Fotos de uma visita à Gorongosa nos anos 60 (por Jorge Ribeiro Lume)
(Parque Nacional da Gorongosa, Sofala)
(continuando...)Ora eu já vinha dando apoio ao projecto de instalação da empresa de safaris havia dois anos e tinha contratado caçar com a Negomano Safaris, mas combinara antes disso com o Manuel Carona, caçador profissional e sócio-gerente, que entre a partida e vinda de outros clientes iríamos passar uns dias com as nossas mulheres em Pangane, uma povoação na praia a Norte de Pemba, onde alugamos uma casa, por sinal a única de cimento, que era posto comercial de um chinês. A aldeia era habitada maioritariamente por pescadores que se dedicavam a secar o peixe. Existia mesmo uma curiosa e rudimentar estrutura frigorífica mantida por gerador para armazenar lagosta e onde era proibida a entrada não autorizada (com letreiro e tudo!). Para lá seguiram o Unimog, equipamento e pessoal necessários para a estadia. Além de mergulhar e pescar, de visitar o lindíssimo litoral e as numerosas ilhas, iria acompanhar o Manel, a quem havia sido solicitado apoio às populações, procedendo ao abate selectivo dos animais que faziam perigar vidas humanas e colheitas.
Por cerca de duas semanas percorremos a região, as lagoas, rios, matas e numerosos povoados, contactando de perto uma gente absolutamente isolada que nos festejava e sobretudo às duas senhoras brancas (coisa rara) com entusiasmo, regressada a um quase selvagismo, porém amável, inteirando-me do seu viver e da dura realidade de uma África já contaminada pela coca-cola, a mais terrível e implacável arma da colonização jamais inventada! Umas vezes rompendo ou abrindo caminho por força e graça do Unimog para chegar a aldeias recônditas, outras vezes eram os próprios aldeãos que, à catanada, reabriam picadas esquecidas para que pudéssemos ir até junto deles! Nesta fase, pela necessidade de rapidez, das distâncias e dispersão pelo mato, usávamos sobretudo o Unimog mas não nos poupámos a uma ou outra caminhada, das de sol a sol.
Os elefantes, numerosos e descontrolados eram a maior queixa e receio pela consequente fome que provocavam, destruindo e comendo colheitas no campo ou já nos eirados e celeiros rudimentares de cana, mesmo atacando e matando alguns camponeses que tentavam espantá-los. Mas o grande tema de conversa em breve passou a ser o dos leões devoradores-de-homens!
Recordei que na "Ronda de África", Henrique Galvão falava destas feras e também de práticas de canibalismo a coberto da actuação dos leões. Muitos outros autores referem estas seitas secretas, cujo objectivo era o consumo de carne humana, como os homens-leopardo, os homens-crocodilo e os homens-leão em diversos pontos de África, consoante nos grandes rios, florestas ou savana, quando homens simulam o ataque destas feras para ocultar as suas actividades e assim se cria a lenda de que possuem o poder de se transformar em animais e retomar a forma humana. Pallejá relata mesmo a história de um "leão" que só comia gente da mesma família, causou desconfianças e conduziu à descoberta de um destes casos! Vai mais longe ao recordar que os macondes haviam sido antropófagos. O próprio Galvão narra um caso que investigou, em que duas mulheres e dois homens, usando peles e garras de leão, encenavam e disfarçavam os seus crimes, comendo as vítimas, inclusive fotografou-os em simulação e com detalhe, fotos essas que ilustram a sua obra e depois reunido esse e outros casos, deram origem a um dos seus mais divulgados títulos, e talvez dos mais controversos: “Antropófagos”, de 1947 - Diário de Notícias.
Numa tarde quente em fim de jornada, descansando e comendo à sombra de uma árvore falei disto ao Carona e a conversa alargou-se a um moço que era nosso guia. O Carona perguntou ao seu pisteiro-chefe, o velho Arruéque, celebrante de cerimónias mistas de Islão e animismo, se tinha algum conhecimento disto. O velho fez-se desentendido mas o outro rapaz, parecendo saber alguma coisa falou-nos num muito mau e limitado português, de homens-leão, espíritos da floresta que castigavam os homens maus e os que faziam mal à floresta ou uns aos outros. Eram leões-fantasmas, antepassados que tomavam esta forma para avisar ou punir... enfim coisas que podiam servir muito bem a diversos fins, explorando a crendice e superstição de pessoas simples. Ouvi atentamente e contei o que sabia destas e outras lendas, sempre de forma séria. O Arruéque, que eu vigiava disfarçadamente, não perdeu pitada mas sem se desarmar ou manifestar.
Kharamu - O Leão Ruge em Moçambiquein Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco
(continua...)