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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

28
Abr17

[histórias de amor] as visitas ao baby-de-mulata #5

beijo de mulata

Um quarto de bebé ao estilo Montessori. Daqui.

(Continuando a história da longa caminhada que me levou o baby-de-mulata para casa... Interrompemos por causa do 25 de abril, de um surto de sarampo em Moçambique e outro em Portugal, de um devaneio literário por terras da Zambézia e o mito de origem da primeira mulher Moçambicana, em honra à Exma. Prof. Doutora Ruiva, mas sobretudo uma alegoria à adoção e infertilidade, e de uma, já lendária, crise de soluços de proporções épicas, mas estamos de volta. Não é fácil escrever sobre isto, essa é que é essa, portanto não se admirassem se demorasse ainda mais a continuar... Animem-se que desta vez já estamos mais perto do fim, não era preciso terem reclamado tanto, que diabo. Isto custa. Muito)

Uma semana depois de a diretora do centro de acolhimento onde estava o baby me ter ligado a dizer que enquanto não tivesse o certificado da Santa Casa em como estava apta para adoção não poderia ir mais visitar o menino, o baby foi ao meu hospital. Tinha consulta marcada e uma série de exames para fazer. Eu nem consigo descrever em que estado estava. Tinha voltado a chorar todos os dias, ainda para mais com a agravante de ser julho, o mês em que o meu "quase filho" tinha falecido... Grief is the price to pay for love, ia repetindo, resignada...

Estava no corredor do hospital, completamente absorta na minha dor quando me cruzei com ele. Sabia que vinha, claro, mas não o esperava tão cedo. Vinha acompanhado por duas funcionárias do centro de acolhimento, que não me conheciam. Fiquei radiante por vê-lo, mas ele estava completamente alheado, olhando para o lado e evitando qualquer contacto ocular. Agora percebo, mas na altura não conseguia relacionar todos estes acontecimentos, que ele estava profundamente magoado porque estava a reconhecer o espaço onde tinha vivido e de onde tinha sido levado sem uma única hora de transição, sem entender o que se passava. Magoado com as pessoas que estava a reconhecer e que, na cabeça dele, o tinham abandonado. E confuso por não saber se o traziam para ficar na casa que o abandonara ou se o levariam para a casa de que ainda não gostava, mas a que começava a habituar-se. Estava aterrorizado...

Tentei tirá-lo do carrinho e pegar-lhe ao colo. Estava eufórica porque ele estava ali comigo, mas ele também estava magoado comigo porque deixara de aparecer para o visitar. E pior, estava de bata branca, como todos os da casa maldita que o abandonara! Resistiu à minha tentativa de lhe pegar ao colo. Agarrou-se ao carrinho com todas as suas forças. A amiga que estava comigo ficou tão incomodada com aquele espetáculo angustiante que teve de se ir embora. Resolvi não o forçar. Claramente estava tudo a ser demais para ele.

Perguntei o que se passava às funcionárias.
- Não sabemos, ele hoje está estranho. Não é só consigo. Até vinha bem disposto, mas quando entrou no hospital ficou assim. Até chorou para a médica dele e não quis ir para o colo dela. Eles tinham uma adoração um pelo outro.
- E ela, o que disse?
- Disse que achava que era bom que ele a estivesse a estranhar, que queria dizer que se estava a vincular a outras pessoas.

Mas não, não era nada bom. Ele estava era muito triste porque todos se tinham esquecido dele e para um bebé é impossível elaborar tantas perdas. Tantas mudanças e tantos lutos para fazer, tantas ameaças juntas no mesmo espaço e no mesmo momento.

Demorou muito tempo a reconhecer-me. Tirei a bata. Cantei-lhe as nossas músicas, fiz as nossas brincadeiras. Até que por fim começou a sorrir, mais descontraído. Mas continuava a não olhar para mim nem para ninguém.

Ao final do dia eu já não estava em mim. Grief is the price to pay for love? Não, não me conformava. O meu menino não podia pagar esse preço. Eu podia, mas ele não! Tinha testemunhado o sofrimento do meu menino e percebido que era cada vez mais difícil chamá-lo à realidade e fazê-lo descontrair-se. Ele estava a perder-se "do lado de lá".

Falei com a equipa da Santa Casa, pessoas extraordinárias, disponíveis e incansáveis, que me disseram que não sabiam por que razão a equipa de adoções local me estava a impedir de ir visitar o menino e que não existia qualquer recomendação nesse sentido. Foi então que liguei de novo à diretora do centro de acolhimento. Com a minha voz de quem não aceita um não como resposta. Que não podia ser. Que o menino estava num sofrimento brutal. Que não podia aceitar que as coisas andassem assim até já não haver solução para ele.

Respondeu-me que não podia mesmo ir contra a decisão da equipa local, mas que se o quisesse ir visitar ao jardim de infância ela não seria obrigada a reportar as visitas. Só as que eu fizesse no centro de acolhimento.

Acho que me nasceu uma alma nova! No dia seguinte estava de folga, pelo que me pus a caminho. A educadora estava à minha espera e acolheu-me muito bem. Cheguei na hora da sesta da manhã, mas ele era o primeiro a ser acordado para ter tempo de fazer a medicação toda que ainda tomava antes de almoço.

- Quer ir dar-lhe a medicação e o almoço para a outra sala?
- Claro! - os olhos brilhavam-me.

Comparada com a sala de visitas do centro de acolhimento, despida e tórrida, aquela sala de jardim de infância era o paraíso! Mesmo para sala de berçário era genial! Bem ao estilo Montessori, tinha espelhos ao nível das crianças, uma piscina de bolas, uma tenda, várias bolas de pilates e brinquedos bem arrumados e ao alcance dos meninos. Ele ainda não gatinhava nem se deslocava de qualquer forma, embora já tivesse 14 meses. Mas dessa vez aceitou vir-me para o colo. Continuava a evitar o olhar, mas, surpresa das surpresas, começou a seguir o que eu fazia. A olhar para as fitas que revoluteavam presas a um boneco. Até que começou a seguir o que eu fazia no espelho. E, de repente, ao seguir as fitas que eu agitava mais à altura dos meus olhos, encontrou-se com os meus no espelho. Foi a primeira vez que olhou nos meus olhos! No espelho. E, milagre dos milagres, desprevenido, sorriu-me! Foi um encontro demorado. Dei-lhe o boneco e começou a imitar os meus gestos.

Sentei-me no chão, com ele no meu colo, voltados para o espelho e comecei a cantar uma canção com gestos e ele começou a imitar-me. Como se soubesse imitar desde sempre! Nesse momento a educadora entrou para me levar o almoço dele. Encontrou-nos a fazer gestos e caretas ao espelho e ficou estupefacta.

- Mas ele não imitava! Que milagre foi esse?
- Pois não, nem olhava, mas ao espelho imita e já me olhou nos olhos!
- Que maravilha! O amor faz milagres. Então veja se lhe consegue dar a sopa e a fruta. Ele connosco não come fruta de maneira nenhuma. Pode ser que consigo coma.
- Obrigada.

Ao almoço aconteceu outro milagre. Ele comia a sopa lindamente, desde que não tivesse grumos, mas cerrava a boca para a fruta e não abria mais. Nem com palhaçadas nem com nada que eu fizesse. Até que quando lhe estava a tentar dar a fruta novamente me tocou no braço e apontou para a sopa. Assim como quem diz, "É aquilo que eu quero, será que tenho de explicar tudo?"

Então o meu menino olhava nos olhos, imitava e apontava? Mesmo que por breves instantes. Não podia ter autismo nenhum! Agora sim, tinha a certeza de que estava no caminho certo! Fui falar com a diretora. Estava feliz! Mesmo feliz! Agradeci-lhe muito. E ela também me agradeceu:
- A educadora já me veio dizer! Olhe, mesmo que ele não venha a ser o seu filho, já nos salvou o menino! Já não sabíamos o que lhe fazer...

Claro que isto foram momentos fugazes. Ele não olhava consistentemente. Não voltou a apontar nas semanas seguintes nem a tentar comunicar de maneira nenhuma. Quase a ponto de me fazer duvidar do que tinha visto, mas estava feliz demais para me colocar em causa. Eu estava a travar a maior luta da minha vida. Não tinha espaço interior para duvidar...

No dia seguinte era sexta-feira e eu estava angustiada porque tinha de trabalhar nesse dia e não o poderia ver no fim de semana. Felizmente o menino ficou doente e foi internado no hospital local. Uma bronquiolite e uma otite. Nada de grave, mas decidiram interná-lo por precaução, dados os antecedentes tão graves. Fiquei eufórica. Estava no meu elemento! Ia poder vê-lo todos os dias enquanto estivesse internado. Vesti a bata e fui para o hospital, onde os meus colegas me conheciam e me deixaram ficar todo o tempo. A funcionária que estava com ele e com outra bebé do centro de acolhimento agradeceu-me porque comigo ali poderia ficar mais livre para cuidar da bebé que estava muito mais doente do que ele! Eu é que agradecia, respondi.

Nesses dias o baby parecia que tinha renascido. Olhou-me muitas vezes, começou a tentar deslocar-se sentado, muito inseguro, mas lá avançava uns centímetros de cada vez. Eu sou chata como a potassa e aproveitei cada momento para puxar por ele... Saiu do internamento a seguir tudo com o olhar, a deslocar-se melhor e a rir às gargalhadas.

(continua...)
26
Abr17

[histórias de sempre] 25 de abril

beijo de mulata
25 de Abril
(Lisboa)

[Todos os anos vos brindo com este episódio. Porque todos os anos ele é contado à mesa do almoço. Ora vamos lá a isto mais uma vez. Porque 25 de abril é para sempre. Só que agora se escreve com letra minúscula.]

Era a noite de 24 para 25 de abril, quarta para quinta feira, salvo erro. Corria o ano de 1974. O meu pai, então alferes a cumprir o serviço militar obrigatório e já com ordem para ir para a Guiné, ofereceu-se para ir buscar as armas ao paiol, uma vez que o capitão estava nervoso demais:
- Aqui só se entra com senha e contrassenha! - gritava o guarda do paiol completamente a leste do que se passava...
- Olhe, vai haver um golpe de estado. Vamos derrubar o governo - o meu pai é a calma em pessoa -, portanto, o senhor ou se põe às minhas ordens ou eu tenho de o mandar prender...
- Ah... então faça favor!

O que se passou em seguida... é História!

[Esta peripécia ficou só para a história lá de casa, mas a minha preferida é a do chaimite que ia à frente da coluna militar e parou na avenida porque o sinal estava vermelho... "Porque parou, perguntou o capitão ao condutor?" "Meu capitão, o sinal está vermelho!" Mas nada pode parar uma revolução! O meu instrutor de condução é que ficaria orgulhoso para todo o sempre!]

E agora, se me dão licença, vou ali continuar a contar ao baby-de-mulata o que foi o 25 de abril... ele gosta de histórias com finais felizes. E também de qualquer história que meta tropas e tanques de guerra. Mas também já percebeu que é bom haver liberdade. Um dom absolutamente adquirido...
26
Abr17

[a arte é para os leigos!] glossário de termos musicais

beijo de mulata




Meus caros amigos, poucos saberão que sou uma expert em música. Sobretudo em ópera. E posso prová-lo: assevero-vos que já dormi em quase todas as grandes óperas compostas nos últimos séculos. Umas proporcionaram-me um sono mais profundo do que outras, é certo, mas a admiração profunda é por Wagner. Certa vez, no São Carlos, eu dormia na última fila da plateia ao lado de um senhor que, por sua vez, também dormia. Íamos acordando à vez e virando-nos para o lado contrário e ele, volta e meia, olhava para mim e comentava: "Eles têm mesmo resistência!" E eu, que estava sem palavras, não respondia, mas pensava que aquela ópera, entrecortada por um sono com sonhos, era a metáfora perfeita da vida. O mundo avança enquanto nós vamos na nossa vidinha. Uns são protagonistas, outros, raros, seguem-nos atentamente, outros vão vendo, fazendo interpretações oníricas sobre o que se vai passando. Outros ainda, mais lá para os camarotes e frisas, completamente a leste do paraíso, namoram, dormem, comem, e tudo o que honestamente se possa fazer entre três paredes e um palco acontece...

E posso dizer, mãe babada, que o baby-de-mulata vai pelo mesmo caminho. Não há concerto nenhum em que não adormeça! Epigenética rules!

Posto isto, posso então dizer que a música, tal como a ópera, é para ser entendida e vivida. E que ninguém se atrapalhe!

Como muita gente se queixa que os termos musicais são herméticos e não são imediatamente compreensíveis por amadores resolvi aproveitar este espaço para construir um pequeno glossário que alguns poderão achar completamente básico mas que talvez ajude uma ou outra pessoa a compreender de forma mais esclarecida e assertiva algumas peças musicais.

- A cappella – Vamos tentar sem piano!
- Accellerando – Despachem-se, o maestro saltou uma página!
- Accopiato – Foi copiado!
- Acidente – Foi sem querer…
- Ad libitum – É como virar frangos…
- Adagio ma non troppo – Um iogurte apenas.
- Adagio molto – Um litro de iogurte.
- Afinado – Pelo menos vamos tentar começar na mesma nota…
- Al fine – Do inglês: Tudo bem.
- Allargando – Toquem devagar que o maestro está perdido…
- Appoggiatura – Desculpem, saltou-me um dedo…
- A prima vista – Para quem acredita no amor…
- A solo – No chão.
- A tempo – Mesmo em cima da hora.
- Baixo implícito – Um baixo que se insinua.
- Bocca chiusa – Como em “Tens a boca suja”.
- Bisbigliando – Meter o nariz, bisbilhotar.
- Brioso – Jogador do Académica.
- Brunette – Morena selvagem (valha-me Nossa Senhora do Google se com isto vêm cá parar mais horny bastards).
- Canon – Melhor que uma Sony (não confundir com Maria), mas pior que uma Nikon.
- Coloratura – Um desenho para colorir.
- Contratempo – Percalço, revés.
- Croma – Mais um elemento da caderneta.
- Da capo – Do princípio, mas desta vez sem erros!
- Dissonante – Nunca desafinado, ora essa!
- Flat – Sem ondas, como em “O mar hoje está flat.”
- Forte – Com algum excesso de peso.
- Fortissimo – Obeso.
- Gustoso – Saboroso.
- Harmonia – Quando atinamos com o acorde…
- Homofonia – Como diria o Bispo de Lichinga: “Tá mal!”
- Improvvisando – Não sei muito bem como era…
- Incalzando – “My shoes were killing me…”
- Legato – Herança.
- Mancando – Coxeando.
- Meno mosso – Homens, cantem mais baixo!
- Monofónico – Sem piadinha nenhuma…
- Ouvido absoluto – Sim, tenho a certeza de que foi aquilo que ele tocou!
- Órgão – Parte vital de um músico.
- Parafonia – Como diria o Bispo de Lichinga: “Tá mal!”
- Più mosso – Homens, cantem mais alto!
- Pizzicato – Uma com queijo, sem tomate.
- PochettinoO marido da outra senhora.
- Polifonia – Ou como diria o Bispo de Lichinga: “Tá mal!”
- Precipitando – Está a chover.
- Presto – Como em “Eu não presto”.
- Prima Donna – A Diva.
- Prima volta – A prima já vem.
- Recitativo – Não encontro a música, mas estou à procura…
- Semicroma – Menos croma que a outra…
- Silenzio – Calem-se!
- Simile – Do inglês: Sorriam!
- Síncope – Colapso.
- Soprano – Aquele que sopra…
- Sotto voce – Só vozes, mas muito baixinho…
- Tardo - … mas não falho!
- Tónico – Tudo o que puder ser tomado com Gin.
- Traste – Velhaco, desonesto. Nota do autor: Esta qualificação pode ter gradações subtis, sempre definidas segundo o critério da maestrina, como primeiro traste, segundo traste… Já segundo os critérios das Divas, quanto mais trastes melhor.
- Tremolo – Um pouco nervoso.
- Triângulo – De comum acordo ou, como diria mais uma vez o Bispo de Lichinga…
- Trio – Um a mais!
- Uníssono – Vai ser desta que começamos na mesma nota!
- Variação – Desculpem, enganei-me outra vez…
23
Abr17

[zambézia, uma história de origens] filhos do coração

beijo de mulata


Vistas do Monte Namúli
(Zambézia, Moçambique)

(continuando...)

Reconheceram-se ainda assim. O perfume doscabelos de Gigi era ainda o perfume delicado do céu e das flores do frangipani.E a barba de Trovão guardava o cheiro a terra molhada e a raiz deembondeiro. Reconheceram-se e amaram-se, como se tinham amado desde sempre. Masa criação divina estava ainda no seu início, e os métodos de gerar vidaeram ainda mais que imperfeitos. Os olhos de Gigi a cada dia transbordavam deum mar maior, e os olhos quentes de Trovão iam arrefecendo o desejo decriar filhos com olhos de céu e cabelos de embondeiro.

Procuraram em vão quemlhes revelasse os segredos dos antepassados, mas gerar vida está só nas mãos deMuluku, era a resposta invariável.

Foi então que decidiram aventurar-se a tornar asubir o Monte Namúli. Mas o monte onde outrora corriam felizese despreocupados era agora o grande tabu da criação. Dizia-se que nenhumadulto deveria subir ao monte de onde viera o primeiro homem, sob pena desucumbir ao mais pérfido desejo telúrico. Mas já só isso lhes faziasentido, para desfazer a tristeza e a maldição em que viviam. Não temiam nuncamais encontrar o caminho de volta porque já só tinham um caminho. E era um caminho só de ida… Tinhamde ir devolver ao embondeiro as raízes que secavam o ventre de Gigi.

E, numamadrugada, ainda cobertos de bruma e cinza, prostraram-se pedindo a Mulukuque os protegesse e perdoasse na subida. O peito pulava-lhes na ânsia dointerdito, num misto de medo e desejo, quando iniciaram a viagem... Mas amontanha parecia chamá-los. Os espinhos encolhiam à sua passagem, as bagasamadureciam, plenas de néctares açucarados e as folhas pareciamcantar: "Não temam, pois tudo recomeça." Nunca o Namúli lhes pareceratão convidativo, tão quente e húmido de vida.

Chegaram, por fim, ao cimo da montanha. Os olhosde Gigi iluminaram-se de bons presságios quando viu que, da gruta revestida araiz de embondeiro, jorrava agora uma nascente de águas mornas. Os olhos deTrovão prenderam-se num frangipani, cujas flores caíam,delicadas sobre a nascente, perfumando o ar com o cheiro da sua doce mulher.Sonhava por instantes, acordado, que Gigi estava em toda a parte, dissolvida epulverizada por todo o céu da montanha, quando um grito o fez despertar daqueledeslumbramento.

Gigi gritava, toda ela assombro e abismo, que aquela nascenteera de água salgada! Assistiram então, aturdidos, ao derradeiro jorro de água,que secou a nascente, mar de súbito vazio, deixando em redor um manto desangue vivo. E depois de um momento, onde coube toda a dor, medo e desesperançado mundo, ouviu-se, de dentro da gruta, um gemido. Seguido da gargalhadainconfundível de uma criança. Precipitaram-se para dentro da gruta. Ao fundo,ainda coberta de sangue e raízes, uma criança com olhos de céu, cabelos deembondeiro e perfume de frangipani. Era uma menina. Uma menina linda e, espantodos espantos, já com dentes de leite. Os mesmos dentes de leite de seus pais. Etrazia dentro dela uma semente de embondeiro, sinal de que Muluku aperfeiçoara a criação e que não queria que os seus netostivessem de passar por todo aquele sofrimento para gerar vida. Felizes,agradeceram a Muluku.

Mas Muluku avisou-os: Não vos esqueceis deque, a partir de hoje, toda a criação e futuro provirá desta criança, decabelos perfumados e olhos de céu e de mar, mas lembrai-a sempre de honrar aseus pais, que tanto sofreram por terem filhos de sementes plantadas fora docorpo. Porque toda a criança é desejada e filha do coração.
21
Abr17

[hoje foi o dia!] zambézia, uma história de encantar

beijo de mulata







O Monte Namúli
(Zambézia, Moçambique)
Fotos: Algumas são minhas, outras daqui.


AsFlores de Frangipani

Há muitos, muitos anos, a Zambézia era uma terraselvagem, quente de origens, onde nasciam fontes de águas mornas e perfumadas,onde a terra era tão fértil que as mais pequenas sementes podiam dar frutos eas montanhas se cobriam de um véu glaucomatoso todas as manhãs. Para que océu só se mostrasse depois de todos estarem bem acordados para opoderem contemplar... Numa dessas montanhas, a que haveria de se chamarNamúli, o primeiro homem surgiu na bruma de uma madrugada,coberto de capim e de folhas, germinado nas raízes mornas de umembondeiro. E, depois de um urro de alvoradas, que só não faz parte dahistória porque ainda não estava lá mais ninguém para ouvir, olhou comespanto aquele céu de paraíso, agradeceu a Muluku, Deus dosantepassados, e desceu avidamente em direção à planície, começando aespalhar a sua semente pelo mundo.

Nessa terra verde, no coração de África, ainda acriação divina não estava completa, nasceu anos depois, um menino de olhosnegros como a terra mais fértil, e cabelo crespo, como os irreverentes ramos deum embondeiro. Era um menino com o coração doce e a cabeça cheia de aventuras,a quem chamaram Trovão. A sua companheira de infância era uma menina terna, deolhos azuis, transbordantes de futuros, e cabelos perfumados, cujo nomeseria Rosa, se nessa terra existissem rosas ou alguém já tivesse sonhado com floresdelicadas. Por isso lhe deram o nome das flores mais doces das árvores maisaltas, porque o seu perfume só poderia vir do céu. O seu nome era Frangipani,mas todos lhe chamavam Gigi, como o som do seu sorriso.

Gigi e Trovão corriam felizes pelas montanhas,trepavam ao cume do monte Namúli, comiam as bagas mais doces dos arbustosespinhosos e construíam, entre segredos e gargalhadas, pequenas cabanas depaus e de folhas, onde mal cabiam deitados e entrelaçados um no outro. Era láque se deixavam ficar em silêncio, na hora do calor, contemplando o céu pelaabertura no teto que Gigi queria manter descoberta a todo o custo, paraque o céu não lhe fugisse dos olhos e para sentir, nos dias de chuva, o sabor redondodo sol. Por vezes, nos dias em que o calor se demorava e a terra estavamais húmida e fértil, o próprio chão se entranhava entre os dois e criavaraízes, como pontes entre um e outro. E era quase difícil despegarem-se,vestidos da mesma pele.

Os meninos foram crescendo, os dentes de leiteforam caindo e eles enterravam-nos no chão da cabana, onde, pouco a pouco, sefoi formando uma gruta, revestida a raiz de embondeiro. Mas, à medida que os meninos cresciam,aqueles momentos de silêncio e cumplicidade foram-se tornando cada vez maisraros. Já todos sabemos, mas eles não tinham quem lhes dissesse, e só depoispoderiam vir a descobrir, que na infância, a dada altura, há uma magia quese quebra, uma gargalhada que se suspende, toda uma vida que se tornamemória... E no dia em que enterraram o último dente de leite, cada um seguiu oseu caminho, porque desde que o mundo é mundo, para crescer é precisoafastar-se da casa onde que se cresceu... Para se poder amadurecere depois poder amar e querer gerar vida...

Gigi e Trovão desceram do Monte Namúli ecresceram em direções opostas, até que um dia, na planície se reencontraram.Ele tornara-se um homem enorme, com a face e o peito cobertos de pelos, dasraízes do embondeiro que se lhe entranharam na pele nas longas tardes da suainfância. Os olhos quentes continuavam doces e cheios de aventuras. Gigicrescera para se tornar numa mulher linda, mas os olhos, outrora de céu, eramagora olhos azuis de mar. As raízes do embondeiro cresciam no seu ventre,secando-o por dentro. E o mar, que sonhava que um dia lhe cresceria no ventre,para depois jorrar vida, só nos olhos lhe crescia todos os dias. E delestransbordava todas as noites. Nos seus olhos já não se viam futuros por causa daquelemar morto no seu ventre, onde só existia sangue e lodo…


(continua...)
20
Abr17

[momentos para sempre] um dia deixo de escrever histórias clínicas...

beijo de mulata
... e escrevo uma história de encantar... Amanhã será o dia!

 Houve tempos em que a viagem dos meus sonhos era ir até às plantações de chá do Gurué, perto das margens do rio Zambeze.
Um dia hei-de voltar... com o baby-de-mulata e Mr. Shaka e os que mais vierem!
(Gurué, Zambézia)

Como pano de fundo, o verde arrebatador e o mito da origem do primeiro homem ali mesmo, nas nascentes do Monte Namúli. Segundo a lenda macua-lomué, foi precisamente nesta montanha que a humanidade teve origem, e o primeiro homem terá surgido numa madrugada, germinado nas raízes de um embondeiro e, depois de beber das águas perfumadas das montanhas*, desceu calmamente em direção à planície e começou a espalhar a sua semente pelo mundo.

Hoje em dia, o Monte Namúli está envolto em mitos e tabus... Diz-se que só se pode subir depois de uma cerimónia longa e difícil levada a cabo por um régulo e com permissão dos antepassados, depois de rezas, oferendas e respeitos. Segundo o mito, e à maneira deliciosamente macua, o guardião do Monte Namúli começa a falar com os viajantes incautos de tal forma rápido que estes se baralham e nunca mais conseguem encontrar o caminho para casa...

(Adenda, por respeito à Prof. Doutora Ruiva, amiga deste mato: gostava que existisse um mito de origem da primeira mulher, mas suspeito que o primeiro homem macua se teve de desenrascar sozinho...)


*Que séculos depois alguém venderia sob a designação comercial genericamente inflacionista de águas gourmet
19
Abr17

[he was the forerunner] para bens atrasados!

beijo de mulata


O Senhor Mandará os Seus Anjos

Ontem fizeste anos... A passagem do tempo é tão neuroticamente precisa que os aniversários calham sempre em dias certos. Eu é que sou tudo menos neurótica. Mas hoje quero agradecer-te por teres nascido, e por me teres preparado os caminhos que percorri. E por me lembrares por vezes de que, em tempos, também já consegui acreditar em seis coisas impossíveis antes do pequeno-almoço.

Deixo-te uma pérola musical do meu primo João Andrade Nunes, de que tenho a certeza que vais gostar! Para bens! Por tudo, tudo! Que a fruta te esteja sempre madura no verão e que Aloysius nunca fique insuportável...
17
Abr17

[serviço público beijo-de-mulata] sarampo, o que todos podemos fazer?

beijo de mulata
Este blogue raramente faz serviço público (exceto, pronto, daquela vez em que vos ensinei a ajudar a dar à luz numa bomba de gasolina e pouco mais). Mas hoje estou fora de mim! Um surto de sarampo, valha-me Santa Rita de Cássia?! Têm-me ligado diariamente. Sobretudo os pais dos bebés com menos de 12 meses. O que podemos fazer relativamente ao surto de sarampo? Há alguma medida a tomar? Podemos fazer algum tipo de vacina?

Os pais que têm os filhos no jardim de infância têm especial razão em estarem preocupados. E se considerarmos que a primeira dose aos 12 meses pode não ser eficaz (ou seja, a dose dos 5-6 anos não é um "reforço", mas uma segunda oportunidade de vacinação), em cada jardim de infância há dezenas de crianças suscetíveis. Assim, a única maneira de conter um surto é aumentar a imunidade de grupo.

O mais importante é sensibilizar os pais de que a vacina é para ser dada aos 12 meses. Mesmo aos 12. Não adiar para os 13 porque o menino está constipado/ teve uma bronquiolite na semana passada/ anda a comer mal/ ainda não introduziu o ovo na alimentação*. E neste ponto as nossas equipas de enfermagem fazem muitas vezes o movimento contrário: "O menino está adoentado, volte cá para a semana". A bebé de 13 meses que teve sarampo há poucos dias pode bem ter sido um caso desses. Cabe aos pais responder: "Para a semana não posso, tem de ser hoje!" E que a vacina dos 5-6 é para ser dada mesmo aos 5 anos. Acabadinhos de fazer.

Outra coisa é pedir aos pais e todos os familiares, empregadas domesticas, babás, etc, para reverem o seu próprio boletim de vacinas. Procurar as doses da VASPR (ou VAS para os nascidos antes do final dos anos 80).

A outra coisa que se pode fazer (eu própria já escrevi à diretora do Colégio do meu filho) é pedir a todas as pessoas com responsabilidade na contratação de funcionários ou na sua saúde ocupacional que revejam o estado vacinal dos seus colaboradores. Geralmente na contratação é pedido o boletim de vacinas, mas a principal preocupação é a vacina anti-tetânica. E bem. Geralmente é a que está desatualizada. Mas será que viram com o mesmo cuidado a vacina contra o sarampo? Nunca é demais confirmar.

E é isto. A ver se a coisa passa.

* Há dois meses tive de me zangar com uma enfermeira que se recusava a dar a vacina a uma bebé de 9 meses que ia para Angola porque a menina ainda não tinha introduzido o ovo. Por sorte a mãe ligou-me e disse à enfermeira que se queria ir contra as orientações da DGS que escrevesse e assinasse com letra bem legível que eu ia tomar as providências necessarias! Há muito que não me acontecia tal coisa, mas nunca é demais avisar os pais das falsas contraindicações da vacina.
16
Abr17

[iapala revisitada] as flores do frangipani

beijo de mulata

Esta é a flor do frangipani, uma árvore de xicuembos* e xipocos**, a árvore dos deuses e dos antepassados, de flores românticas e perfumes noturnos... O frangipani tem as flores das manhãs claras, que vêm enfeitar os cabelos das jovens, das noivas, das virgens e os adros das igrejas nos dias felizes.
(Iapala, Nampula)

Como diria o meu amigo Lépido, nós não temos estilos, temos momentos... E eu também tenho direito a dias pirosos! Pronto, era só isto. Aqui no mato-que-já-não-é-mato não temos livro de reclamações. Nem mesmo o Sr. Pompisk, o maior comerciante da Zambézia tinha tal modernice! Para ele, se nos estiver a ouvir, aquele abraço. Tenham um bom dia e que a Páscoa  (ou a Primavera, o que vos disser mais) vos renove.

* Deuses
** Fantasmas

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