- O menino tem sido saudável? - Não, Doutora, o meu filho está a ser seguido na consulta de Dermatologia dos Cachuchos porque tem uma dermosite. - Uma dermatite? - Isso, um "equizema", doutora. Mas já me disseram que para estas coisas o melhor é o Hospital do Rego e não os Cachuchos. - São os dois muito bons, não tem de se preocupar. - Ai preocupo sim, doutora, que há uns anos o meu marido fez um "clister ao pato" nos Cachuchos, que lhe custou muito a fazer, e nem sequer ficou bem feito, e afinal no hospital Polivalente faziam lá clisteres com "sedução". Por isso é que fiquei sempre de pé atrás com os Cachuchos. - Mas é um bom sítio para tratar o menino, esteja descansada!
No outro dia, na consulta, vi um menino com quatro anos, um talibanzinho de primeira água, que vinha por atraso de desenvolvimento da linguagem.
A mãe tinha um primeiro impacto absolutamente desconcertante. Metade do cabelo rapado e a outra metade curta e espetada, pintada de loiro, com dois piercings por cada prega facial, o olhar pueril e espantado de quem tenta não olhar para si própria para não ver o corpo de mulher, as marcas da maternidade, nem as finas rugas em torno dos olhos, por culpa dos anos que lhe arranhavam o rosto e lhe roubavam o olhar de menina. Porque, intimamente, a adolescência ainda não estava resolvida.
Era uma mãe eternamente espantada por aquele menino lhe chamar mãe, por aquele menino que lhe chamava mãe se comportar como um terrorista e não lhe obedecer prontamente como ser racional que deveria ser, por aquele menino não ser o companheiro de brincadeiras que idealizara. Todos os dias surpreendida por ser chamada de mãe. Por ser chamada à razão por um ser de quatro anos que lhe começava a ensinar que as crianças precisam de regras e limites, prémios e castigos tanto quanto do amor que sempre se dispusera a dar-lhe. E lhe dava todos os dias, apesar de todas as patifarias que lhe aprontava. A começar pelo facto de ter aparecido dentro dela sem aviso e sem planeamento prévio.
Passado o primeiro impacto, aquela mãe era um amor, bem disposta, muito afetuosa, numa relação de quase fusão com o menino, simbiótica, como são as relações de muitas mães que, por força das circunstâncias, ficaram frágeis e sozinhas a cuidar dos filhos. E esta mãe tinha ficado sozinha por sido vítima de violência doméstica, uma situação muito grave e muito prolongada.
Passado o primeiro impacto, esta mãe é mais uma das minhas heroínas.
À pergunta: "Tem alguém na família com doença psiquiátrica?", o novelo emaranhado que é a história deste menino desenrola-se à minha frente. Uma história de violência que já começara duas gerações antes:
- Bem, doutora, alguém na família com doença psiquiátrica... O pai também conta? - Claro! - Era toxicodependente, alcoólico e de vez em quando tinha explosões de fúria em que destruía tudo o que lhe aparecia à frente, e era violento para as pessoas de quem gostava. - E o menino assistiu a essas cenas? - Não, a violência física nunca assistiu propriamente, mas ouviu muitas discussões e tive momentos de me barricar com ele no quarto, com o pai aos pontapés à porta. - Bem, mas então sentiu a sua tensão, a sua angústia... - Sim, é verdade, viu-me chorar muitas vezes, viu-me desmoronar, ouviu discussões. - E quais eram os principais motivos de discussão? - Ciúmes. Ciúmes horríveis. Delirava com todos os homens que se aproximassem de mim menos de 20 metros. - Mas, daquilo que se apercebeu, era uma pessoa que estivesse sempre dentro da realidade? Ou tinha ideias delirantes assim que não fizessem sentido ou pensamentos bizarros? - Não, era uma pessoa que estava na realidade. Quer dizer... Se "metesse um ácido" é claro que saía da realidade, nas era só nessas circunstâncias. - [Valha-me Nossa Senhora das Substâncias de Abuso!] Ok, já percebi...
Contou-me que nos últimos tempos, antes de ser obrigada a fugir com o filho, levando apenas a roupa que tinha vestida, andava sempre com uma bolsa dentro da roupa, encostada ao peito, com os documentos dela e do filho e dinheiro para as passagens de avião para Lisboa, para o caso de ser obrigada a fugir de repente.
A mãe ia falando do nascimento do menino, do pai que a controlava constantemente, revia-lhe todas as mensagens no telemóvel, lia todos os mails, toda a correspondência, ia busca-la ao trabalho, aparecia de surpresa sob qualquer pretexto. Seguia-lhe os passos ao minuto!
Ela e o filho escaparam com vida, com mais sorte que habitualmente, porque após a fuga não foram perseguidos nem tiveram ameaças por parte do pai. Mas as sequelas eram visíveis, na fragilidade da mãe e no comportamento disruptivo do menino. Não parava, não falava, não tinha um jogo construtivo ou organizado, piorava a olhos vistos se a mãe se afastasse ou mesmo se voltasse costas. E se lhe mandassem fazer o que quer que fosse, chorava, ficava aflito, tudo lhe doía, amuava, gritava.
Ai, valesse-me Nossa Senhora dos Aflitos. Como é que eu ia conseguir explicar àquela mãe que o menino precisava mesmo de regras e de pulso forte, porque o problema não era genético, como ela alvitrava e assumira desde o princípio: "Ele sai ao pai, doutora! O pai era igual em criança.".
- Não, mãe! O que ele sofre é de falta de fé! - Falta de fé?! Como assim, falta de fé?
- A sua falta de fé nele e nas suas capacidades de se fazer obedecer como mãe. Ele não tem problema nenhum. Vai falar quando conseguir sair desta agitação tão grave. E para isso tem de ser firme com ele para lhe dar segurança sobre o que pode ou não pode fazer. - Mas ele não me obedece em nada! - Mas vai obedecer! Vamos fazer um plano, ok.
Entretanto uma colega minha afadigava-se em volta dele para o fazer sentar e começar a pegar nos lápis para um desenho.
- Queres desenhar a tua família, Rodrigo? - Tim, 'tá bem! - Então vá, podes escolher as cores.
Em três segundos o desenho estava acabado e o menino novamente aos saltos pelo gabinete de consulta.
- Então, Rodrigo, a tua família já está? - perguntei, meio zangada. - Tim, tá.
- Rodrigo - chamou a mãe, suavemente -, só vejo ali três bolas. O que é aquilo? - Tou eu, a mãe e a vó [esta eu percebi: "Sou eu, a mãe e a avó."]
- Não são, não, Rodrigo, são só três bolas. - Não - respondeu o Rodrigo, como se nada fosse -, tomo tó de tima da tonte.
A mãe desatou a rir e traduziu: - Somos nós de cima da ponte. É como se estivéssemos representados em perspetiva! Este miúdo não existe! Tem resposta para tudo e é preguiçoso como o caraças, Doutora! Sai ao pai, é o que eu digo, a doutora não me acredita. - Não torne a vir com essa conversa, o que ele tem é que não se concentra dois segundos! E a mãe tem de ouvir o que eu tenho para lhe dizer ou ele não vai melhorar.
[Voltei a vê-lo há duas semanas. Não parecia o mesmo! E já falava muito melhor.]
Há dias, eu brincava animadamente com o baby-de-mulata pelo corredor acima, com ele montado numa capulana colorida, com animais estampados. Era "o táxi da nossa rua". "Para onde deseja ir, senhor baby-de-mulata?" "Pa'a o ja'dim da est'ela!" "E´ para já, senhor!"
Às tantas, baby-de-mulata apanhou novamente o táxi para voltar para casa: "Para onde deseja ir agora, senhor baby?" "Para a minha casa!"
Nisto fiz-me de parva para ver se ele sabia o caminho de memória. "E como se vai para lá, senhor baby?" "Vamos pela rua que sobe, mãe." "Mas como, baby, viramos à esquerda ou à direita?" "P'imei'o é à esque'da e depois sobe." "Mas como, baby, antes ou depois dos sinais?"
Nisto vejo o meu filho a dar o seu primeiro suspiro com cara de d'ah... Um revirar de olhos para cima. Uma cara de "não vale a pena, desisto":
- Mãe, pa'a ir pa'a casa é p'eciso um táxi a sé'io.
Ontem, na urgência, perto da meia-noite, chamei um Francisco de 4 anos. Segundos depois, pelo gabinete entrava-me um piratinha envergonhado, com a cara meio escondida no regaço da mãe, quase imóvel, com um dos ouvidos colado ao seu peito quente. Saltava aos olhos que tinha uma otite à direita. Estava o diagnóstico quase feito só pela posição do menino.
- Boa noite, então o que se passa com o seu príncipe? - O Francisco estava a dormir e acordou há cerca de meia hora cheio de dores de ouvidos. - Já lhe deu alguma coisa para as dores? - Sim, dei-lhe Brufen assim que se queixou. - Então já deve estar a fazer efeito. Meu querido, boa noite, vamos ver o teu dói-dói?
Desencostou-se da mãe a medo, mas rapidamente percebeu que já não estava a doer tanto, e animou-se ao perceber que tinha o Faísca no ouvido e o Jake na garganta.
- Doutora, estamos preocupados porque daqui a quatro dias vamos viajar... Será que vai ter problemas no avião? - É capaz, sim, as diferenças de pressão são difíceis de suportar. Tem mesmo de ir? - Sim, doutora, já está tudo marcado. Temos o casamento da minha irmã e ele é o menino das alianças. - Bem, então não pode faltar. Temos de começar já o antibiótico e já lhe vou explicar os cuidados a ter... Tu vais para onde, meu amor? - Vou pa'a a terra de onde vem o sal - respondeu com os olhos a brilhar! A mãe fez uma cara de espanto... - Ai sim, vais para o Sal? Em Cabo Verde? - Não, vou pa'a a terra de onde vem o sal! - Ah, e de onde é que vem o sal? - Vem do salmão! - Ah, estou a ver! Então vais para a terra do salmão?
- Sim, doutora, vamos para a Noruega. Francisco, que ideia é essa? Deves estar a delirar... - Lindo! Deixe estar, mãe, deixe-o fantasiar! Só prova que pensa nas coisas e que tem consciência dos sons das palavras.
[Que delícia de interpretação! Vai longe, este miúdo! E o que se perde em propriedade vocabular ganha-se em fantasia e consciência fonológica. Um excelente prognóstico quanto à capacidade de aprender a ler!]
"Eu não tenho uma conta no facebook, não tenho uma conta de Twitter nem do Instagram. Por isso vou pela rua e de vez em quando anuncio bem alto o que comi, o que estive a fazer e como é que as coisas vão lá em casa. Esta semana consegui três novos seguidores: dois polícias e um médico."