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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

21
Abr17

[hoje foi o dia!] zambézia, uma história de encantar

beijo de mulata







O Monte Namúli
(Zambézia, Moçambique)
Fotos: Algumas são minhas, outras daqui.


AsFlores de Frangipani

Há muitos, muitos anos, a Zambézia era uma terraselvagem, quente de origens, onde nasciam fontes de águas mornas e perfumadas,onde a terra era tão fértil que as mais pequenas sementes podiam dar frutos eas montanhas se cobriam de um véu glaucomatoso todas as manhãs. Para que océu só se mostrasse depois de todos estarem bem acordados para opoderem contemplar... Numa dessas montanhas, a que haveria de se chamarNamúli, o primeiro homem surgiu na bruma de uma madrugada,coberto de capim e de folhas, germinado nas raízes mornas de umembondeiro. E, depois de um urro de alvoradas, que só não faz parte dahistória porque ainda não estava lá mais ninguém para ouvir, olhou comespanto aquele céu de paraíso, agradeceu a Muluku, Deus dosantepassados, e desceu avidamente em direção à planície, começando aespalhar a sua semente pelo mundo.

Nessa terra verde, no coração de África, ainda acriação divina não estava completa, nasceu anos depois, um menino de olhosnegros como a terra mais fértil, e cabelo crespo, como os irreverentes ramos deum embondeiro. Era um menino com o coração doce e a cabeça cheia de aventuras,a quem chamaram Trovão. A sua companheira de infância era uma menina terna, deolhos azuis, transbordantes de futuros, e cabelos perfumados, cujo nomeseria Rosa, se nessa terra existissem rosas ou alguém já tivesse sonhado com floresdelicadas. Por isso lhe deram o nome das flores mais doces das árvores maisaltas, porque o seu perfume só poderia vir do céu. O seu nome era Frangipani,mas todos lhe chamavam Gigi, como o som do seu sorriso.

Gigi e Trovão corriam felizes pelas montanhas,trepavam ao cume do monte Namúli, comiam as bagas mais doces dos arbustosespinhosos e construíam, entre segredos e gargalhadas, pequenas cabanas depaus e de folhas, onde mal cabiam deitados e entrelaçados um no outro. Era láque se deixavam ficar em silêncio, na hora do calor, contemplando o céu pelaabertura no teto que Gigi queria manter descoberta a todo o custo, paraque o céu não lhe fugisse dos olhos e para sentir, nos dias de chuva, o sabor redondodo sol. Por vezes, nos dias em que o calor se demorava e a terra estavamais húmida e fértil, o próprio chão se entranhava entre os dois e criavaraízes, como pontes entre um e outro. E era quase difícil despegarem-se,vestidos da mesma pele.

Os meninos foram crescendo, os dentes de leiteforam caindo e eles enterravam-nos no chão da cabana, onde, pouco a pouco, sefoi formando uma gruta, revestida a raiz de embondeiro. Mas, à medida que os meninos cresciam,aqueles momentos de silêncio e cumplicidade foram-se tornando cada vez maisraros. Já todos sabemos, mas eles não tinham quem lhes dissesse, e só depoispoderiam vir a descobrir, que na infância, a dada altura, há uma magia quese quebra, uma gargalhada que se suspende, toda uma vida que se tornamemória... E no dia em que enterraram o último dente de leite, cada um seguiu oseu caminho, porque desde que o mundo é mundo, para crescer é precisoafastar-se da casa onde que se cresceu... Para se poder amadurecere depois poder amar e querer gerar vida...

Gigi e Trovão desceram do Monte Namúli ecresceram em direções opostas, até que um dia, na planície se reencontraram.Ele tornara-se um homem enorme, com a face e o peito cobertos de pelos, dasraízes do embondeiro que se lhe entranharam na pele nas longas tardes da suainfância. Os olhos quentes continuavam doces e cheios de aventuras. Gigicrescera para se tornar numa mulher linda, mas os olhos, outrora de céu, eramagora olhos azuis de mar. As raízes do embondeiro cresciam no seu ventre,secando-o por dentro. E o mar, que sonhava que um dia lhe cresceria no ventre,para depois jorrar vida, só nos olhos lhe crescia todos os dias. E delestransbordava todas as noites. Nos seus olhos já não se viam futuros por causa daquelemar morto no seu ventre, onde só existia sangue e lodo…


(continua...)

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