Há dias, na reunião da manhã no meu hospital, ouvi falar de uma adolescente que tinha sido internada por febre e mal estar geral com cerca de 3 semanas de evolução.
Tratava-se de uma menina de 13 anos, frágil, magra, com olhos negros e tristes. Nascera na Guiné-Bissau, numa cidade longe da capital e ficara privada da mãe seis anos antes, altura em que esta tivera de vir para Lisboa, acompanhando um irmão mais novo com uma epilepsia grave e atraso de desenvolvimento. A mãe vivera os primeiros anos com o filho, entre casa e hospital, entre consultas e internamentos, entre enfermarias e cuidados intensivos, medicamentos com nomes esquisitos e efeitos secundários de que nunca ouvira falar mas que tinha de monitorizar diariamente.
Chorara apenas no primeiro dia, quando lhe disseram o menino poderia melhorar um pouco, mas nunca poderia vir a ter uma vida normal e que teria de fazer medicação para o resto da vida, medicação essa que não existia na sua cidade natal e que, por isso, mãe e filho nunca mais viveriam junto dos seus. Depois do primeiro dia, aceitou a doença e lutou com todas as suas forças pela vida do filho e pela sua, trabalhando de forma precária nos poucos dias que a doença do filho lhe dava tréguas. Perguntou se pelo menos poderia então reunir a família em Lisboa e criar os outros filhos, mas essa é uma situação que não está prevista na lei. A reunião familiar é imigração ilegal. Por mais relatórios que os médicos escrevessem atestando que o menino teria de ficar a viver para sempre em Portugal, isso não lhe dava o direito de trazer os outros filhos menores. O compromisso do estado português era apenas para com o filho doente. Os outros eram problema seu! Imagino o frio no coração daquela mãe, dividida entre um filho doente e que nunca poderia vir a ter uma vida independente, e os outros filhos lá longe e que ainda precisavam tanto dela.
Só ao fim de alguns anos é que a doença do filho estabilizara e conseguira um contrato de trabalho. Só depois a autorização de residência. Ao fim de seis anos conseguiu mandar vir as outras duas filhas, que deixara ainda meninas ao cuidado da avó materna e que agora vinham adolescentes, começar a vida por que tinham sonhado durante os primeiros anos, mas que agora já não sabiam se desejavam mesmo, pois já tinham aprendido a viver sem a mãe e iniciado a difícil tarefa que é crescer e ser adolescente entre os seus pares.
A mãe não explicara nada disto ao médico do serviço de urgência. Dissera apenas que não reconhecia a filha, que chegara dois meses antes, muito bem disposta, mas que desde há três semanas estava com febre, mal estar, apática, sem forças e sem apetite. Perdera peso. Deixara de ir à escola? perguntara o médico. Que não. Até porque nunca fora. Ainda não tinha tido oportunidade de ir inscrever a filha na escola. Provavelmente só entraria no ano letivo seguinte. Até lá passava o dia a cuidar da casa.
Na cabeça do meu colega surgiram muitas luzes vermelhas: febre arrastada, mal estar, perda de peso. África! Doenças exóticas. Tuberculose. Malária.
Durante todo o dia, a menina com um ar triste e assustado fez análises, ecografias, uma TAC crânio-encefálica, uma punção lombar sob anestesia geral. Por fim foi internada enquanto aguardava os resultados.
Na reunião da manhã, no dia seguinte, os meus colegas relatavam os resultados dos exames: todos normais à exceção de uma discreta anemia por falta de ferro. E que estava sem febre desde a entrada, há quase 24 horas.
Respirei fundo. Pedi a palavra. Não gosto de interromper as reuniões, mas desta vez achei importante dizer algo. Expliquei que na Guiné-Bissau, tal como no Moçambique que eu conheço, o conceito de febre é subjetivo. Quer apenas expressar um mal estar geral. Insisti que, para perguntar se a pessoa tem febre, devemos sempre indagar se o corpo ficou quente. São conceitos diferentes e independentes. A menina estava sem febre desde a entrada porque provavelmente nunca tinha tido febre nenhuma.
Não pude deixar de me sentir gelada por dentro. Aquela mãe coragem, que lutara seis anos para que a vida e a família lhe fosse devolvida, era ainda a mãe negra
da canção de Paulo de Carvalho. A mãe negra que não sabe nada, analfabeta e longe dos seus códigos culturais. Ela sabia (como não?) o que se passava com a sua filha, desenraizada e triste, perdida num planeta desconhecido. Se estivesse na Guiné saberia a quem pedir ajuda. Levaria a filha à avó materna e ao curandeiro, para que entre rezas, feitiços, placebos, mimos e cuidados, a angústia se desvanecesse. Mas em Lisboa só podia ir pedir ajuda aos médicos.
Não interferira na investigação médica. Como qualquer mãe africana que se preze, suportou todos os exames e tratamentos firme à cabeceira da filha. Assistiu a tudo de perto, sofrendo por dentro, mas com esperança. Médico de Lisboa é muito sabedor. Os exames à cabeça talvez pudessem ler os maus pensamentos e as angústias da filha, talvez os pudessem apagar, dando lugar à alegria pueril com que a deixara seis anos antes...
Nesse dia continuei gelada. E triste. E envergonhada. Eu sei que pelo menos o problema foi identificado e a menina começou a ser tratada para aquela depressão grave. Com mais exame, menos exame, mais mal-entendido menos mal-entendido, o diagnóstico foi feito. Mas ninguém pode devolver os seis anos roubados a esta família. E a tantas outras na mesma situação...