Há tempos, na consulta de Desenvolvimento, a terapeuta da fala que faz parte da minha equipa, uma mulher de armas, com uma experiência enciclopédica, veio ter comigo para me entregar o relatório da avaliação da linguagem de uma menina que me é particularmente querida (é ao facto de ela ter tido uma intercorrência grave que devo a circunstância de ter conhecido o
baby-de-mulata, que na altura estava internado na mesma enfermaria!).
Esta princesa tem um défice cognitivo e uma síndrome genética com implicações graves no desenvolvimento. Por isso eu ansiava especialmente pelo relatório da terapeuta da fala. "Perturbação do desenvolvimento da linguagem de tipo misto muito grave", era a conclusão. Mas a terapeuta animou-me:
- Apesar das dificuldades dela, ela é uma menina com potencial. E é esperta, não concorda? O que é que acha dela?
- Sim, concordo, ela não tem um défice cognitivo por aí além. E consegue aprender.
- Exato! Aprende, compreende e até se explica. Não como nós queríamos, mas como pode. A família é que também não ajuda, que todos falam crioulo lá em casa entre si, e falam Português com a menina. Para além de que não há muita cultura de falar com as crianças, cantar-lhes ou contar histórias.
- Mas acha que ela tem potencial para recuperar se começar a fazer terapia da fala?
- Sim. Em primeiro lugar porque ela repete tudo o que nós dizemos, portanto logo ali tem um "instrumento de trabalho". E depois... olhe, quer um exemplo? Eu estava a pedir-lhe para nomear objetos em imagens, mas às tantas ela estava com muita dificuldade em dizer "meia". Nisto, a mãe salta lá da cadeira dela e começa a resmungar com a menina: "Então, filha, tu sabes o que é, diz lá "meia", "peúga". Mas eu mandei-a sentar-se novamente e não intervir. Já não podia cotar a resposta mesmo que ela respondesse, mas de qualquer modo, por curiosidade insisti. Mostrei-lhe uma meia verdadeira e perguntei-lhe: "Como se chama isto?" E ela nada. "Como se chama isto, linda, onde é que se põe?"
- E então?
- E então ela ficou um bom bocado parada a olhar para a meia, mas estava com "aquele olhar" de quem está a processar informação. Dali a pouco voltei a perguntar: "Como se chama isto?" E ela respondeu: "Chulé!".
- Lindo! Muito bom! - não consegui evitar uma gargalhada.
- Pois, foi o que eu achei! Ela tem potencial. Acho que com jeitinho ela vai lá!
* Timbre da voz das crianças antes da puberdade.