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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

17
Ago13

[nomes que afinal não dizem tudo] welcome to mozambique

beijo de mulata
 
Mamã com crianças...
(Iapala, Nampula)

A pedido de várias famílias, aqui fica um pequeno excerto do meu livro. É sobre um episódio no dia da chegada à missão de Iapala...
"Antes do jantar, recebemos a visita de uma jovem com um bebé depoucos meses adormecido às costas. O menino vinha no seu traje de gala, com umconjunto de gorro e meias de lã, amarelo com uma risquinha verde, amorosamentetricotado à mão por uma das irmãs.  
– A touquinha e as peuguinhas de lã são o melhor presente que se pode dar auma mamã – explicou-me depois a irmã Lurdes.  
– Com estecalor?
– Não me perguntes porquê, mas todas as mamãs adoram. 
Realmente,como diria Mark Twain, os costumes mais absurdos são sempre os que permanecemmais enraizados... A "touquinha", como a irmã lhe chamava, era umgorro de inverno, de aspeto bastante quente, com direito a pompom e tudo! Ajovem era mulher de um dos empregados da missão. Sabia que a irmã Conceiçãotinha chegado e vinha dar notícias da sua ida a Nampula para registar o menino.
– Não me deixaram pôr o nome que a irmã disse – lamuriou-se.
– Porquê? – Espantou-se a irmã Conceição.
– Disseramque não era nome normal. 
 Mas que estranho...
A jovem mamã tinha ido, dias antes, ter com as irmãs a Nampula porqueestava com dificuldades na escolha do nome do bebé. Era o primeiro filho, o quetornava o processo muito mais complexo, com uma grande responsabilidade. Queriadar-lhe o nome de um padre, porque os missionários eram as pessoas maisimportantes da região, mas não sabia que nome escolher. A irmã lembrara-seentão que o pai do menino, em tempos, trabalhara para um padre em Nampula etinham ficado particularmente amigos.

– Porque nãolhe põe o nome dele?
A sugestãotinha sido bem aceite...
– Mas, afinal, qual era o nome que lhe queria dar? – Perguntei, curiosa.
– Padre Arlindo...  
A jovem estava desolada, mas eu tive de deixar cair um brinco no chão parapoder esconder a cara, porque só me apetecia sorrir às gargalhadas com aquelacena digna de uma comédia dos anos ’30. Depois de uma longa explicação dasirmãs, a jovem saiu um pouco mais conformada.
– Acho quenão vai muito convencida... Só Arlindo parece que não diz tudo – notei.
– Também meparece... Mas ainda bem que o funcionário do Registo Civil foi sensato, senão omenino tinha ficado com um Arlindonome! E se fôssemos jantar?"

in A Missão - Diário de uma Médica em Moçambique
16
Ago13

[vozes brancas*] e raciocínios irrepreensíveis

beijo de mulata
Esta tarde, depois de almoço comigo e com os avós, o baby-de-mulata (agora já com dois anos e pouco), perguntava se podia cheirar o meu café (pequeno ritual de iniciação aos prazeres deste vício tão saudável e delicioso). Depois, como sempre, perguntou se podia provar. Respondi-lhe que não, que só quando fosse crescido, como a mãe e como os avós.

- O baby não, só a mamã e os avós - repetia, como um menino bonito que estuda a lição, sabendo de antemão que isso é coisa que me derrete.
- Pois, muito bem, querido!
- A mãe bebe?
- Sim, meu amor!
- A vovó também bebe?
- Sim, a vovó também bebe.
- O avô bebe?
- Não, meu amor, o avô não gosta.

O baby sorriu, absolutamente deliciado com a resposta. Finalmente um aliado de peso!
- O avô também é pequenino?

(Estou tão orgulhosa deste primeiro "vozes brancas*" da autoria do meu baby!)

* Timbre da voz das crianças antes da puberdade.
14
Ago13

[ser criança em moçambique] brincando ao faz de conta...

beijo de mulata

 
Na escolinha das Irmãs de São João Batista, em Nampula, onde estão os meus "afilhados à distância", que só conheço por fotografia... As Irmãs lutam todo o ano para lhes dar roupa, bibes, comida, assistência médica e educação. Para que a vida destas crianças seja simples e o desenvolvimento se faça dentro da família, mas longe do trabalho, da exploração e dos maus tratos, num ambiente acolhedor e intelectualmente estimulante! Tudo a que todas as crianças deveriam ter direito!
(Bairro de Muahivire, Nampula)
13
Ago13

[a força que um sorriso pode ter!] nariz vermelho

beijo de mulata


 
Os doutores-palhaços da Operação Nariz Vermelho
 
?
Não sei se já vos falei deles. Andam pelos hospitais pediátricos portugueses, metem-se com os meninos, arrancam sorrisos mesmo a quem embirra com eles. Sobretudo a esses, aliás. Eu, confesso, não lhes ligava muito quando comecei as minhas andanças na pediatria. Não esperava que me ligassem de todo. Não me via como um alvo a ser atingido por eles. Achava a iniciativa genial, mas era para os meninos, eu tinha outro papel, não padecia de nenhum mal tratável por eles...

Talvez por isso, começaram a perseguir-me. Entravam no serviço, olhavam para mim e eu dizia, muito profissional: "Hoje no quarto 1 temos a Luísa, que está em jejum para ir ao bloco operatório, deve agradecer muito a vossa ajuda para se distrair e o João do quarto 3 passou a noite sem a mãe, está um pouco triste... Todos os outros vocês já conhecem. A Teresinha é que continua em isolamento." Mas eles depois nunca me deixavam sair da sala. Atravancavam-me a saída, caiam para cima uns dos outros, fugiam da minha caneta teimando que era uma pena de pavão, tentavam que o meu estetoscópio produzisse um esguicho de água (de vez em quando conseguiam!), isto até me arrancarem uma gargalhada que se ouvisse no corredor. Eu achava um desperdício perderem tempo comigo. Mas nos dias em que o circo subia à enfermaria, eu ia sempre com um sorriso diferente ver os meninos... Agora já não trabalho no internamento. A última vez que os vi, foi na secretaria da direção, estava eu a tratar da declaração de IRS e eles começaram a cantar-me: "Faça da sua declaração de IRS/ uma declaração de amooooor!!!" E eu dei a melhor gargalhada do dia! Hoje li uma história que só podia ser deles:
"O Francisco, um menino de cinco anos que esteve internado no Instituto Português de Oncologia. Quando o pai do Francisco soube que os doutores-palhaços vinham todas as terças-feiras ao hospital, ficou em pânico, porque o filho tinha muito medo de palhaços. 
Quando chegámos à porta do quarto do Francisco, o pai estava no corredor com a porta do quarto fechada para avisar que o seu filho tinha medo de palhaços. Ou seja: não havia hipóteses nenhumas de comunicarmos com o Francisco. Procurámos falar com o pai para nos deixar tentar uma aproximação ao Francisco mas ele olhou-nos determinado: “Não, não, não, por favor não entrem, ele não quer ver palhaços nem de longe.” 
Passaram umas duas semanas sem que o pai do Francisco nos desse uma oportunidade. Um dia eu voltei a tentar. Sugeri que ele pegasse num chinelo e dissesse ao filho: “olha, estão ali os chatos dos palhaços outra vez e eu vou dar-lhes com o chinelo no rabo”. O pai concordou e encenamos o combinado. Vimos abrir a porta e, pela primeira vez, conseguimos avistar o Francisco de longe. O pai pegou no chinelo e veio atrás de nós enquanto gritávamos no corredor: “está bem, não vamos ver o Francisco, vamos embora”. A nossa rotina no quarto do Francisco passou a ser esta. Todas as semanas o Francisco divertia-se a ver o pai expulsar-nos à chinelada. 
Fomo-nos aproximando cada vez mais da porta e passamos a abrir a porta para dizer: “só viemos buscar o nosso pontapé!” Levávamos o pontapé e seguíamos viagem.
O Francisco deixou o internamento e passou a frequentar o hospital de dia, local que também visitamos. A primeira vez que nos encontrámos com o Francisco na sala de espera, o pai implorou que não entrássemos, alegando que nem estavam muitas crianças no serviço. A aflição dele era tanta que lhe fizemos a vontade naquele dia. Obviamente não podíamos deixar de visitar as outras crianças só porque o Francisco estava presente.
Na semana seguinte, assim que o pai viu que tínhamos chegado à sala de espera, pegou no filho e escondeu-o atrás de um armário!!! Eu aproximei-me lentamente e comecei a dizer: “Eu quero um pontapé do Francisco!... Só saio daqui com um pontapé do Francisco!” O Francisco saiu cauteloso de trás do armário e, sorrindo, deu-me um pontapé. Depois deu outro, e mais outro, entrando no jogo e rindo. Nesse dia, perdeu o medo dos Palhaços.
Semanas mais tarde, o pai do Francisco veio receber-nos à porta do serviço com um sorriso de ansiedade no rosto. Expectante dirigiu-se a nós: “Vocês hoje vão visitar os quartos?”. Dissemos que sim. O pai fez-nos prometer que visitaríamos o Francisco.
Quando chegámos ao quarto, batemos com delicadeza. A porta abriu-se e vimos o Francisco, sentado na cama a olhar para nós, com um nariz de palhaço!"
09
Ago13

[coisas que me confortam] como mulher, como mãe e como loira a toda a prova!

beijo de mulata
Há tempos, embora eu não fosse de todo fiel seguidora da mítica palavra de Pipoco, cumpriu-se a profecia bíblica que asseverava que se a mulata não fosse ao encontro do Pipoco mais salgado da blogosfera, seria o próprio Pipoco que haveria de ir acrescentar algum sal ao mato. E vai daí, o tio Pipoco linkou o beijo-de-mulata. E eu, que nunca tinha ido visitar o salgado Pipoco, mais o seu alter ego, Ruben Patrick, fui olhá-lo (com algum voyeurism), pela sua janela.

Foi nessa altura, mais ou menos, que o ilustre Pipoco escreveu qualquer coisa como (cito de memória, que não consigo encontrar o post exato): "Tendo a não me sentir atraído por mulheres que ostentem o interior do carro desarrumado ou com lixo." E a verdade é que a loira que há em mim ficou aterrada! Literalmente sem ar. A mulata que me habita, por seu lado, sentiu um desconforto inenarrável, como se tivesse sido avistada em público com uma capulana do avesso. Não conseguia conceber tamanha injustiça e falta de compreensão para com quem tem de viver diariamente com dois cromossomas X* e ainda assim faz um esforço hercúleo para funcionar como se nada fosse. Desde quando é que a feminilidade de uma mulher se mede por esses cânones? Já a mãe que estava a nascer dentro de mim acatou o recado como se de uma ordem se tratasse, e começou a dar a atenção devida ao assunto, que há que dar o exemplo desde sempre!

E foi por este desconforto, admito, que nunca mais segui a palavra de Pipoco. E também foi por isto que passei a arrumar o carro como se fosse o meu escritório.

Até ao dia em que a minha querida Mimi Burnay me fez um genial saco para o carro! Lindo, com um estampado floral exterior e plastificado por dentro, à prova de todo o tipo de lixo. Eu ganhei uma alma automobilística nova, uma confiança e autoestima que nem 50 horas de ginásio e esteticista conseguem conferir. E o meu carro ganhou um acessório novo. E lindo. À prova de Pipoco!

(É tudo por hoje, a silly season continua dentro de momentos...)


 
O épico saco de lixo para o carro, por Mimi Burnay!


* Isto não é uma aneuploidia?!
06
Ago13

[baby-de-mulata] ainda não foi desta...

beijo de mulata


Pois é, meus amigos, ainda não foi desta... (Erguer de olhos para o céu, um suspiro.) Hoje levantei-me decidida! Haveria de ser desta, caramba, que um dia tem de chegar a minha vez, valha-me Deus e São Jerónimo, padroeiro das escriturárias (ou apenas das sagradas escrituras, mas os santos também podem ser padroeiros de outros departamentos que se prestem a confusão fonética, ou não? Pois... se calhar não, mas enfim, eu tinha fé!). E a minha vez haveria de ser hoje, eu sabia, sentia-o nos meus ossos (fica melhor em inglês, mas nós aqui no mato não falamos estrangeiro, que não nos fazemos de importantes). Macacos me mordessem se não seria a minha hora de interpretar o papel vencedor contra a burocracia dos papéis! Já vos falei da minha saga. Queremos ir viajar mas não podemos porque ainda nos falta o cartão de cidadão. Já está quase, eu sei. Já faltou muito, mas muito mais. Mas ainda não está, canário!

Então hoje lá fui novamente ao Instituto dos Registos e Notariado. Certidão de curadoria do baby: check! Assento de nascimento: check! Sentença de adoção plena e respetiva referência do processo do Tribunal de Família e Menores: check! Tempo suficiente decorrido após a sentença de adoção para o trânsito em julgado*: check! A minha identificação pessoal: check! Dinheiro trocado para o parquímetro: check! Livro para estudar na sala de espera: check!

E lá fui. "Olhe, se faz favor, passa-se isto assim e assim, a modos que eu venho aqui solicitar a emissão de um novo assento de nacimento para o baby-de-mulata". Após o que a senhora consultou uns documentos e me respondeu que isso era totalmente impossível. Ainda faltava o averbamento e sem isso nada feito. "Mas qual averbamento, minha senhora?" "O averbamento da sentença de adoção." "Mas disseram-me que o processo já transitou em julgado." "Sim, mas falta o averbamento, sem isso nada feito." "Então o que é que eu posso fazer?" "Bem, sem quiser mesmo saber o que se passa pode ir ali ao terceiro andar falar com a minha colega dos averbamentos." "Está bem!"

Fui ao terceiro andar. Entrei numa porta onde não dizia "Averbamentos", mas dizia "Entrada exclusiva para funcionários." e pensei: "Bem, deve ser aqui..."

E então a tal colega que sabia de averbamentos comunicou-me que nada tinha para averbar naquele momento e que, portanto, se a sentença ainda não estava averbada é porque ou o processo ainda não tinha transitado ou então o averbamento ainda não tinha chegado. Nada a fazer! "Então?", perguntei já conformada, "O que posso eu fazer?" "Nada, dê-lhe mais um mês, que o averbamento já deve estar pronto nessa altura!"

E pronto, nada a fazer! Sem averbamento não há documento. Ainda não foi desta! Mas para o mês que vem é que é, garanto-vos! Vou dar-lhe mais um mês, como a senhora dos averbamentos me prescreveu. Para que se ainda houver alguma coisa para transitar, que transite definitivamente e para que tudo o que houver para averbar, se averbe de uma vez por todas, que a verve já me falha e o sangue me ferve e, a bem dizer, eu não queria nada estar aqui a escrever isto, nem a fazer trocadilhos, queria estar aqui vitoriosa... Mas a nossa hora há de chegar. Ou eu não me chame beijo-de-mulata!

* Neste mato empregamos termos jurídicos para mostrarmos como somos cidadãos informados e assim passarmos a completa noção de que se os documentos ainda não foram emitidos, isso é da exclusiva responsabilidade da burocracia do sistema.
05
Ago13

[mães de grande rodagem] that awkward moment...

beijo de mulata
Na consulta, uma mãe de cinco filhos, amorosa, dedicada, bem disposta e muito prática*, colocava-me uma questão sobre o seu filho mais novo de quase 2 anos.

- O Miguel há mais de dois meses que não me bebe o biberão do pequeno-almoço. Vejo-me obrigada a acabar por lhe fazer papa porque não o posso mandar para casa da avó sem comer nada.
- Mas bebe leite em qualquer outra altura do dia?
- Também não.
- E iogurtes?
- Sim, come dois ao lanche.
- Mas e se outra pessoa estiver a beber leite?
- Ah, se for eu a beber ele pede-me e até é capaz de o beber todo!
- Então deve ser do biberão. Já experimentou dar-lhe por copo? É que ele é o n.º 5, não deve gostar nada de ser "o bebé lá de casa".
- Ah, isso é verdade! Ele também detesta o babete e largou a chucha há pouco tempo... Mas não, nunca experimentei dar-lhe por copo. Já experimentei foi dar-lhe à colher, como eu dava ao João na mesma idade, mas também não aceitou muito bem, é preciso distraí-lo muito.
- À colher? Bem, gabo-lhe a paciência...
- Sim, o João durante imenso tempo bebeu o leite todo à colher, mas eu na altura só ainda tinha três, era tudo muito mais fácil...
(Glup**)
- Pois, mas talvez não haja necessidade. Experimente por copo. Se ele aceitar e não tiver depois problemas intestinais é porque não é nada de especial.


* Para mim, qualquer mãe de cinco filhos que leve os filhos às consultas de Pediatria mais ou menos na altura certa é uma super-mãe que merece toda a minha consideração, admiração e prioridade de atendimento. Caramba, eu não sei se me vou lembrar das vacinas do segundo... Exagero, vá, mas a sério que é de louvar!

** E foi esse o momento em que percebi que ainda tenho de fazer muita sopa até chegar aos calcanhares de muitas mães que andam por aí, tão frescas e bem-dispostas, e que tão cedo não me vou poder queixar do trabalho que o baby-de-mulata me dá (que, por acaso, benza-o Deus, não é nenhum!).
02
Ago13

[moçambique no seu melhor] do rovuma ao maputo!

beijo de mulata
Para todos os que têm saudades do tempo em que este blogue era mato... para os que têm saudades da sombra dos cajueiros, para os que já fizeram o luto de um blogue que era quase exclusivamente monopolizado pela saudade de Moçambique que me assolava o coração de alto a baixo (embora com algumas incursões pelas improváveis histórias da Estefânia) e, sobretudo, para Mr. Umbhalane, o primeiríssimo comentador deste mato, que já se manifestou contra o facto se ter infamemente transformado num baby-blog (prometo que é temporário, Mr. 1B, as circunstâncias são incontornáveis!): dedico-vos este post do André, o genial autor do Tertúlia Africana, sobre uma experiência rodoviária Moçambique afora (ou Moçambique abaixo, se preferirem uma expressão mais indicativa dos pontos cardeais que estiveram envolvidos no trajeto)... Quase do Rovuma ao Maputo dentro de um machimbombo sobrelotado, conduzido por um motorista meio louco, meio ébrio de sono.
 
 
 
 
 
 
Imagens daqui.
"Talvezsó agora tenha tido coragem de escrever esta história, ou talvez ela precisassede amadurecer para ser contada. Era um objetivo meu: fazer Pemba – Maputo porestrada, de autocarro. Porque não? É preciso tempo, já sei, espírito deaventura, tudo, mas, como seria?

Nabilheteira, de notas meio dobradas, firmes na mão, parecendo coletores dedinheiro de apostas ilegais, respondem positivamente a todas as nossas questõesde segurança. “Trocam de condutor?” – sim; “Dorme-se no caminho?” – sim;“Pára-se para comer?” – sim. Talvez devesse ter reformulado as perguntas para osfintar, mas se calhar fiz as perguntas da forma como queria ouvir asrespostas...
Oautocarro tem lugares sentados, para todos. Sim, porque coloquei a hipótese defazer uma longa jornada de pé, ou sentado na coxia em cima de alguns sacos.Nada disso, bancos individuais e cinto de segurança. O espaço para as pernasnão era muito, mas se vinha naquela viagem para me queixar do conforto tinhaapanhado um avião!
Arrancamnum grupo de 4 para fazer face às exigências natalícias e buzinam uns para osoutros. Parece que vamos em caravana, mas na realidade é uma disputa entremotoristas que se vão ultrapassando pelo caminho. Em cada manobra o alcatrãofica ainda mais fino e apenas uma reduzida percentagem de passageiros ficaentusiasmada com as manobras, gritando e batendo palmas. Os outros 80% ficam emsilêncio, engolindo em seco.
Aquiloque por fora parece um robusto autocarro, por dentro parece uma minhoca,serpenteando as estradas e saltitando nos buracos. Como nos sentamos no piso decima (o de baixo é para bagagens) dá a ideia que a cada curva vamos tombar.Talvez a fraca suspensão, talvez seja apenas psicológico...mas bolas, como assusta!
Assimque começámos a rolar a sério em plena estrada nacional, percebi que tinhaescolhido um péssimo lugar: a coxia. Inevitavelmente ia com os olhos presos naestrada e assustado com a velocidade com que um monstro daqueles se fazia àscurvas. Dava por mim a travar com o pé a bater no chão ou a tentar virar,agarrado às pontas dos meus calções. Tinha que me distrair, pois a viagem élonga, iria durar pelo menos 24 horas! A minha alternativa era olhar para olado, para a Yumi [a noiva do André], que inexplicavelmente dormia...como se sobrevoássemos asnuvens, em vez de cavalgar buracos.

Pessoalcom sérios lanches preparados. Frango, chamuças caseiras, cerveja. Nós levávamosbolachas que mal me passavam pela goela, tal era o nó que tinha. O tipo do meulado era comerciante em Pemba. Ia visitar a família e voltava dentro de 4 dias.Na mesma estrada, com o mesmo autocarro. Gabo-lhe a coragem.
Oautocarro vai à mesma velocidade, independentemente das condições do piso, dedia ou de noite. Quando chove a visibilidade reduz-se para níveis que não entendo.Suspeito que o motorista tem poderes adivinhatórios ou que já conhece tão bem a estradaque nem sempre precisa de olhar para ela. Não é que o limpa para brisas nãofuncione, ele simplesmente não existe, fazendo acumular uma camada de insetosmortos, que se transforma numa pasta opaca quando se lhe adiciona água!
Como fim do dia começaram os planos de onde iríamos parar, pernoitar, pensei. Afazer cálculos às barreiras policiais, que proíbem a passagem de transportespúblicos a partir de certa hora, a ideia era “pisar”...para conseguir passarmais cedo pelos “gajos” e conduzir mais umas horas. A sério? O condutortinha os olhos vermelhos, bem cansados, mas era o primeiro a incentivar aestratégia de velocidade.
Ébonito viajar por Moçambique relativamente devagar. Pelo menos por terra. Àmedida que descemos o desenvolvimento sobe. Palhotas tradicionais passam a casasólidas, pontes precárias para robustas. A paisagem tem um pouco de tudo: os inselbergs em Nampula, coqueirose arrozais na Zambézia, campos cultivados em Sofala, a imensidão de coqueirosem Inhambane, casas e agitação logo em Gaza.
Como aproximar da meia-noite o autocarro abranda e estamos agora a entrar numavila qualquer, com alguns candeeiros na rua. Inchope, o grande cruzamento dasestradas em Moçambique. Quando nós saímos do autocarro já várias pessoasdescansam os ossos numa vala, à beira da estrada. Sem perceber se é avaria ouparagem, o condutor diz: “saímos daqui a três horas”. Uau...avizinha-se umanoite de descanso...de 3 horas! Dá que pensar se queremos reentrar no autocarroou não, mas não há muitas condições para pensar: a noite de sono é curta e ocansaço vence-nos facilmente.
Abuzina do autocarro (inconfundível e difícil de esquecer) arranca-nos do sono ecomo múmias voltamos para dentro daquela máquina infernal, sem pensar, apenascom o destino na mente.
Nosegundo dia continua o mesmo motorista, que no dia anterior conduziu mais de900 km. Obviamente que, com o sol rasante de frente e extensões das retas aaumentar, a sonolência aparece. Não há heróis. O motorista começa a coçar commaior frequência os olhos, a cabecear e sente-se que o volante dança mais doque devia para um troço que é sempre a direito! Alguns passageiros, aaperceberem-se disso, oferecem bebidas e conversa ao motorista, sentando-seao seu lado e largando gargalhadas suficientes para entrar nos tímpanos eagitar o cérebro...
Quandosaí do autocarro em Maxixe renasci. Não acredito em Deus, mas se acreditasse,neste caso diria que Ele estava a olhar por nós naquela viagem.
Eraum objetivo e cumpri. Aventura feita, que escreverei no meu diário. A nãorepetir..."

André, bem-hajas por este pedaço de vida e de mundo! 

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