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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

20
Ago12

[as melhores do serviço de urgência] doença mística...

beijo de mulata

?
Ontem uma colega minha, cardiologista de adultos, foi abordada no serviço de urgência pela mulher de um doente internado. Vinha visitar o marido, que acabava de fazer um catecismo* ao coração porque tinha tido uma homilia** no cérebro...

Técnica pioneira, meus amigos, e absolutamente genial! Foi preciso deixar passar a idade média, o renascimento, a idade moderna e mais uns bons aninhos para se passar do exorcismo, que removia demónios do corpo, para o catecismo, que remove homilias alojadas do cérebro, atraindo-as para um catecismo estrategicamente colocado no coração... Não tem como falhar!

* Cateterismo;
** Embolia.
19
Ago12

[outras palavras] confissão de nãozinha, a feiticeira

beijo de mulata

Mulher curandeira...
(Malema, Nampula)

Sou Nãozinha, a feiticeira.Minhas lembranças são custosas de chamar. Não me peça para desenterrarpassados. A serpente engole a própria saliva? Tenho que falar, por suaobrigação? Está certo. Mas fica a saber, senhor. Ninguém obedece senão em fingimento.Não destine ordem em minha alma. Senão quem vai falar é só o meu corpo.
Primeiro, lhe digo: não devíamosfalar assim de noite. Quando se contam coisas no escuro é que nascem mochos.Quando terminar a minha história todos os mochos do mundo estarão suspensossobre essa árvore onde o senhor se encosta. Não tem medo? Eu sei, você mesmo,sendo preto, é lá da cidade. Não sabe nem respeita.
Vamos então escavar nessecemitério. Digo certo: cemitério. Todos os que eu amei estão mortos. Minhamemória é uma campa onde eu me vou enterrando a mim mesmo. As minhas lembrançassão seres morridos, sepultados não em terra mas em água. Remexo nessa água etudo se avermelha. Lhe inspiro medo? Por essa mesma razão, o medo, eu fuiexpulsa de casa. Me acusaram de feitiçaria. Na tradição, lá nas nossas aldeias,uma velha sempre arrisca a ser olhada como feiticeira. Fui também acusada, injustamente.Me culparam de mortes que sucediam em nossa família. Fui expulsa. Sofri. Nós,mulheres, estamos sempre sob a sombra da lâmina: impedidas de viver enquantonovas; acusadas de não morrer quando já velhas. Mas hoje me aproveito dessaacusação. Me dá jeito pensarem que sou feiticeira. Está ver? Meus poderes nascem da mentira. 
Mia Couto in A Varanda do Frangipani
18
Ago12

[a melhor piada blogosférica] pickwickian syndrome

beijo de mulata
Na quinta feira passada, a São João escreveu:
Resumo do dia de ontem: acordei, tomei o pequeno almoço, fui dar uma volta a pé, almocei, dormi a sesta, bebi um chá com torradas, tentei ler o Pickwick mas adormeci (...)
Bem... se calhar só eu é que dei pela piada, mas é muito boa*!

* Pronto, pronto, não digam que sou hermética. Os que não estudaram Medicina podem ir ali documentar-se sobre o assunto.
18
Ago12

[o mato em lisboa #8] catch-22

beijo de mulata

O double bind da burocracia...

Continuando a história do Lázaro, o menino de Angola internado no nosso hospital em Outubro de 2011, por uma aplasia medular... se bem se recordam, ele precisava de um transplante de medula óssea e tinha um irmão compatível em Luanda. O problema era que a burocracia para trazer o irmãozinho de Angola para Lisboa estava a tornar-se intransponível e o Lázaro piorava de dia para dia...

Foram semanas, que se transformaram em meses. Volta e meia contactávamos a embaixada e... nada. Nem sequer tinham conhecimento da vinda do menino. Não tinha entrado nenhum pedido de visto para Portugal com aquele nome, respondiam. Não sabiam de nada. Não podiam fazer nada. E nós não entendíamos. Pedíamos, questionávamos, enfurecíamo-nos, praguejávamos baixinho, mas em vão. De que é que nos servia ter tudo para tratar e voltar a dar vida ao nosso menino se o dador estava a milhares de quilómetros dali, sem meio de vir para salvar o irmão?

Ora então, estávamos na parte em que me lembrei que a minha querida amiga M. nos poderia ajudar e ela me respondeu que sim, que era amiga do bispo da diocese onde vivia a família dele.

Dias depois recebi o mail de um missionário que num fim-de-semana tórrido se meteu no carro e foi procurar a família para ver se conseguíamos perceber o que estava a bloquear a vinda do irmão. As referências que lhe tínhamos dado eram unicamente estas: viviam "no Cacuaco, ao pé da Praça do Kikolo". Fomos ao Google Earth espreitar o bairro para perceber se com aquelas coordenadas seria provável que os encontrasse, mas ficámos desolados. O bairro era intrincado demais, labiríntico demais, povoado demais... Só com um milagre. Mas pronto, já sabemos que é precisamente nestas circunstâncias que a magia acontece. E o missionário dizia-nos:

O pai ficou imensamente feliz por eu ter ido lá, ao fim do mundo, à procura da sua casa. Foi uma manhã inteira no meio do inferno de trânsito que Luanda se tornou, horas de perguntas aos transeuntes. Persegui todas as pistas como um louco. Mas valeu a pena. "Ainda bem que há gente que se interessa pelos pobres!", - foi a sua exclamação e agradecimento.

O missionário foi então aos serviços onde o passaporte do menino estava retido há meses. Os funcionários não o tinham emitido porque não lhes tinha sido apresentado um documento da Junta Médica dizendo que o menino iria para Portugal para doar medula óssea ao irmão. Mas a Junta Médica só podia emitir o tal documento em face do passaporte.

Pois... there was only one catch and that was Catch 22...

(continua...)
15
Ago12

[outras palavras] inspiração para uma despedida

beijo de mulata


Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.

Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.

Às vezes, como uma moeda,
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.

Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que só tu me conheces.

Onde estavas então?
Entre que gentes?
Dizendo que palavras?
E porque vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?

Caiu o livro que sempre escolhíamos ao crepúsculo
e como um cão ferido rolou a meus pés a minha capa.

Sempre, sempre te afastas nas tardes
para onde o crepúsculo corre, apagando as estátuas.

Pablo Neruda in Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada
14
Ago12

[zambézia] mais um momento arrebatador!

beijo de mulata


Mais um momento para quem, como eu, ama a língua Macua e se encanta com as músicas e as danças... E, já rendidos a esta alegria, ao minuto 04:38, eis que vemos o bispo a dançar e um albino adulto (adulto!) a dançar também no meio do povo! [Para os que não entenderam de imediato o que isto tem de raro e extraordinário, sugiro que vão um pouco mais às profundezas deste mato.] Quem pode dizer que a Zambézia não é uma província maravilhosa?
(Gurué, Zambézia)
13
Ago12

[zambézia] momentos de alegria na comunidade

beijo de mulata


Ontem descobri este vídeo no youtube e não resisto a partilhá-lo convosco! A Zambézia é, de facto, fantástica. Quase me emocionei de ouvir cantar em Macua, de ver as crianças a dançar... e saber que isto foi filmado no Gurué, a minha terra de sonho... No final vemos D. Francisco Lerma, que conheci pessoalmente, era ele bispo havia pouco mais de um ano. Vi-o nas vésperas de partir para Roma. Dizia com muito boa disposição que ia a Roma "fazer o curso obrigatório para aprender a ser bispo, que estava a conduzir a diocese sem carta".
Boa semana para todos!
(Gurué, Zambézia)
12
Ago12

[das coisas realmente importantes] um sorriso

beijo de mulata
Eu sou uma pessoa que acredita piamente que a boa disposição é determinante para sobreviver às provações da vida, acredito que o sorriso e o bom-humor melhoram o prognóstico de qualquer doença, acredito que um sorriso ou, nos mais afoitos, uma gargalhada, liberta, refocaliza e aumenta a produção de endorfinas*. Um sorriso fortalece o sistema imunitário e dá-nos força anímica para lutar! Aliás, de que serve vencer o que quer que seja, se não for com um sorriso nos lábios?

Uma das coisas que sempre fiz, mesmo quando ainda não era médica, foi tentar fazer rir as pessoas mais tristes. Se estivesse algum doente em fase terminal, aproximava-me dele, e ia ver de que precisava. Na altura tinha mais tempo, claro, porque não contavam comigo para trabalhar e portanto estava por minha conta. Eram estes os doentes de que ninguém queria cuidar por estarem a morrer. Não é fácil lidar com os próprios sentimentos e com os dos outros. E é difícil descortinar um sentido no fim da vida. Mas, por pior que estivessem, conseguia quase sempre fazê-los rir com qualquer coisa e apaziguá-los no meio da angústia final. Sem desrespeito pelo momento, claro. É uma questão de sentir o outro e intuir a oportunidade.

Ontem descobri que felizmente ainda não perdi essa capacidade. Ontem, no funeral de uma doente minha, uma menina que eu conhecia há seis anos, depois de um abraço e de rezar com a mãe, consegui dizer-lhe uma frase que a fez sorrir. E depois de lhe arrancar um sorriso, via-a levantar a cabeça e encarar novamente as pessoas ali presentes...

* Assim uma espécie de anticorpos contra a dor, quer da alma quer do corpo.
12
Ago12

[casa do gaiato] instantes

beijo de mulata


Já vos falei várias vezes da Casa do Gaiato de Maputo. Assim uma espécie de Fundação Gulbenkian em Moçambique, com um orfanato, escolas, centros de saúde, projectos de microcrédito e mil outras actividades que ajudam a casa a auto-sustentar-se e onde os meninos podem aprender o gosto pelas profissões que vão desempenhar no futuro. Agora, por causa da crise, estão a passar dificuldades porque muitos dos apoios foram cortados, no meio da política de contenção de despesas da UE... Deixo-vos com algumas imagens do que é aquela mini-cidade!
(Boane, Maputo)

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