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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

09
Out13

[cantar para as crianças] parentalidade em moçambique

beijo de mulata
 
Um menino depois de recuperar um pouco da desnutrição.
(Iapala, Nampula)

Ainda sobre a história do Dino... (Vá lá, está ali dois posts abaixo, não sejam preguiçosos, é mesmo preciso pôr o link? Enfim, mas já está posto, que há sempre alguém que reclama e eu sou mais que vossa mãe. Assim como assim, quem faz tudo nesta casa sou eu...)

Agora que vos contei a história, lembro-me melhor daquela mãe e dos gritos inconsoláveis daquele menino. É curiosa a tolerância que a mãe desenvolveu para com os guinchos que pareciam incomodar toda a gente menos a ela. Curiosa para dizer o mínimo. Quase tenebrosa, agora que penso nisso. A minha convicção profunda é que não nos devemos acomodar ao choro das crianças. Devemos evitá-lo ou fazê-lo parar. Ou tomar uma atitude. Não fingir que não ouvimos. Ou pior: não ouvir mesmo.

Uma vez, quando já vinha recuperando peso há algum tempo e já nos parecia mais neste mundo, durante uma birra em que ele chorava particularmente alto, perguntei à mãe o que fazia para o consolar, ao que ela me respondeu: "Nada, ele não para de chorar com nada." "Mas como é que ele reage se lhe contar uma história ou se cantar para ele?" "Não sei, nunca cantei...", foi a resposta que acho que eliminei da minha mente até agora. Ela parecia que estava a ouvir um extraterrestre. Que coisa mais nonsense! Era como se eu lhe estivesse a perguntar se o menino reagia bem às equações de segundo grau ou se gostava de funções logarítmicas. Então o menino ainda quase nem falava, como raio haveria de perceber uma história ou aprender uma canção?

"Mas então, ninguém canta para os filhos?", perguntei às mães da enfermaria. Algumas, poucas, cantavam. Quase nenhumas. Mas... mas... como faziam para acalmar os meninos? "Ora, doutora, pomos os meninos no colo [às costas na capulana] e eles calam!"

Na altura não me ocorreu que a geração que atualmente é mãe e pai das crianças de Moçambique é a geração de cresceu durante a guerra civil. É uma geração que não tem memória de ser consolada quando chorava. E não tem memória por uma razão simples: não o era. Ouvi os relatos de muita gente de todas as vezes que fui a Moçambique. Muitas pessoas não querem falar sobre os anos negros da guerra. Mas algumas falam, precisam de falar, e as recordações são completamente sobreponíveis.

As memórias de infância de quem cresceu no mato são de fome, terror e abandono. São de não se poder dormir dentro de casa sob um teto, por mais humilde que fosse. São as recordações de os irmãos mais velhos lhes taparem a boca quando choravam, para não serem ouvidos no escuro. São de dormir ao relento, à chuva e ao frio, cheios de medo de serem atacados pelos "bandidos armados". São as memórias da frase mais proferida: "Chiu! Está no mato! Não sabe que não pode chorar?" São as memórias dos escorpiões e das cobras venenosas que muitas vezes se aninhavam debaixo das esteiras das famílias, procurando o calor humano durante a noite. E o horror que era, de manhã, descobrir que tinham partilhado o leito com seres repelentes e perigosos, alguns mortíferos. Felizmente quase nunca mordiam. Parecia que os humanos nessa altura faziam parte da paisagem e não os incomodavam.

Recordo o quanto me chocou que as mães não tivessem as mais parcas noções de puericultura. Expliquei que era muito importante estimular as crianças, interagir com elas, falar para elas, brincar. Não sabiam disso? Muitas não sabiam.

Podem dizer, meus amigos, que não é preciso. Que as crianças ensinam os pais a serem pais. O meu baby-de-mulata, por exemplo, ensina-me todos os dias. Exige músicas, danças, inventa diálogos estapafúrdios, brinca com as palavras. Diz-me aquilo que gosta, exige que brinque, provoca-me, não me deixa afastar-me. Mas o meu baby é um menino fácil. É daqueles que está quase sempre bem-disposto, daqueles que quando não se levanta a rir e a cantar já sabemos que lá vem doença da grossa, daqueles que quase podemos dizer que se criaria sozinho com a mãe menos apta e mais básica, desde que minimamente sensível.

Mas o que dizer dos meninos difíceis? Dos que choram a toda a hora e só apetece que estejam calados um minuto? Que dizer dos que demoram a aquecer e que temos de nos esforçar muito para que interajam? Dos que parecem estar sempre só mais ou menos, nem carne nem peixe, e que aparentam ficar bem se não tiverem ninguém com eles? Para esses, que são largamente mais de metade, é preciso algumas noções de puericultura. E disponibilidade. E esforço! São estes que se deprimem. São estes que as mães deixam de ouvir chorar porque estão sempre a gritar. Ou então são os que não choram. Em suma, são estes que se deixam abandonar. São estes que se deixam desnutrir. E portanto são estas mães que temos de formar! E temos de cuidar destes meninos!

Cada vez mais me convenço que a fome e desnutrição é um problema muito mais abrangente e que não passa só por haver ou não haver comida. E que o desenvolvimento de um país só pode acontecer quando as crianças forem bem tratadas. Quantas gerações serão precisas mais para criar bem uma criança?

Por isso acredito cada vez mais nos projetos das Irmãs que conheço, que criaram jardins infantis, que são portos de abrigo para crianças de famílias analfabetas, crianças com falta de estímulo, crianças com doenças e desnutrição, inseridas em meios culturais pobres. Só pode ser este o caminho!
07
Out13

[marasmo] autismo e depressão...

beijo de mulata
 
As crianças desnutridas na varanda da enfermaria de Pediatria.
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Mas a minha amiga Fátima não me deixou parar. "Estas mulheres dizem isto porque não têm filhos desnutridos, se não nunca iam desistir também!" Decidi continuar para não desiludir a minha amiga, mas eu própria estava vacilante.

Felizmente, no dia seguinte o menino recuperou o peso que perdera e não voltou a vomitar com a sonda nasogástrica. Já não sei dizer quantos dias depois começou a aceitar a solução nutricional pela colher e a aumentar de peso. As feridas começavam finalmente a sarar. Mas continuava a guinchar à nossa aproximação, a não se interessar pelos brinquedos com que o tentávamos estimular, a não olhar para o que a mãe lhe mostrava, a não comunicar de forma nenhuma. Agora que recuperava um pouco o peso e tinha mais energia, fazia uns movimentos bizarros com as mãos que se assemelhavam a estereotipias. O Dino tinha uma perturbação do espetro do autismo, concluímos. Fora por isso que a introdução da alimentação tinha sido tão difícil e que tudo o que se seguiu fora uma batalha terrível... Mas a mãe estava feliz e agradecida! Já tinha tido o seu milagre! O filho era assim difícil, mas estava vivo e a salvo, era tudo o que ela queria. Aceitava-o incondicionalmente, tal como ele era.

Entrava por fim em velocidade de cruzeiro na recuperação do peso e era uma questão de dias ou semanas até ter alta. Passaram-se mais uns dias sem que o víssemos com muita atenção. A mãe também aproveitou para ir um fim-de-semana a casa com o filho. Lembro-me vagamente de nessa altura ela me confidenciar tristemente: "Sabe, doutora, o meu filho quando era mais menino sorria muito..." Um murro no estômago... Não soube o que dizer naquele momento. Pus-lhe a mão nas costas e penso que ainda disse qualquer coisa como: "Força!" ou algo que o valha.

Acho que foi por isso que me surpreendi tanto quando, uma semana depois, o vi chegar a sorrir para mim, a andar pelo seu pé e a brincar com um brinquedo que eu lhe dera semanas antes! Onde estava o menino apático a quem tínhamos diagnosticado autismo? O que acontecera? "Nada!", dizia a mãe a sorrir, "Foi de repente. Num dia estava apático, no dia seguinte começou a olhar para as coisas que lhe mostrava, começou a sorrir, a falar um pouco. E ontem voltou a andar!" E a mãe já descobrira o que lhe tinha provocado a doença. Ela sempre suspeitara: fora o pão! Em casa tinha-lhe dado pão e ele vomitara, queixara-se da barriga e a diarreia regressara. Por isso cortara totalmente com o pão. Dentro de casa dela não voltaria a haver esse alimento, afirmava!

O pão?! Ai, valha-me Deus! Uma doença celíaca? O que acham vocês, meus colegas médicos? Eu não sei. Não posso ter a certeza, que não lhe fiz mais exames nenhuns. Mas finalmente tudo fazia sentido. Na introdução precoce dos alimentos, o Dino, miúdo difícil e obstinado, dera conta que algum alimento lhe fazia doer a barriga e preferiu não comer nada. Nem mesmo leite materno. Começou por ser uma defesa. O único alimento em que "confiava" era no milho e, por isso, restringiu a sua alimentação a este cereal. Durante uns tempos a situação manteve-se estável. O milho tem proteínas e conseguia dar-lhe as calorias necessárias para se sustentar. Mas falta-lhe um aminoácido essencial. Mesmo com o feijão, que comia ocasionalmente, não foi suficiente para manter aquele equilíbrio precário. Daí às lesões na pele e à regressão do desenvolvimento foi um pequeno passo, que uma doença febril acabou por atirar pelo precipício, levando ao marasmo grave que o fizera ser admitido no hospital.

E podia continuar a discorrer por aqui afora, falar de nutrição infantil, de aminoácidos essenciais, vitaminas, dos riscos da alimentação à base de milho, tão frequente na cultura macua, mas não foi para isso que escrevi este post. Só te queria dizer, Maria, que sei bem o que sentes quando falas de fome e desnutrição. Mais, que sei que uma criança desnutrida não sorri, não brinca, às vezes nem responde aos nossos esforços mais persistentes e ou às macacadas mais improváveis.

E pior, muito pior: há dias em que acreditamos na expressão de desalento das crianças. E quando uma criança deixa de sorrir é como se o futuro deixasse de fazer sentido. Ficamos sem chão.

É nessas alturas que tens de te lembrar de respirar fundo, princesa, e recordar as razões pelas quais em África se vive um dia de cada vez: é que com a fome nunca há batalhas ganhas. A guerra recomeça todos os dias.

Mas como dizia a minha amiga, nestas coisas não podemos querer 100%. Não vamos nunca conseguir salvar o mundo com os meios que temos, mas tentaremos com todas as nossas forças ajudar quem se cruzar connosco. E fazer como a Fátima: não acreditar nas vozes que nos dizem que as crianças não querem viver. É raro uma criança desistir. Mas elas podem: são crianças. Nós é que não podemos. Força, Maria! Carter não era enfermeiro. Nunca viu ninguém sorrir depois de ter estado às portas da morte. Nunca viu o olhar de agradecimento de uma mãe. Carter estava na profissão errada, confia em mim!
07
Out13

[outras palavras] começa a fome no niassa...

beijo de mulata


A minha amiga Maria, voluntária no Niassa através da minha ONG ("minha", salvo seja, da ONG que sempre me apoiou, de cuja assembleia agora sou presidente e por quem cultivo uma dívida de gratidão) postou hoje no facebook a seguinte mensagem: 
Hoje até podia falar da fome que as pessoas começam a sentir nesta época do ano por aqui, ou descrever as crianças que me têm chegado ao Centro nutricional e tentar capturar fotos dignas de Carter, mas como estou consciente dos motivos que o levaram ao suicídio, prefiro apreciar a chuva e deixar uma música ambiente adequada para a abençoar.
Deixaste-me gelada... É verdade, minha querida, eu sei, há dias em missão que nos enchem a alma de imagens horríveis, cenários que nos paralisam e nos tentam fazer baixar os ombros. É verdade isso que contas. Talvez Carter se tenha deixado invadir por esse horror até não sobrar, por entre névoas e desaires, a memória de um sorriso.

Sei bem do que falas. Não pretendo ensinar-te nada, que já tens um ano de experiência em desnutrição mas, ainda assim, vou contar-te como foi que percebi a razão de "marasmo" ser precisamente uma expressão que usamos para denotar depressão e apatia. "Gostava de sair deste marasmo", dizem as pessoas quando a sensação de abandono se torna avassaladora e não lhes apetece fazer nada daquilo que em tempos lhes dava prazer. Compreendi isso com uma criança desnutrida que me marcou para sempre.

Essa criança de quem te falo era o Dino, um menino de três anos, internado em Iapala em Abril de 2008, uma semana antes da minha terceira chegada à missão. Estava coberto de feridas nos membros e no tronco, como se a pele tivesse descamado em toda a sua profundidade, mas o que mais me chocava era a forma como se debatia enquanto a mãe lhe enfiava, sem dó nem piedade, com uma colher, a solução de reabilitação nutricional pela goela abaixo. Gritava, guinchava de boca fechada para que a maldita colher não lhe violentasse a nula vontade de comer. Mas em vão. A mãe agarrava-o e tapava-lhe o nariz. Quando abria a boca para respirar, uma nesguinha que fosse, lá vinha o líquido horrendo que, em vez de o fazer voltar à vida, quase o sufocava, ao entrar pelo mesmo orifício que o ar que lhe faltava. Todo ele escorria suor e solução nutricional. Quase me faltava o ar a mim também. Ao seu lado, porém, as outras mães de crianças desnutridas davam a mesma solução aos seus filhos, também sob alguns protestos, mas de longe mais suaves que os do Dino. Por fim, um vómito vinha pôr termo àquela reabilitação nutricional forçada. Para recomeçar pontualmente três horas depois, com uma mãe cada vez mais desesperada, mas igualmente obstinada.

A partir de um certo grau de desnutrição quase todas as crianças resistem a comer, é certo, sobretudo quando se lhes apresenta uma solução desenxabida e à base de leite de vaca, como é a solução nutricional da Unicef (não tenho nada contra o leite de vaca, entendam-me, mas a maioria das crianças africanas tem intolerância à lactose, o que lhes provoca dor e distensão abdominal; e isso, convenhamos, não ajuda nada nestas circunstâncias), mas aquela criança, ainda que ao lado de outras mais desnutridas, fazia impressão. Não sei se metia dó, se metia raiva, se me fazia sentir zangada ou só terrivelmente desconfortável. Passava-se certamente mais alguma coisa. Uma obstrução intestinal? Uma alergia às proteínas do leite de vaca? O que o fizera ficar desnutrido em primeira instância?

A minha amiga Fátima, que tinha ido comigo nessa missão, dizia-me: "Não vês que é ele que está a puxar o vómito? O miúdo é difícil e a mãe não parece muito adequada." Mas para mim difícil era acreditar que todo aquele aparato era puramente comportamental. Será que era uma reação à imposição da alimentação de uma forma tão coerciva? Resistir, fechar a boca e puxar o vómito eram o único espaço de liberdade que restava àquela criança, presa no excesso de zelo de uma mãe desesperada.

Mas a verdade é que todos os dias o Dino perdia peso e não dava qualquer sinal de ter fome ou querer comer. Tentámos de tudo. Distraí-lo com vídeos no iPhone, com canções, com danças, tentámos brincar, chamá-lo à razão, pedir, ameaçar. Por fim, acabávamos por lhe colocar uma sonda nasogástrica... e ele vomitava. Por vezes, quando conseguia que olhasse para mim, fazia-lhe a minha cara furibunda nº 5 e ele parava. Aí não puxava o vómito. Mas por vezes vomitar parecia inevitável. O miúdo era, de facto, difícil. Ou pior. Se calhar não queria mesmo viver... Mas logo me emendava: não, não, não podia ser! Que ideia ridícula. Alguma coisa se passava, de certeza!

A história que a mãe contava, num Português muito acima da média para os habitantes de Iapala (mas que ainda assim não ia além de um sofrível), era que o menino nascera bem e se alimentara exclusivamente de leite materno até aos 8 meses. No mato em Moçambique é habitual o aleitamento materno exclusivo até aos 12 meses, portanto não ter ingerido rigorosamente nada para além de leite materno até aos 8 meses era perfeitamente normal.

Mas a mãe continuava: a introdução de novos alimentos é que tinha sido dramática. Aos 8 meses, quando introduzira a colher, o Dino passara a recusar o leite materno, deixando a mãe com uma mastite terrível. E se ao princípio ainda aceitara razoavelmente o milho, a carne e o feijão, meses depois (não sabia precisar quantos) passara a recusar terminantemente qualquer alimento sólido. Deixara de aumentar de peso. Pouco a pouco tornara-se numa criança irritável, alheada do mundo e das pessoas, deixara de dizer "mamã", deixara de ter interesse em brincar, nem a mãe olhava de frente. Respondia a qualquer tentativa de aproximação de outra pessoa, nem que fosse a avó, com guinchos estridentes. Uma regressão maciça do desenvolvimento.

Acontecera alguma coisa nessa altura?, indagava eu, assombrada com tanto sofrimento no olhar de uma mãe. Não, só o pai tinha partido em trabalho para Nampula, mas não acreditava que fosse isso, o menino nunca fora muito ligado ao pai. E a mãe? Teria ficado triste com a partida do pai?, ocorriam-me histórias de crianças a quem a depressão materna deixara profundas marcas no desenvolvimento. Mas também não fora o caso. Até tinha sido um alívio, confessava-me, porque ele em Iapala não tinha trabalho e estavam a passar dificuldades. Nesse aspeto tudo tinha melhorado...

Pelos dois anos, a única coisa mais ou menos sólida que a mãe o conseguia fazer comer já era apenas papa de milho. Nos dias bons conseguia também fazê-lo comer feijão. Mas sempre sob fortes protestos, praticamente à força. Só comia bem a dormir, mas era difícil porque tinha o sono leve e acordava facilmente.

Até que, aos três anos, tivera uma doença. No hospital disseram que era malária e trataram-no como tal, mas o menino nunca mais se recompusera. Fora acometido de uma diarreia febril que demorou a passar e o fizera perder peso e ânimo. Deixara de andar. A pele caía-lhe, grossa e descamativa, os cabelos tornavam-se descolorados, cor de palha e, outrora rebeldes e encrespados, desfrisavam-se e caiam em catadupa.

Raios! Como é que se chega a este ponto, meu Deus? A mãe pensava o mesmo. Percorrera todos os hospitais das redondezas, não sem antes ter recorrido aos melhores curandeiros. Até que, no hospital, o Sr. Sousa, colega do marido, a convencera a ficar e tentar o programa de reabilitação nutricional. "Não existe outra solução", dissera-lhe. E ela, sem alternativa, ficara.

Mas o que viera primeiro?, perguntávamos. A regressão do desenvolvimento ou a recusa em alimentar-se? Seria uma perturbação do espetro do autismo? Seria uma questão psicológica, assim uma anorexia nervosa infantil, que infelizmente também as há? Seria uma doença intestinal que o fizera sentir-se desconfortável com a comida? Um molho de brócolos, era o que era aquele menino!

Os dias passavam e, com a sonda nasogástrica, os antibióticos e as vitaminas, o menino lá ia aumentando de peso. Quase nada que se visse, mas enfim, pelo menos já não perdia. E havia vezes em que já não vomitava.

Até que uma manhã, na fila para pesar, o Dino, ao colo da mãe, não chorava como de costume. Eu via água a escorrer pelo vestido da mãe, mas como ele era dos últimos da fila e eu estava concentrada em tomar nota dos pesos, pensei que o menino se entretinha com alguma garrafa de água e até me alegrei. Estava mais calmo! Quando chegou a vez dele, quase uma hora depois, percebi, horrorizada, que estava pálido, desidratado, quase em choque. Perdera dois quilos. A gastroenterite que grassava no hospital pela falta de saneamento básico e por as fontes de abastecimento de água estarem contaminadas, tinha-o atingido. Fizéramos todos os possíveis para evitar que a epidemia chegasse à enfermaria das crianças. Aconselháramos toda a gente a ir buscar água a um fontanário que não estava contaminado e a dar unicamente água fervida. A solução nutricional tinha de ser preparada pelos enfermeiros com água tratada. Mas em vão. Quando o saneamento é deficiente é difícil travar as epidemias.

Transferimo-lo para a enfermaria de adultos porque naquele estado não podia estar junto com as outras crianças fragilizadas pela desnutrição. Ainda tentámos colocar-lhe um acesso venoso, mas com ele tão desidratado foi impossível. Até aí, na ingenuidade de quem nunca viveu estes dramas, eu pensava que uma criança desidratada e com sede nunca recusaria água. Ou soro oral. Pensava que uma desidratação daquelas só poderia provocar uma avidez por líquidos. Mas o Dino também não abriu a boca para o soro. Nunca recusara água, mas agora recusava rigorosamente tudo, incluindo água e soro.

Na nova enfermaria, as mulheres doentes olhavam-nos, abanando a cabeça: "Tudo tem limite, Doutoras! Já lá vão quantos dias? Não veem que esta criança não quer viver? Para quê tanto sofrimento? Tenham respeito pela mãe e pelo filho!" E, de facto, o olhar da mãe era de quem tinha desistido. Colocámos-lhe novamente uma sonda nasogástrica para o hidratar, mas a mãe nem sequer o segurou para nos ajudar. Deitou-se na cama do filho e adormeceu. Tinha chegado ao seu limite, aquela já não era a sua luta. Mas... oh, meu Deus! O peso daquela luta era enorme... Seria lícito continuar a fazer sofrer uma criança que já tinha sofrido tanto e que claramente tinha desistido? Foi uma noite difícil, com tantas dúvidas nossas, com tantos olhares reprovadores, com o olhar de abandono do menino, que não vomitava mas também não reagia a nada.

(continua, que o post vai enormíssimo)
06
Out13

[instantes] ironia do suporte avançado de vida

beijo de mulata
 
Não resisti a partilhar esta imagem*... Uma amiga minha chegou a casa depois de três dias num curso intensivo de Suporte Avançado de Vida e viu o que os filhos tinham estado a fazer durante a tarde: brincar às escolas. Filhos: "Mamã, olha, a B. acertou nas letras todas!" Minha amiga: "Arrrghh!"
 
* Sim, lamento, é humor para médicos. Não tem assim tanta graça, não se preocupem se não perceberem.?
06
Out13

[outras palavras] a luz

beijo de mulata
 
O Padre João Torres batizando uma mulher adulta.
(Ocua, Cabo Delgado)
 
Li hoje na sua página pessoal:
Todos experimentaremos, cedo ou tarde, o momento em que a nossa fé perde o pé, não tem apoio, nem garantia, nem sinal nem prova. É, pura e simplesmente, ato de confiança inquebrantável na beleza e na ternura de Deus, graça que nos faz viver e esperar, com paciência, o tempo mastigado com fios de felicidade... Como nos diz o Papa Francisco, “a fé não é luz, que dissipe todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia os nossos passos na noite, e isto basta para o caminho.”
Também é esta a minha fé e a minha esperança. A vida tem de ser simples.

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