é ficar com manchas amareladas nos dentes.
Af’nal? Mancha nos denti?E então?
– E então pergunto eu! Eleestá a morrer. Os pais de certeza que preferem um filho vivo com pequenasmanchas nos dentes do que um filho morto com dentes perfeitos!

Olhava para mim como se eufosse de outro planeta…
– Pois… tetraciclina, é?
– Sim, pode ir buscar, porfavor?
– Ah, mas está no armazém.Só quem tem a chave é o Sr. Agostinho.
– E onde está o Sr.Agostinho?
– Está em casa.
– Pronto, está bem, eudesisto. Eu devo ter cipro em casa!

Senhor, dai-me paciência,que eu não sei onde foi que deixei a minha… e sabedoria para entender estepovo. Ou, como diria o meu melhor amigo: “Senhor, dai-me paciência, que se mederdes força, vou acabar por lhes bater!”

Fui buscar ciprofloxacinaa casa e voltei para a enfermaria. A mãe desta vez entregou-me ela própria aseringa, com um sorriso meio cúmplice. Finalmente já não achava que eu estava afazer mal ao seu menino. O comprimido que lhe dei fê-la ficar muito maisbem-disposta. Sim, afinal havia um comprimido que ajudaria a tratar o menino.Só o soro nunca seria suficiente aos seus olhos.

(continua...)
07
Mai12

[iapala] e as leis de murphy

beijo de mulata
(continuando...)

Olhei bem mais nofundo dos olhos daquela mamã e, tempos depois, também de outras mães comcrianças em agonia. Para lá da passividade, do olhar que parecia imperturbável,para lá do eterno sorriso, vi um desespero, uma amargura, um quase abandono.Claro que não podia ser indiferença! Perguntei-lhe:

– Quantos filhos tem,mamã?
– Quatro...
– E quantos estão vivos?
– Este só...  

Que coração tãomaltratado... E o seu único filho, o seu “menino de ouro” em risco de morrerali mesmo, longe de casa… O seu olhar escurecia ainda mais de vez em quando. Mashavia que continuar. A batalha estava longe de estar ganha. Ele continuava comdiarreia a cada cinco ou dez minutos, sem sinais de abrandar. Eu parecia umabomba infusora, mas mais persistente do que eu era o menino que, apesar deprostrado, continuava a abrir a boca e a beber tudo o que eu lhe dava. Mas erahora da sesta. Tinha de o deixar descansar pelo menos uma hora, ou acabaria porficar exausto. Disse à mãe para o colocar ao peito para o adormecer e deixá-lodormir um pouco. Saí por um instante da enfermaria. Precisava de ir a casalevar os panos do menino para mandar o empregado lavá-los com água a ferver,não fosse alguma mulher mais diligente lembrar-se de os ir lavar ao rio…Encontrei a irmã Lurdes no caminho, que vinha visitar-me. Achou muito bem aminha iniciativa de impedir que os panos fossem lavados no rio.

– E como está o menino?
– Ainda… – respondi,sorrindo, com sotaque moçambicano.
– Mas nem sequer um poucomelhor?
– Hum… nem por isso…
– Bem, há que terpaciência, amiga, não desistas. Mas é estranho… já lhe deste antibiótico?
– Sim, ontem…

A Irmã Lurdes tinha razão.Ele já era para estar a melhorar, ou pelo menos era o que diziam os meuslivros… eu sei que os doentes não estudam por tratados de Medicina, mas que eraestranho lá isso… Pois… se calhar era preciso começar do início e rever o quepodia ter corrido mal. Sim, estamos em Moçambique e tudo o que puder correr malvai mesmo correr mal. As leis de Murphy podiam ter sido inventadas aqui. Poisé… lá terá que ser… Vamos a isso:

[Primeira lei de Murphy:se o aparelho não funciona, teste a tomada.]
– O enfermeiro ontem deumedicação ao menino? – pergunto à mãe.
– Sim, tomou. Ontem. 

[Segunda lei de Murphy: semais do que uma coisa puder correr mal, correrão todas mal ao mesmo tempo.Hummm... Se calhar então tem mais qualquer coisa... Malária, por exemplo,embora o teste tenha sido negativo.]

– Ontem ou esta noite tevefebre?
– Nada, não teve.
– Tosse?
– Nada, não tosse.
– Queixou-se de algumador?
– Não.

[Terceira lei de Murphy:se duas coisas puderem potencialmente correr mal e você conseguiu evitar ambas,então ocorrerá invariavelmente uma terceira, muito mais complexa... Bem, tenhode ir ver o que se passa.]

06
Mai12

[iapala] a semântica das doenças...

beijo de mulata
(continuando...)

A meio da tarde, o avô entrou novamente na enfermaria. Pediu novamente a palavra e sentou-se.

– Sim, papá?
– Vai continuar a dar “choro” à criança?
– Sim, claro. Até ele ficar melhor.
Isshhh… – abanava a cabeça em desaprovação.
– O que foi, papá?
Isshhh… criança sofre – lamentava-se tristemente.
– Papá, o seu neto é muito bonito. E tem muita vontade de viver! Ele está a lutar muito para continuar vivo no meio desta doença. Não há outra maneira de tratar o menino a não ser com soro!
– Sim, irmã. Mas criança sofre com “choro”!
– O soro é muito importante. Ele está a perder muitos líquidos, temos de lhe dar a mesma quantidade que está a perder – eu tentava explicar o melhor que conseguia. Pausadamente. Procurando palavras simples. Mas será que isto não é intuitivo? Será que não se consegue perceber estes conceitos sem se ter estudado Fisiologia?
– Mas criança sofre… Não tem outro tratamento? Quinino?
– Não, quinino é para a malária. Menino tem diarreia.
– Mas não tem quinino de diarreia?
– Não, papá. Remédio de diarreia é soro mesmo.
Isshh… criança sofre…
– Sim, está a sofrer, é verdade, mas vai morrer se não lhe dermos soro.
– Irmã, mas irmã não vê que quando lhe dá “choro”, a criança sofre e tem mais diarreia?
– Como?!

Foi então que me ocorreu uma ideia. Absolutamente improvável, mas plausível. Pouco tempo antes, ainda em Lisboa, tinha lido uma notícia no jornal que relatava que vários voluntários da Cruz Vermelha tinham sido mortos numa aldeia no norte de Moçambique, acusados de propagar a cólera quando estavam a distribuir cloro pela população para desinfetar a água. Um sociólogo, chamado a comentar o assunto, falava da importância das crenças e da linguagem. Ele aconselhava as pessoas a falar em lixívia porque, segundo a sua opinião, o que motivara aqueles crimes tinha sido em parte a confusão fonética entre “cólera” e “cloro”. A notícia parecera-me absurda, mas enfim… tudo era possível… E agora o avô dizia insistentemente a palavra “choro” e não “soro”… seria possível? Resolvi fazer a experiência.

– Mas papá, isto é “soro”, não é “choro”! Isto é medicamento. É remédio.

Pareceu surpreendido.
Af’nal? Soro é o quê?
– É remédio para a diarreia. Remédio líquido.
– Ah… mas menino chora quando toma. E tem mais diarreia.
– Mas diarreia não vai parar se ele deixar de beber, não é o soro que lhe está a provocar a diarreia. E ele chora porque quer mais! Ora pergunte-lhe se quer esta água.

Arrisquei demasiado. Deixar assim a decisão de um tratamento nas mãos de uma criança de dois anos... Por sorte, ele respondeu que sim à pergunta. A face do ancião iluminou-se. De repente tinha compreendido tudo, e o que eu dizia fazia sentido. Eu também finalmente compreendia um pouco melhor a atitude da mãe. Abracei-a. Pobre mamã… Ela tinha-me visto fazer mal ao seu menino durante horas seguidas e chorara em silêncio a dor que era assistir, impotente, ao menino a sofrer às minhas mãos… Pedi ao avô para lhe explicar o que eu dissera, mas fez-se desentendido. Voltou para o pátio e vi-o falar com os restantes homens da família. Aquilo era um assunto “importante”, era preciso analisar a questão e deliberar em conformidade. Era um assunto de homens! As mulheres só tinham de cuidar das crianças e do resto da família.

 (continua...)
05
Mai12

[iapala] a tradição...

beijo de mulata


Ao início da tarde fiz uma pausa para o almoço. Saí do hospital pela porta da frente e passei a uma distância próxima mas segura de um dos perus (a fêmea, percebi depois), que estava sozinha e voltada para o outro lado do alpendre. De repente, vi um objeto enorme cair sobre mim e só tive tempo de me desviar do “marido”, que estava empoleirado sobre o telhado da sala de esterilização e fez um voo picado sobre mim quando passei pelo “seu território”. Foi um susto valente e tentei enxotá-lo, naquela confusão de asas e penas esvoaçantes, mas ele estava de tal forma furioso, que achei por bem acelerar o passo e afastar-me rapidamente daquele cenário de bélico, antes que alguém se magoasse! Que bizarria... Um casal de perus ressabiados permanentemente estacionado à porta do hospital… Mas não haveria ninguém que os removesse dali?

Almocei à pressa e voltei o mais rápido que pude para junto do menino, que dormitava com uma respiração um pouco mais tranquila ao colo da mãe. Ao seu lado, junto da cama, havia uma cara nova. Era o avô materno, que tinha chegado da aldeia para ver o que se passava com o neto.

– Boa tarde.
– Boa tarde, irmã.

Assim que me viu, o menino agitou-se. Recomeçou a gemer. Voltei a dar-lhe soro. Sempre que eu parava ele gemia e reclamava por mais. A família voltou a sair da enfermaria, deixando-me com a mãe, que não arredava pé da cabeceira do filho. Pouco depois, o avô voltou para junto de nós. Pediu a palavra com um gesto e sentou-se.

– Irmã…
– Sim?
– Irmã, peço alta para esta criança.
– Como?!
– Irmã, estou a pidir alta do hospital. Queremos ir para casa.
– Mas a criança está muito doente, os senhores não a podem levar assim, ele vai morrer no caminho se se forem embora agora!

Calou-se, pensativo. Procurava outros argumentos.

– Irmã… não ficou mais família nenhuma em casa. Podemos ser roubados a qualquer momento. Temos de voltar ou então perdemos tudo.
– Mas o senhor pode voltar. O menino e os pais vão depois, quando ele estiver melhor.
– Mas irmã não vai curar o menino…
– Vou pelo menos tentar. Esta mamã é sua filha?
– É a minha filha, sim.
– Ela é testemunha de que ainda não saí do lado desta criança.
– Sim, eu sei.
– Eu estou a tentar tratá-lo!

Silêncio. Ganhava fôlego para novo argumento:
– Irmã, mas esta também é uma doença que vem da trad’ção. Irmã não vai conseguir curar o menino e ele vai morrer aqui.

Então era isso? A questão era morrer ali no hospital e não propriamente morrer… Tinha aprendido dias antes com a irmã Lurdes que na tradição macua, se as pessoas morressem num local distante de onde tinham nascido, os seus espíritos não encontrariam o caminho de volta e poderiam transformar-se em espíritos malignos, que atormentariam a família até ao fim dos seus dias.

– Papá, escute uma coisa: prometo-lhe que se o menino morrer eu vou levá-los a casa! Dou-lhe a minha palavra.

Pensou um pouco. Anuiu, por fim, com um gesto e saiu novamente para o pátio. Continuei a dar soro ao menino, enquanto as dejeções líquidas continuavam. A tia de vez em quando entrava para substituir os panos e as capulanas que serviam de fralda. Ofereci-me para levar os panos ao nosso empregado para ser ele a lavá-los. Estava em pânico que a família os fosse lavar ao rio e desencadeasse um surto de cólera por ali também. À cautela, de manhã tinha levado um frasco de lixívia para desinfetar as mãos dos familiares e a cama, mas todo o cuidado era pouco. Assentiram, com um esgar de surpresa, sem coragem de recusar. Quando a esmola é grande o santo desconfia...

(continua...)
04
Mai12

[iapala] uma luta contra o tempo...

beijo de mulata


O ameaçador casalinho de perus de Iapala...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Acordei cedo, mas obriguei-me a ir primeiro tomar o pequeno-almoço. Já sabia que quando começasse a trabalhar não voltaria a parar até me virem buscar para o almoço…

Fui direita à Pediatria, passando ao largo dos perus que, naquele momento, perseguiam os primeiros doentes da manhã que chegavam à urgência. O menino estava na sua cama, rodeado pela família, que o olhava com o mesmo olhar que eu vira à família do menino de Murralelo. Como se velassem um cadáver. Era o único que ainda estava no berço. Todos os outros meninos, na capulana das respectivas mães, já cirandavam pelo pátio. O menino, tal como eu temia, estava pior. Cada vez mais desidratado e com a respiração superficial dos doentes em agonia. Os lençóis da cama estavam encharcados por aquele líquido sem cheiro que lhe saía do corpo. A diarreia tinha continuado e ele não tinha voltado a beber líquidos. O soro continuava intacto, no mesmo nível em que o tinha deixado. Mas controlei-me.

– Mamã, deu soro à criança?
– Está a negar…
– Posso dar eu?

Encolheu os ombros… Dei-lhe soro novamente. Abriu a boca sem dificuldade e bebeu tudo. Repeti o processo.

– Vê, mamã? Ele não nega! 

Fiquei ali um bom bocado até serem 7 horas da manhã, tempo de ir receber as ocorrências e ouvir os “inventários”, sempre iguais, sem tirar nem pôr. O enfermeiro que tinha estado ao serviço durante a noite não mencionou qualquer ocorrência. Tudo normal. Medicação administrada. Doentes a evoluir como previsto. Respirei fundo, a ver se não perdia completamente a cabeça logo no segundo dia…

– O menino do berço 3 está com uma diarreia grave. Parece cólera. E a mãe, por qualquer razão, não lhe tem estado a dar soro.
– Se calhar não preparou soro como nós dissemos, doutora – respondeu o director.
– Sim, é verdade, não preparou. Mas quando vi que não tinha preparado, fui a casa e preparei eu própria e dei-o à mãe. Mas ela mesmo assim não lhe deu.

Olharam-me como quem pensa: “Mas onde é que esta estacionou a nave?”
– Ah, doutora, os doentes nunca fazem nada do que nós dizemos. É escusado.
– Mas porquê?
– São do povo. É esta a nossa cultura. Não compreendem o que é medicamento.
– Então é preciso ficar ali e ver se dão os medicamentos aos meninos.
– Doutora, não podemos estar sempre com o mesmo doente. Temos o hospital inteiro para cuidar. E os doentes nunca estão nas camas, são muito indisciplinados!

Em parte era verdade. Só havia um único enfermeiro por turno. Mas perceberia rapidamente que não estavam assim tão sobrecarregados com trabalho. Os enfermeiros passavam a maior parte do tempo sentados debaixo do cajueiro. Limitavam-se a distribuir a medicação à hora regulamentar, sentados na sua sala de trabalho, com os doentes em fila por ordem do número da cama. E se eu fizesse o que quer que fosse eles iam-se embora imediatamente: ora pois, se eu ia trabalhar, eles deixavam de ser necessários ali, como está bem de ver…

– Tudo bem, vamos trabalhar – disse o director.
– Sim, vamos – respondi –, mas depois da visita nas enfermarias não vou para a urgência. Ontem deixaram-me lá sozinha. Depois vou para a enfermaria de Pediatria cuidar do menino.
– Sim, doutora.

A meio da manhã voltei para a cabeceira do menino. Felizmente era o único doente verdadeiramente grave do hospital e podia dedicar-me a ele. Assim que me viu, a mãe pegou na seringa e fingiu que estava a dar soro ao filho. Mas era óbvio que não lhe tinha dado uma gota que fosse.

– Mas porque é que não lhe dá soro, mamã? Não vê que ele vai morrer se não lhe der?

Não respondeu. Peguei eu própria na seringa e continuei a dar-lhe soro. O resto da família saiu, deixando-nos às duas e ao menino ali… O director entrou na enfermaria ao fim da manhã, com um ar de gozo. Estava curioso de ver o que estaria eu a fazer ali há tanto tempo.

– Doutora, que está a fazer?
– Estou a dar soro ao menino.
Isshhh… É escusado, doutora. A mamã não vai dar soro à criança.
– Por isso mesmo estou a dar eu.
– Mas menino já está muito grave. Vale a pena ir morrer a casa…
– Sr. Sousa! Temos de tentar.
– Está bem. Doutora é que sabe.

O menino, ainda agarrado à vida, continuava a abrir-me a boca para o soro e a beber como se não houvesse amanhã. Mas a diarreia não abrandava. Comecei a estranhar. Já estava a fazer 24 horas que tinha sido internado e que eu lhe tinha prescrito o antibiótico. Já era tempo de estar a melhorar… Mas enfim, mais tarde ou mais cedo o antibiótico começaria a fazer efeito e haveríamos de ganhar terreno naquela batalha contra a desidratação.
(continua...)
01
Mai12

[iapala] uma noite absolutamente desconcertante...

beijo de mulata
(continuando...)

Voltei ao hospital,empunhando a minha lanterna. O casalinho de perus já tinha recolhido àintimidade do lar, e as luzes do hospital estavam desligadas àquela hora.
  
Dirigi-me à enfermaria da Pediatria, que já tinha a porta fechada. Osfamiliares dormiam cá fora, deitados sob o alpendre, as mulheres cobertas comcapulanas, os homens cobertos com mantas ou sem nada. Passei cuidadosamenteentre as pessoas, tentando não acordar ninguém, mas percebi que não dormiam.Estavam apenas deitados porque não havia luz e portanto não havia mais nada quefazer. Na enfermaria, deitadas nos berços, sob as redes mosquiteiras abertas,as crianças dormiam, embaladas pelo doce cantar de duas ou três mamãs, a váriasvozes. Sempre a várias vozes! Parece que não há outra maneira de cantar nestaterra se não da forma mais bonita e harmoniosa que existe… Não compreendo o quedizem. Semanas mais tarde haveria de aprender a música e trauteá-la para umadas irmãs moçambicanas, que me traduziu esta música tradicional macua que asmamãs cantam para adormecer os filhos:

“Queroagradecer-te por teres nascido
dorme,meu amor, fica tranquilo
porqueenquanto estiveres a dormir
eufico aqui a repetir o teu nome.”

Que poema lindo! A mãe domeu menino já dormia, recostada na cama do filho. Detive-me um pouco aobservá-lo. O menino dormia também, mas tinha a respiração acelerada de quemtem uma desidratação grave e está em sofrimento, prestes a entrar em choque… A mãe acordou sobressaltada com a minha presença, pareciaassustada por me ver ali.
– Como está a criança?
– Ainda*…

Olhei para o chão. Ao ladoda cama, o soro que tinha preparado estava praticamente intacto! A mãe não lhotinha dado! Não percebia o que se passava, palavra… Resolvi jogar ao ataque,com o meu ar paternal-zangado nº 45:
– Mamã, tem de dar soro aomenino, senão ele vai morrer!
– Menino não quer… Tem dordi barriga – agora, que já tinha umpouco mais de confiança em mim, começava a responder às minhas perguntas.Afinal entendia Português. E falava um bocadinho…
– Tem de insistir! Elemorre se não lhe der!
– É custoso… – articuloucom dificuldade.
Peguei eu própria no soroe na seringa que tinha dado à mãe e acordei o menino. Tomou tudo o que lhe deinum ápice. Gemeu a seguir, voltando-se para mim, e teve nova dejecçãodiarreica. Ofereci-lhe mais soro e abriu a boca de imediato. Não tivedificuldade nenhuma em dar-lhe mais de meio litro quase de seguida. De cada vezque eu fazia uma pausa, com medo que ele vomitasse, recomeçava a gemer. A mãechorava em silêncio, como se estivesse a assistir, impotente, ao sacrifício doseu filho. Nem eu nem ela compreendíamos as razões de cada uma… Ela nãopercebia a razão da minha zanga, eu não percebia como é que ela, tendo soro àdisposição, não o dava ao filho e o deixava morrer nos braços! As outras mãestinham acordado e olhavam-nos surpreendidas, em silêncio. A família do meninotinha entrado e olhava-me também, com um ar impenetrável, sem dizer palavra.Mas o que é que se estava a passar? Ao cabo de uma hora, o menino tinha bebidoquase três quartos do soro e chorava com mais vigor.
– Se calhar quer peito,mamã. Ponha-o à mama…

A mãe não se moveu.Coloquei-o eu própria ao peito da mãe e mamou com alguma força, adormecendo emseguida. A mãe chorava, sempre em silêncio. Eu continuava sem perceber o quequer que fosse. Fui a casa preparar mais soro e entreguei-o à mãe. 

– Sempre que o meninoacordar tem de lhe dar!
– Sim, irmã.
O pai, pela primeira vezdirigiu-me a palavra:
– Obrigado!
– De nada, papá. Atéamanhã, boa noite.
Fui-me deitar, preocupadae completamente desconcertada com o que tinha acabado de acontecer. O que teriaaquela mãe? Mil e uma hipóteses absurdas me passavam pela cabeça. Acabei poradormecer de exaustão.

* Expressão abreviada que quer dizer "ainda não".

30
Abr12

[iapala] nada é simples...

beijo de mulata
(continuando...)

Eram horas da missa edepois tínhamos de ir jantar. Não queria perder nem por nada a minha primeiramissa em Iapala, onde as meninas dançariam mais uma vez, numa dança maissóbria, mas ainda assim lindíssima, perfeitamente sincronizada e com cânticosde enfeitiçar o ouvido mais duro… Ao jantar desabafei com as irmãs sobre osucedido no hospital. Não pareceram de todo surpreendidas. “Aqui nesta terra ésempre assim. A irmã Sarala esgota-se no hospital. Tem de se estarpermanentemente em cima de tudo. Não sei como não morrem muito mais pessoas…Aqui é tudo por Deus!”
Mas como era possível?! 

– Aqui o povo não confiana medicina do hospital. Só vêm em último recurso, depois de terem ido aocurandeiro. E depois há muitas crenças e tabus que vão radicalmente contraaquilo que lhes é dito para fazer e também ninguém lhes explica as coisas damelhor maneira… – a irmã Lurdes transmitia-me o seu amor pelo povo, apaziguandoa minha zanga com a calma da sua experiência.
– Mas a mãe parecia quenão se importava! Nem para nós olhava…
– Se não se importasse nãotinha vindo ao hospital. Olha que é um esforço muito grande para eles. Aspessoas têm de arranjar mantimentos, pedir a vários familiares que osacompanhem, e deixar os outros filhos entregues à família. Eles são de onde?
– De uma aldeia a 20quilómetros daqui. Não fixei o nome…
– Pois… ninguém se desloca 20quilómetros a pé, com a família toda se não se importar com a criança doente. A Dona Ana é que deve terfalado com ela de forma muito malcriada, como sempre.
– Sim, é verdade.
– Quase todos osenfermeiros e serventes tratam muito mal as pessoas do povo, parece que têmgosto em humilhar as pessoas e não lhes explicam nada do que elas devem fazer.E para uma pessoa que já não confia no hospital, é muito difícil seguir umarecomendação dada naquele tom…
– Nem posso acreditar!
– Há excepções, claro, masa maior parte são profissionais muito mal formados. E pouco competentes.
– Pois… por um lado acheique podia ser isso, mas a mãe também podia ter ido ter com o enfermeiro parapedir para lhe explicar como é que se dava o soro.
– Nem lhe deve terocorrido, coitada, ela nem sequer deve saber para que serve o soro… E depois secalhar tem medo de ser maltratada pelo enfermeiro, ou que ele lhe peça umsuborno. Ela de certeza que não tem dinheiro…
– Credo!
– É assim, amiga. Nemtodos os profissionais fazem isso. E, mesmo os que fazem, não fazem issosempre, nem a qualquer pessoa. Mas a fama persegue-os…
– Isto parte o coração…
– É verdade! Temosrecebido muito voluntários aqui na missão que vêm com algumas ideias românticassobre o país, mas isto não é um mar de rosas. Há muita gente que se deprime enão aguenta o choque de ver tanto sofrimento e tanta indiferença…
– Não admira…
– Sim… África… não é paratodos!
– Pois… não deve ser, não…Bem, é melhor voltar lá para ver como estão a correr as coisas.

 Voltei aohospital, empunhando a minha lanterna. O casalinho de perus já tinha recolhidoà intimidade do lar, e as luzes do hospital estavam desligadas àquela hora.
29
Abr12

[iapala] como funciona um hospital no mato?

beijo de mulata

Tomando soro oral pela mão da R.
(Gilé, Zambézia)

(continuando...)

Falaram um pouco, a Dona Ana sempre no mesmo tom malcriado quando se dirigia à mãe, até que chegou a uma conclusão:
– O enfermeiro tentou colocar cateter, mas desconseguiu.
Olho para as mãos e os braços da criança. Não há qualquer sinal de picada.
– Tem a certeza? Não tentou sequer.
A Dona Ana voltou a dirigir-se à mamã. Por fim, esta admitiu que tinha recusado que o enfermeiro colocasse soro ao filho. Mas porquê? O que é que se tinha passado? A Dona Ana não respondia, fitando o chão, como se só tivesse vontade de desaparecer dali o mais depressa possível. Enquanto falávamos, a criança ia tendo dejeções diarreicas de água, apenas água, sem cheiro, sem cor. A mãe, impassível, apenas a afastava do seu corpo, para que aquela água que saía do corpo do filho caísse diretamente na terra do pátio, e continuava a ouvir o que nós dizíamos, fitando o infinito.
– Está bem, mas explicaram mesmo à senhora para que era o soro na veia? E que para fazer soro oral era preciso abrir o pacote, deitar o conteúdo em água fervida e dar à criança? É que ele agora está muito pior. Agora está muito mais desidratado!

[Silêncio. Parecia que nada daquilo lhes dizia respeito. Perdi a paciência. Era necessário agir. E depressa!]
– Bem… eu já venho.
Fui a casa, preparei soro e fui dá-lo à mãe, com indicação para dar à criança uma boa quantidade de cada vez que tivesse diarreia. Pois… já tinha percebido que não ia ser fácil trabalhar ali. Estava zangada. Muito zangada. Comigo própria por ter deixado passar tanto tempo antes de reavaliar a criança. E não sabia com quem mais deveria estar zangada, se com a mãe, que não tinha dado o soro ao filho por não ter perguntado ao enfermeiro como se fazia, se com o enfermeiro por não lhe ter explicado e não ter ido confirmar se a terapêutica estava mesmo a ser cumprida… se com o caos de organização que era aquele hospital.
Expliquei como dar o soro à criança, exemplifiquei várias vezes. O menino, mal viu o soro na seringa, precipitou-se para ele e bebeu sofregamente. Chorou quase sem energia. Queria mais!
– Vamos continuar, mamã!
– Sim.
 (continua...)
28
Abr12

[welcome to mozambique] não, ninguém me tinha dito que ia ser fácil...

beijo de mulata
(continuando...)

As meninas deixaram-me e voltaram para casa, que eram horas de fazer o jantar. Eu queria ir visitar o menino que tinha internado com diarreia. Já estaria melhor?


Entrei na enfermaria, mas não estava ninguém lá dentro. Onde estariam as crianças internadas? Eram umas nove ou dez esta manhã. Teriam fugido todas esta tarde? Mas algumas estavam tão doentes, como era possível que os pais as levassem dali? Ouvi uma voz atrás de mim:

– Boa noite, irmã! – a mãe do menino que eu tinha internado vira-me e atravessara o pátio, vinda da cozinha comunitária, onde preparava o seu jantar e o do marido.
– Boa noite, mamã. Como está a criança?

O menino, na capulana às costas da mãe, estava pior. Muito pior. Os olhos mais encovados, a língua menos húmida, um olhar mortiço… Notei que não tinha nenhum cateter na mão para lhe ser administrado soro na veia.

– O menino tem estado a vomitar?
– Sim.
– Vomitou quantas vezes?
– Sim.

Não me compreendia… Fui chamar a Dona Ana, a servente da maternidade, que descansava debaixo do cajueiro do pátio para me traduzir a conversa.

– O menino tem estado a vomitar?

Que não, não tinha vomitado. Mas, mamã – insistia eu –, ele estava muito pior… Tinha recusado o soro? A mamã respondia que não, não tinha recusado. E estava a recusar o leite materno? Que sim, um pouco… Mas que quantidade de soro tinha bebido, então? Ao que a mamã respondia que nada, não tinha bebido soro nenhum…
– Como? Mas então não lhe deu o soro oral? – indignei-me.
– Doutora, ela diz que não lhe deram.
– Não lhe deram soro? Pergunte bem… Eu prescrevi soro oral no processo!

Falaram algum tempo. A Dona Ana num tom acusatório para com a mamã, que respondia em voz baixa e com os olhos fitando algum ponto bem atrás de nós… Por fim:

– Doutora, ela diz que o enfermeiro lhe deu um pacote e disse que era para ferver um litro de água e dar à criança. Ela não lhe deu porque não percebeu o que era para fazer com o pacote e não tinha nenhum recipiente para ferver um litro de água…
– Oh, valha-me Deus! Mas são as mães que têm de fazer isso?
– Sim, se o enfermeiro não preparar o soro, são as mamãs que preparam.
– Mas ele não deu conta que a mãe não tinha dado o soro à criança?
– A criança não está na enfermaria, as mamãs não ficam com elas lá dentro. E não fazem nada do que nós dizemos, na maternidade é a mesma coisa. É difícil controlar as coisas aqui – justificava-se a Dona Ana.
– Mas eu também prescrevi soro endovenoso. Isso também não está feito!
– Não sei, doutora.
– Mas pergunte à mãe o que se passou, se faz favor.
– Ela não deve saber.
– Mas pergunte, pode ser que saiba.

 (continua...)

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