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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

14
Jun12

[sabes que estás a precisar de férias quando...]

beijo de mulata
Há dias, no corredor do hospital, encontrei a mãe de uma menina de cinco anos que eu tratei no serviço de urgência com uma pneumonia grave e que, no final de todo o processo, acabei por enviar para a consulta de obesidade. A mãe era uma cozinheira à moda antiga, que fazia comida em casa para dois restaurantes e a filha, muito solícita, passava metade do dia com ela na cozinha. A ajudar a comer, obviamente.

Perguntei-lhe como estava, dei-lhe os parabéns porque ela própria e a filha estavam visivelmente mais magras.
- Sim, doutora, agora estamos todos a fazer dieta lá em casa!
- Muito bem, é isso que se quer, e a menina não voltou a ter mais doença nenhuma?
- Não, ela agora está óptima!
- Muito bem, então adeus e as melhoras...
- Obrigada, doutora, bom apetite!

Não sei quanto a vocês, mas para mim a silly season já começou!
10
Jun12

[improbabilidades] o arrumador

beijo de mulata
Esta noite a estacionar próximo do Cais do Sodré, um arrumador sem mau aspecto indicou-me um lugar livre, deu-me indicações vagas e rápidas do local onde estacionar e desapareceu num ápice. Não era a primeira vez que me acontecia. Naturalmente tinha ido "tratar de outros assuntos". Já estava no fundo da rua quando oiço um assobio do lado oposto do passeio, aí a uns 30 metros de mim.

- Então, miss, já não se agradece? Olha que eu te vou guardar o carro... - a voz ameaçadora como se dissesse: "Vê lá se não queres ficar sem pneus."
- O senhor foi-se embora, como é que queria que eu o visse?
- Estou a ver o jogo, não ia ficar ali à tua espera! Desculpa lá mas anda até cá. Por enquanto está zero a zero.

Era só o que nos faltava agora, um arrumador-dondoca! Se a moda pega...
08
Jun12

[as melhores do serviço de urgência] vómitos persistentes

beijo de mulata
A propósito do post anterior, em que se fala da minha experiência de encontro imediato com a língua de Camões em momentos de estômago revolto, lembrei-me de outro encontro aqui há atrasado, desta feita com uma entidade nosológica da nossa cultura... Uma doença em que os meninos também "gomitam" e não comem de maneira nenhuma.

Ora, estava eu no serviço de urgência, quando chamei uma menina de 15 meses com um ar de quem tinha estado a chorar desesperadamente pouco tempo antes e a deitar pus e sangue dos dois ouvidos. Estava relativamente calma, mas os pais, jovens e cuidadosos, vinham absolutamente transtornados. Que a filha há vários dias que não comia, tinha náuseas quando lhe ofereciam comida, vomitava se a forçassem a comer, não dormia e passava as noites a chorar.

E mais alguma coisa que tivessem notado na menina?, perguntava eu. Que não, que mais nada, mas que esta tarde tinha tido uma crise de choro inconsolável e depois começara a sangrar dos ouvidos. Que tinham era de ir à bruxa, desabafava a mãe...

E eu lá ia respondendo, calma, então, que não era caso para isso, que havia doenças muito piores...

Pedi para despirem a menina. Olharam um para o outro, meio comprometidos, meio cúmplices, como quem se pergunta: "E agora, como é que vamos sair desta?" A mãe, envergonhada, lá começou literalmente a descalçar a bota... Por dentro da roupa, a menina tinha uma fralda enrolada na cintura, bem presa por um alfinete-de-ama que me custou a desapertar. "Mãe, porque é que lhe pôs esta fralda tão apertada? Olhe que isto não faz bem." E eis que, por dentro da fralda, me deparo com uma couve nauseabunda e cheia de gordura de azeite e óleo a toda a volta da barriga. Mas o que era aquilo, senhores, valesse-me São Gregório?!

 - Sabe, doutora, nós estávamos preocupados porque ela não comia e só vomitava e a minha sogra não parava de nos moer o juízo a dizer que o que a menina tinha era o "bucho virado", que é uma doença das crianças, a doutora já ouviu falar?
- Ah, e então?
- Então levámo-la a uma senhora em Caneças para lhe fazer umas rezas e "desvirar o bucho" com azeite na barriga e no fim ela enrolou-lhe esta couve "para o bucho não fugir". Mas a reza deve ter corrido mal, porque a menina agora começou a sangrar dos ouvidos.
- Está bem, está bem, vamos lá ver o que tem a menina. Mas olhe, o mais provável é que a menina não tivesse o "bucho virado", o que deve ter acontecido é que a menina já estava com uma infecção nos ouvidos há mais dias e por isso é que chorava tanto, vomitava e não queria comer.
Os pais entreolharam-se, genuinamente aliviados, como se tivessem visto Deus!

Afinal não é só em Moçambique que existem doenças tradicionais!
07
Jun12

[baby m] momentos de dentro de casa

beijo de mulata

Baby M, o meu sobrinho mais novo, há meses que já não pára quieto nem por um suborno chorudo de bolacha maria torrada e iPhone na mão. Há dias, num momento de desespero no muda-fraldas, descobri que sua excelência se calava e mantinha quieto por tempo indeterminado se lhe cantasse esta música! Quais quais Noddys, quais Carochinhas? Temos homem, por supuesto!
05
Jun12

[outras palavras] uma coca-cola no deserto, ou a negação da teoria da zona de conforto

beijo de mulata


Coca-cola algures em Moçambique...


(continuando...)

Certa vez, dei por mim perdido em terra de nenhures. Vinha de viagem, andara uns 300 quilómetros numa carrinha de caixa-aberta, e estava a tentar apanhar um machimbombo que me faria regressar à Beira. A barriga apertava – há 16 horas que não trincava nada – e, na viagem seguinte, talvez houvesse alguém a vender comida, mas talvez não houvesse. O meu dinheiro era de menos, e os olhares sobre minha mochila eram demais. Nunca tinha estado naquela terra, não falava a língua local – e rareava quem falasse português.

Quando encontrei o desejado machimbombo, mesmo à porta dele, vi uma cena de pancadaria. Senti-me frágil, inseguro; estava esfomeado, perdido, e totalmente impotente em relação a qualquer imprevisto que surgisse.

Foi então que decidi beber uma coca-cola. A decisão parecia racional: alimento, hidratação e baixo preço; mas a minha motivação era outra. O seu sabor familiar, o gás previsível, o açúcar conhecido, a garrafa de vidro que a palma da mão advinha, foram, para mim, segurança e santuário! (Na idade média as pessoas podiam entrar em Igrejas, ou Mosteiros e pedir santuário: protecção total de tudo e de todos, mesmo do Rei). Ora, também eu – mesmo que só por segundos – recebi santuário da coca-cola, ou melhor, recebi santuário por fazer algo controlado. Quando parecia que tudo me escapava, um gesto simples, beber uma bebida minha conhecida, foi o suficiente para me recompor. E segui viagem.

Lidar com o desconhecido e o novo traz insegurança e dúvida. Embora seja mais fácil descrever essa fragilidade numa viagem perdida em África, isso também acontece nas relações pessoais.(...) Não sou um receptáculo vazio, tenho uma biografia, uma história, uma família, referenciais próprios. E são os meus referenciais que me permitem (tentar) ser bilingue. Não há intérpretes universais: pessoas que falem todas as línguas, e que percebam todas as racionalidades; mas, percebendo como eu próprio penso, posso tentar enquadrar o raciocínio do outro, posso tentar conhecê-lo.

Parece-me que pôr um pé num sítio firme é condição para poder experimentar a novidade. Beber uma coca-cola dá tranquilidade, escrever uma mensagem a quem pensa como eu ajuda a compreender o que está fora de mim. Estes gestos insignificantes ganham uma carga que os excede porque são tentativas de regressar ao conhecido, de ter os pés seguros, firmes. Paradoxalmente, se não tenho um pé firme, não chego à novidade. Só o saber quem sou e de onde venho, me leva ao outro.

Manuel Cardoso, sj
Perdido, em terra de nenhures
Crónica de Longe, Maio 2012
05
Jun12

[outras palavras] o machimbombo

beijo de mulata



Chapas e machimbombos, os meios de transporte colectivo de Moçambique...
Fotos da net (mais uma vez lamento mas não tenho o link...)


Fui deixar a Maria ao machimbombo às 3h da manhã - machimbombo é o nome dado aos autocarros aqui em Moçambique. Viajar num, pode ser uma risota: compra-se de tudo a vendedores que surgem de lado nenhum, ouve-se o inimaginável, cheiram-se novidades, toca-se o imponderável!

Por outro lado, é também um risco. Nunca se sabe o que vai acontecer: as avarias sucedem-se; os pneus furam sem terem suplentes; os destinos são alterados a meio do caminho; o cobrador pode mandar sentar uma pessoa ao colo doutro passageiro durante horas de viagem (a Maria já deu colo a um homem de fato e gravata durante 6 horas); os passageiros podem ser expulsos, deixados no meio do nada – porque a polícia está adiante e o machimbombo não tem licença para transportar tanta gente; e por aí adiante...

Poucas horas depois de partir num machimbombo amarelo cortado por riscas vermelhas, com a palavra «Jesus» escrita nos costados, a Maria escreveu-me um sms: “ta tudo óptimo, dormi até agora, acordei porque o gajo atrás de mim entornou fanta pa cima de mim”. Eu sabia que a Maria estava num machimbombo decrépito, também sabia que aquela estrada não tem estações de serviço – nem nada que se assemelhe – nos seus lentos quilómetros de calor e pó.

Comecei, então, a imaginar o que seria viajar ali molhado de Fanta: sentir o açúcar peganhento que derrete na pele com o calor, sentir a cadeira, furada e torta, colar-se a mim, e, pior que tudo, saber que nada disso vai desaparecer nas longas horas que faltam até ao destino. Identifiquei-me com a situação da Maria. Quando me acontece algo que não controlo, quando me sinto inseguro, sem qualquer poder sobre os acontecimentos, partilhar a impotência torna as situações desconfortáveis, em situações um pouco menos duras. Eu já mandei vários «desses» sms! Lembro-me dum de queixume – depois duma missa campal de seis horas alternando sol tórrido com chuva abundante; doutro de desespero – quando fiquei com o carro atolado dentro duma reserva de leões; doutro ainda de surpresa – na primeira vez que assisti a cerimónias tradicionais de evocação de antepassados. Todos esses sms eram pura necessidade de dividir essa fragilidade e, assim, retomar o ânimo.

(continua...)

Manuel Cardoso, sj
Perdido, em terra de nenhures
Crónica de Longe, Maio 2012

04
Jun12

[as melhores do serviço de urgência] serviço público

beijo de mulata
Há alguns anos, quando comecei a especialidade em Pediatria, ouvi pela primeira vez a expressão "gómitos"... Sim, pela primeira vez. Por favor, não me interpretem mal. Eu talvez até já tivesse ouvido a expressão anteriormente mas, como sou dona de dois ouvidos bem-educados, decerto que um deles ouvia delicadamente a palavra "vómitos" e explicava ao outro que não, que que tinha ouvido mal, que disparate, tomasse juízo que já ia sendo tempo, e continuava a conversa.

Até que um dia fui procurar a palavra à enciclopédia e a encontrei listada: "forma popular de vómitos". E fiquei descansada. No fundo era como dizer pilinha em vez de pénis, pensei. Cada um tem o direito a usar com os filhos as palavras que aprendeu em casa, que são as que têm um significado mais próximo da sua identidade enquanto família.

E nada mais haveria a acrescentar não fosse há tempos eu ter-me apercebido de que a enciclopédia estava errada! Os investigadores e linguistas que a escreveram poderiam ser muito conceituados e tudo e tudo, mas as suas fontes, por mais eruditas que fossem, não se equiparavam a um bom serviço de urgência. Há tempos estava, pois, uma mãe a dizer-me que o filho tinha tido "gómitos" a manhã toda.

- E quantas vezes vomitou o menino?
- Não vomitou, doutora, "gomitou".
- Sim, sim, mas consegue dizer-me quantas vezes foram?
- Isso não se consegue contar, doutora!
- Ah... então foram mesmo muitas, é?
- Mas como é que quer que eu saiba? Isso é importante?
- Sim, é muito importante, para perceber se perdeu muitos líquidos.
- Mas não perdeu líquido nenhum, doutora, o que é que eu disse?
- Disse que o menino tinha vomitado muitas vezes...
- Não, não foi isso que eu disse!
- Não percebo...
- A doutora é que não ligou nunhuma ao que eu disse! O menino tem tido é "gómitos" não vómitos!
- ... [Cara de ponto de interrogação. Valha-me São Luís de Camões!] Mas qual é a diferença para si?
- Para mim e para toda a gente! Vómitos é quando sai alguma coisa e "gómitos" são vómitos secos. É quando não sai nada!

Delicioso! Não sei quantos cursos é preciso tirar para compreender bem o Português... Mas enfim, aqui estou eu a tentar contribuir para um glossário popular da linguagem médica portuguesa. Como diria a Rita Maria, vá lá a gente não amar uma língua assim!
02
Jun12

[mr. b.] adoro-te, meu anjo!

beijo de mulata
Fez ontem quatro anos que cheguei mais uma vez a Lisboa, vinda de Moçambique. Deixava a Zambézia para trás, mas vinha com o coração cheio de futuros... Irias nascer no dia seguinte. Foste um menino lindo! Eu ia ligando à mamã das profundezas de África sempre que podia e recomendava-lhe: "Repousa, repousa, que eu quero chegar a tempo!" E tu esperaste por mim...

Faz hoje quatro anos que, no bloco de partos do hospital onde nasceste, pedi ao obstetra que me deixasse assistir à cesariana. Ele, correctíssimo, falou com a enfermeira responsável, que engraçou comigo e lá me fez essa concessão. Mal sabiam eles que o que eu e a tua mãe estávamos a magicar era outra coisa... Minutos depois, já completamente vestida, de mãos lavadas, touca e máscara, enchi-me de coragem e apresentei-me ao pediatra, que já tinha a mesa de reanimação montada e perguntei-lhe, com aquela minha voz de quem não aceita um não como resposta, se ele se importava que fosse eu a receber o meu sobrinho. Olhou-me, estarrecido, por cima da máscara. "A colega sabe o que está a fazer?!"

Sabia. E soube-me tão bem que ainda hoje me comove a primeira imagem da tua cara que só eu vi, o teu primeiro choro que só eu consolei, a primeira roupa que te vesti. O primeiro colo, fui eu que te dei! E quando, já aquecido, lavado e aspirado te fui levar a dar um beijinho à mamã, já ias como és agora: um homenzinho adorável! Parabéns, meu querido...

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