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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

05
Mai12

[iapala] a tradição...

beijo de mulata


Ao início da tarde fiz uma pausa para o almoço. Saí do hospital pela porta da frente e passei a uma distância próxima mas segura de um dos perus (a fêmea, percebi depois), que estava sozinha e voltada para o outro lado do alpendre. De repente, vi um objeto enorme cair sobre mim e só tive tempo de me desviar do “marido”, que estava empoleirado sobre o telhado da sala de esterilização e fez um voo picado sobre mim quando passei pelo “seu território”. Foi um susto valente e tentei enxotá-lo, naquela confusão de asas e penas esvoaçantes, mas ele estava de tal forma furioso, que achei por bem acelerar o passo e afastar-me rapidamente daquele cenário de bélico, antes que alguém se magoasse! Que bizarria... Um casal de perus ressabiados permanentemente estacionado à porta do hospital… Mas não haveria ninguém que os removesse dali?

Almocei à pressa e voltei o mais rápido que pude para junto do menino, que dormitava com uma respiração um pouco mais tranquila ao colo da mãe. Ao seu lado, junto da cama, havia uma cara nova. Era o avô materno, que tinha chegado da aldeia para ver o que se passava com o neto.

– Boa tarde.
– Boa tarde, irmã.

Assim que me viu, o menino agitou-se. Recomeçou a gemer. Voltei a dar-lhe soro. Sempre que eu parava ele gemia e reclamava por mais. A família voltou a sair da enfermaria, deixando-me com a mãe, que não arredava pé da cabeceira do filho. Pouco depois, o avô voltou para junto de nós. Pediu a palavra com um gesto e sentou-se.

– Irmã…
– Sim?
– Irmã, peço alta para esta criança.
– Como?!
– Irmã, estou a pidir alta do hospital. Queremos ir para casa.
– Mas a criança está muito doente, os senhores não a podem levar assim, ele vai morrer no caminho se se forem embora agora!

Calou-se, pensativo. Procurava outros argumentos.

– Irmã… não ficou mais família nenhuma em casa. Podemos ser roubados a qualquer momento. Temos de voltar ou então perdemos tudo.
– Mas o senhor pode voltar. O menino e os pais vão depois, quando ele estiver melhor.
– Mas irmã não vai curar o menino…
– Vou pelo menos tentar. Esta mamã é sua filha?
– É a minha filha, sim.
– Ela é testemunha de que ainda não saí do lado desta criança.
– Sim, eu sei.
– Eu estou a tentar tratá-lo!

Silêncio. Ganhava fôlego para novo argumento:
– Irmã, mas esta também é uma doença que vem da trad’ção. Irmã não vai conseguir curar o menino e ele vai morrer aqui.

Então era isso? A questão era morrer ali no hospital e não propriamente morrer… Tinha aprendido dias antes com a irmã Lurdes que na tradição macua, se as pessoas morressem num local distante de onde tinham nascido, os seus espíritos não encontrariam o caminho de volta e poderiam transformar-se em espíritos malignos, que atormentariam a família até ao fim dos seus dias.

– Papá, escute uma coisa: prometo-lhe que se o menino morrer eu vou levá-los a casa! Dou-lhe a minha palavra.

Pensou um pouco. Anuiu, por fim, com um gesto e saiu novamente para o pátio. Continuei a dar soro ao menino, enquanto as dejeções líquidas continuavam. A tia de vez em quando entrava para substituir os panos e as capulanas que serviam de fralda. Ofereci-me para levar os panos ao nosso empregado para ser ele a lavá-los. Estava em pânico que a família os fosse lavar ao rio e desencadeasse um surto de cólera por ali também. À cautela, de manhã tinha levado um frasco de lixívia para desinfetar as mãos dos familiares e a cama, mas todo o cuidado era pouco. Assentiram, com um esgar de surpresa, sem coragem de recusar. Quando a esmola é grande o santo desconfia...

(continua...)
04
Mai12

[iapala] uma luta contra o tempo...

beijo de mulata


O ameaçador casalinho de perus de Iapala...
(Iapala, Nampula)

(continuando...)

Acordei cedo, mas obriguei-me a ir primeiro tomar o pequeno-almoço. Já sabia que quando começasse a trabalhar não voltaria a parar até me virem buscar para o almoço…

Fui direita à Pediatria, passando ao largo dos perus que, naquele momento, perseguiam os primeiros doentes da manhã que chegavam à urgência. O menino estava na sua cama, rodeado pela família, que o olhava com o mesmo olhar que eu vira à família do menino de Murralelo. Como se velassem um cadáver. Era o único que ainda estava no berço. Todos os outros meninos, na capulana das respectivas mães, já cirandavam pelo pátio. O menino, tal como eu temia, estava pior. Cada vez mais desidratado e com a respiração superficial dos doentes em agonia. Os lençóis da cama estavam encharcados por aquele líquido sem cheiro que lhe saía do corpo. A diarreia tinha continuado e ele não tinha voltado a beber líquidos. O soro continuava intacto, no mesmo nível em que o tinha deixado. Mas controlei-me.

– Mamã, deu soro à criança?
– Está a negar…
– Posso dar eu?

Encolheu os ombros… Dei-lhe soro novamente. Abriu a boca sem dificuldade e bebeu tudo. Repeti o processo.

– Vê, mamã? Ele não nega! 

Fiquei ali um bom bocado até serem 7 horas da manhã, tempo de ir receber as ocorrências e ouvir os “inventários”, sempre iguais, sem tirar nem pôr. O enfermeiro que tinha estado ao serviço durante a noite não mencionou qualquer ocorrência. Tudo normal. Medicação administrada. Doentes a evoluir como previsto. Respirei fundo, a ver se não perdia completamente a cabeça logo no segundo dia…

– O menino do berço 3 está com uma diarreia grave. Parece cólera. E a mãe, por qualquer razão, não lhe tem estado a dar soro.
– Se calhar não preparou soro como nós dissemos, doutora – respondeu o director.
– Sim, é verdade, não preparou. Mas quando vi que não tinha preparado, fui a casa e preparei eu própria e dei-o à mãe. Mas ela mesmo assim não lhe deu.

Olharam-me como quem pensa: “Mas onde é que esta estacionou a nave?”
– Ah, doutora, os doentes nunca fazem nada do que nós dizemos. É escusado.
– Mas porquê?
– São do povo. É esta a nossa cultura. Não compreendem o que é medicamento.
– Então é preciso ficar ali e ver se dão os medicamentos aos meninos.
– Doutora, não podemos estar sempre com o mesmo doente. Temos o hospital inteiro para cuidar. E os doentes nunca estão nas camas, são muito indisciplinados!

Em parte era verdade. Só havia um único enfermeiro por turno. Mas perceberia rapidamente que não estavam assim tão sobrecarregados com trabalho. Os enfermeiros passavam a maior parte do tempo sentados debaixo do cajueiro. Limitavam-se a distribuir a medicação à hora regulamentar, sentados na sua sala de trabalho, com os doentes em fila por ordem do número da cama. E se eu fizesse o que quer que fosse eles iam-se embora imediatamente: ora pois, se eu ia trabalhar, eles deixavam de ser necessários ali, como está bem de ver…

– Tudo bem, vamos trabalhar – disse o director.
– Sim, vamos – respondi –, mas depois da visita nas enfermarias não vou para a urgência. Ontem deixaram-me lá sozinha. Depois vou para a enfermaria de Pediatria cuidar do menino.
– Sim, doutora.

A meio da manhã voltei para a cabeceira do menino. Felizmente era o único doente verdadeiramente grave do hospital e podia dedicar-me a ele. Assim que me viu, a mãe pegou na seringa e fingiu que estava a dar soro ao filho. Mas era óbvio que não lhe tinha dado uma gota que fosse.

– Mas porque é que não lhe dá soro, mamã? Não vê que ele vai morrer se não lhe der?

Não respondeu. Peguei eu própria na seringa e continuei a dar-lhe soro. O resto da família saiu, deixando-nos às duas e ao menino ali… O director entrou na enfermaria ao fim da manhã, com um ar de gozo. Estava curioso de ver o que estaria eu a fazer ali há tanto tempo.

– Doutora, que está a fazer?
– Estou a dar soro ao menino.
Isshhh… É escusado, doutora. A mamã não vai dar soro à criança.
– Por isso mesmo estou a dar eu.
– Mas menino já está muito grave. Vale a pena ir morrer a casa…
– Sr. Sousa! Temos de tentar.
– Está bem. Doutora é que sabe.

O menino, ainda agarrado à vida, continuava a abrir-me a boca para o soro e a beber como se não houvesse amanhã. Mas a diarreia não abrandava. Comecei a estranhar. Já estava a fazer 24 horas que tinha sido internado e que eu lhe tinha prescrito o antibiótico. Já era tempo de estar a melhorar… Mas enfim, mais tarde ou mais cedo o antibiótico começaria a fazer efeito e haveríamos de ganhar terreno naquela batalha contra a desidratação.
(continua...)
01
Mai12

[iapala] uma noite absolutamente desconcertante...

beijo de mulata
(continuando...)

Voltei ao hospital,empunhando a minha lanterna. O casalinho de perus já tinha recolhido àintimidade do lar, e as luzes do hospital estavam desligadas àquela hora.
  
Dirigi-me à enfermaria da Pediatria, que já tinha a porta fechada. Osfamiliares dormiam cá fora, deitados sob o alpendre, as mulheres cobertas comcapulanas, os homens cobertos com mantas ou sem nada. Passei cuidadosamenteentre as pessoas, tentando não acordar ninguém, mas percebi que não dormiam.Estavam apenas deitados porque não havia luz e portanto não havia mais nada quefazer. Na enfermaria, deitadas nos berços, sob as redes mosquiteiras abertas,as crianças dormiam, embaladas pelo doce cantar de duas ou três mamãs, a váriasvozes. Sempre a várias vozes! Parece que não há outra maneira de cantar nestaterra se não da forma mais bonita e harmoniosa que existe… Não compreendo o quedizem. Semanas mais tarde haveria de aprender a música e trauteá-la para umadas irmãs moçambicanas, que me traduziu esta música tradicional macua que asmamãs cantam para adormecer os filhos:

“Queroagradecer-te por teres nascido
dorme,meu amor, fica tranquilo
porqueenquanto estiveres a dormir
eufico aqui a repetir o teu nome.”

Que poema lindo! A mãe domeu menino já dormia, recostada na cama do filho. Detive-me um pouco aobservá-lo. O menino dormia também, mas tinha a respiração acelerada de quemtem uma desidratação grave e está em sofrimento, prestes a entrar em choque… A mãe acordou sobressaltada com a minha presença, pareciaassustada por me ver ali.
– Como está a criança?
– Ainda*…

Olhei para o chão. Ao ladoda cama, o soro que tinha preparado estava praticamente intacto! A mãe não lhotinha dado! Não percebia o que se passava, palavra… Resolvi jogar ao ataque,com o meu ar paternal-zangado nº 45:
– Mamã, tem de dar soro aomenino, senão ele vai morrer!
– Menino não quer… Tem dordi barriga – agora, que já tinha umpouco mais de confiança em mim, começava a responder às minhas perguntas.Afinal entendia Português. E falava um bocadinho…
– Tem de insistir! Elemorre se não lhe der!
– É custoso… – articuloucom dificuldade.
Peguei eu própria no soroe na seringa que tinha dado à mãe e acordei o menino. Tomou tudo o que lhe deinum ápice. Gemeu a seguir, voltando-se para mim, e teve nova dejecçãodiarreica. Ofereci-lhe mais soro e abriu a boca de imediato. Não tivedificuldade nenhuma em dar-lhe mais de meio litro quase de seguida. De cada vezque eu fazia uma pausa, com medo que ele vomitasse, recomeçava a gemer. A mãechorava em silêncio, como se estivesse a assistir, impotente, ao sacrifício doseu filho. Nem eu nem ela compreendíamos as razões de cada uma… Ela nãopercebia a razão da minha zanga, eu não percebia como é que ela, tendo soro àdisposição, não o dava ao filho e o deixava morrer nos braços! As outras mãestinham acordado e olhavam-nos surpreendidas, em silêncio. A família do meninotinha entrado e olhava-me também, com um ar impenetrável, sem dizer palavra.Mas o que é que se estava a passar? Ao cabo de uma hora, o menino tinha bebidoquase três quartos do soro e chorava com mais vigor.
– Se calhar quer peito,mamã. Ponha-o à mama…

A mãe não se moveu.Coloquei-o eu própria ao peito da mãe e mamou com alguma força, adormecendo emseguida. A mãe chorava, sempre em silêncio. Eu continuava sem perceber o quequer que fosse. Fui a casa preparar mais soro e entreguei-o à mãe. 

– Sempre que o meninoacordar tem de lhe dar!
– Sim, irmã.
O pai, pela primeira vezdirigiu-me a palavra:
– Obrigado!
– De nada, papá. Atéamanhã, boa noite.
Fui-me deitar, preocupadae completamente desconcertada com o que tinha acabado de acontecer. O que teriaaquela mãe? Mil e uma hipóteses absurdas me passavam pela cabeça. Acabei poradormecer de exaustão.

* Expressão abreviada que quer dizer "ainda não".

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