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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

22
Mai12

[outras palavras] "é leão?" "nada, é moçambicano mêmo!"

beijo de mulata



Os elefantes da Gorongosa, a cuidar da sua beleza com pó di terra...
Fotos daqui

(continuando...)

Uma outra noite, a caminho de uma espera aos elefantes que andavam a dizimar as machambas, atravessando uma aldeia - seriam umas 4 horas da madrugada -, veio ao nosso encontro um homem armado de catana. Era o chefe da povoação que pedia ajuda para perseguir um leão que pelas 20 horas tinha emboscado um rapaz à porta da palhota (julgo que era seu filho…). Não consigo descrever a expressão de angústia no rosto daquele homem e nem a impressão sentida. África dá-nos a provar todas as sensações, mesmo as do horror. O corpo do rapaz foi recuperado ao amanhecer, mas do leão não ouve notícias, perdeu-se na imensidão da mata cerrada.

Os rastos que víamos provavam haver vários leões. Atacavam onde calhava, num raio de muitos quilómetros e nada dizia ser apenas um, vicioso. Nunca foram ao isco da carcaça do elefante, que seria tentador havendo pouca caça-grossa, salvo bastantes facocheros, os elefantes e algum gado, sobretudo cabras, em que não tocavam. Atacavam sobretudo mulheres e crianças, ou isoladas ou as últimas de um grupo, de tal modo que por vezes nem davam por isso a não ser quando notavam a falta! Estando as aldeias muito dispersas, poder-se-ia pensar que seriam leões oportunistas tornados caçadores de homens pela fome e que criaram este hábito pela facilidade em achar esta presa de substituição, ou então...

Numa daquelas soberbas madrugadas, ao lusco-fusco avermelhado, sereno, fresco e húmido, quando mais se sente o cheiro do mato e da terra, ao nascer do Sol, o Manel Carona parou o carro e foi "atrás da moita", levado por uma necessidade menos poética mas imperiosa... o velho Arruéque saltou para cima da caixa da carrinha com a .375 e postou-se atento, comentando entre dentes a falta de cuidado do "patrão Manéle”.

Aproveitei estarmos sózinho e achando que podia abordar o assunto, pois o avaliador e sabido caçador-pisteiro, seco e franzino, que a despeito de ter menos um palmo de altura sempre parecia olhar por cima de mim, já devia ter percebido que o respeitava e às suas crenças. De forma monossilábica, no escasso português que comungávamos, trocámos então algumas palavras:

kharamu*, Arruéque?"
Ele de olhos semi-cerrados e impassível, sem me olhar directamente:

"Nada! É moçambicano mêmo."
"E não pode fazer nada, uma cerimónia?"
"Hum!” [Sim] e depois em tom de impotência conformada, “Eles não acredita..."
"Vão na escola e julgam que sabem tudo, não é? Mas as coisas que acontecem no mato não aprende na escola, não é?"

Luziram os seus estranhos olhos amarelados de velho leão, e numa espécie de sorriso de dentes incrivelmente gastos: "Sim!"

A verdade é que aquilo que desdenhamos sentados a uma mesa de café, ali naquele local e naquele ambiente tendo já ouvido "cantar o leão" ao dormir no mato, dito pela boca daquele homem faz outro sentido... aliás é por isso mesmo que há muito deixei de frequentar cafés!


* Kharamu - "Leão" em macua.
Kharamu - O Leão Ruge em Moçambiquein Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco
(A propósito d'A Confissão da Leoa de Mia Couto)
21
Mai12

[vozes brancas* #67] os pitéus dos antípodas...

beijo de mulata
Hoje na consulta de uma menina de quatro anos, com uma asma de difícil controlo, uma rinite alérgica e hemorragia nasal recorrente... Os pais, jornalistas que correm mundo em filmagens sobre vida selvagem, acabados de chegar da Austrália e com o jet lag estampado a negro debaixo dos olhos, vinham preocupados porque a filha tinha sangrado do nariz várias vezes na sua ausência.

- E então, como estás hoje, Madalena?
- Estou boa!
- E tens-te portado bem?
- Sim... mas, os pais dizem que não, que eu estou sempre a portar-me mal.
- E com que é que os pais ralham? O que é que tu fazes?
- Ah, é que eu tenho muitos "australia pitéus" e depois sangro do nariz...
- Muitos quê, querida?
- Muitos "australia pitéus".
- Mas o que é isso, é para comer?
- Não, eu não como! - gritou.

Os pais, quase adormecidos, recostados nas cadeiras da consulta, assistiam à conversa sem interferir...

- Está bem, querida, mas o que é que veio da Austrália?
- Não, vêm do nariz! - com um ar de "Dah, esta não entende nada!"
- O que é que a Madalena tem no nariz? - pergunto por fim aos pais.
- Tem "macacos" no nariz, nós chamamos-lhes Austrolapitecos... está sempre com o dedo no nariz, e achamos que é por isso que ela sangra!

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
21
Mai12

[outras palavras] os leões e a tradição...

beijo de mulata



Leões da Gorongosa...
(Parque Nacional da Gorongosa, Sofala)


(continuando...)

Lembro-me a propósito desta acção e influência do sobrenatural e da superstição, de uma peça que anos atrás via constantemente na TV Moçambicana a propósito das eleições, em que um feiticeiro trajado a rigor, deitava búzios e exclamava admirado: -"Eh! Não sei quem vai ganhar!". Logo aparecia um jovem, sorridente e moderno, que comentava: -"Pois não! O voto é secreto!".

Alguns dias depois desta conversa, juntámo-nos aos caçadores de três aldeias para dar batida a uma leoa que rondara um povoado. Andámos toda a manhã, metidos num mato baixo que porém nos cobria, cerradíssimo e inçado de espinheiras. Eu, o Carona e o Arruéque armados de carabinas, os restantes de arcos, flechas e as suas machadinhas. Confesso que ao ver-me rodeado de arqueiros silenciosos que estudavam o solo, deslizando pela mata fechada, tive um arrepio, uma espécie de déjà vu, como se saltasse para dentro das páginas de um livro de aventuras da minha juventude. Não sei bem explicar, mas, quantos de nós já vivemos tal e tão magnífica sensação e privilégio?

A pista da leoa era difícil de seguir e progredíamos pouco. Ora se perdia num espesso tapete de folhas, ora reaparecia na areia uns metros à frente. O Arruéque e algum mais sabedor tinham de se aplicar para poderem achar rasto num terreno seco e duro, tapado de erva seca e folhas, onde a pata almofadada do felino pouco vestígio deixava. As paragens eram frequentes e reuniam-se confabulando em surdina. Até que numa paragem, o Arruéque que tinha estado sempre calado, só trocando curtas impressões com o patrão, tomou a palavra. Ele é muito respeitado, tanto como pisteiro e caçador como por ser uma espécie de padre-feiticeiro ou coisa parecida, o que nunca consegui apurar muito bem por serem muito reservados nestes seus assuntos. As suas palavras fizeram silêncio e provocaram uma breve reunião numa clareira. Os três chefes das aldeias falaram cada um por sua vez e os outros ouviram apenas, acenado com as cabeças como é costume. Logo se desmobilizou a companhia e a caçada terminou.

No regresso perguntei ao nosso companheiro e fiscal, representante da administração que nos acompanhava, o que se passara: Ele explicou-me que o Arruéque perguntara aos caçadores se eles tinham a certeza de que perseguiam uma leoa ou se seria uma das suas avós! Os chefes haviam decidido interromper a caçada e iriam discutir o assunto em sede própria, e longe de nós por suposto. Assim terminou aquela caçada ao leão.

(continua...)
20
Mai12

[outras palavras] leões, elefantes e antepassados

beijo de mulata



Fotos de uma visita à Gorongosa nos anos 60 (por Jorge Ribeiro Lume)
(Parque Nacional da Gorongosa, Sofala)


(continuando...)

Ora eu já vinha dando apoio ao projecto de instalação da empresa de safaris havia dois anos e tinha contratado caçar com a Negomano Safaris, mas combinara antes disso com o Manuel Carona, caçador profissional e sócio-gerente, que entre a partida e vinda de outros clientes iríamos passar uns dias com as nossas mulheres em Pangane, uma povoação na praia a Norte de Pemba, onde alugamos uma casa, por sinal a única de cimento, que era posto comercial de um chinês. A aldeia era habitada maioritariamente por pescadores que se dedicavam a secar o peixe. Existia mesmo uma curiosa e rudimentar estrutura frigorífica mantida por gerador para armazenar lagosta e onde era proibida a entrada não autorizada (com letreiro e tudo!). Para lá seguiram o Unimog, equipamento e pessoal necessários para a estadia. Além de mergulhar e pescar, de visitar o lindíssimo litoral e as numerosas ilhas, iria acompanhar o Manel, a quem havia sido solicitado apoio às populações, procedendo ao abate selectivo dos animais que faziam perigar vidas humanas e colheitas.

Por cerca de duas semanas percorremos a região, as lagoas, rios, matas e numerosos povoados, contactando de perto uma gente absolutamente isolada que nos festejava e sobretudo às duas senhoras brancas (coisa rara) com entusiasmo, regressada a um quase selvagismo, porém amável, inteirando-me do seu viver e da dura realidade de uma África já contaminada pela coca-cola, a mais terrível e implacável arma da colonização jamais inventada! Umas vezes rompendo ou abrindo caminho por força e graça do Unimog para chegar a aldeias recônditas, outras vezes eram os próprios aldeãos que, à catanada, reabriam picadas esquecidas para que pudéssemos ir até junto deles! Nesta fase, pela necessidade de rapidez, das distâncias e dispersão pelo mato, usávamos sobretudo o Unimog mas não nos poupámos a uma ou outra caminhada, das de sol a sol.

Os elefantes, numerosos e descontrolados eram a maior queixa e receio pela consequente fome que provocavam, destruindo e comendo colheitas no campo ou já nos eirados e celeiros rudimentares de cana, mesmo atacando e matando alguns camponeses que tentavam espantá-los. Mas o grande tema de conversa em breve passou a ser o dos leões devoradores-de-homens!

Recordei que na "Ronda de África", Henrique Galvão falava destas feras e também de práticas de canibalismo a coberto da actuação dos leões. Muitos outros autores referem estas seitas secretas, cujo objectivo era o consumo de carne humana, como os homens-leopardo, os homens-crocodilo e os homens-leão em diversos pontos de África, consoante nos grandes rios, florestas ou savana, quando homens simulam o ataque destas feras para ocultar as suas actividades e assim se cria a lenda de que possuem o poder de se transformar em animais e retomar a forma humana. Pallejá relata mesmo a história de um "leão" que só comia gente da mesma família, causou desconfianças e conduziu à descoberta de um destes casos! Vai mais longe ao recordar que os macondes haviam sido antropófagos. O próprio Galvão narra um caso que investigou, em que duas mulheres e dois homens, usando peles e garras de leão, encenavam e disfarçavam os seus crimes, comendo as vítimas, inclusive fotografou-os em simulação e com detalhe, fotos essas que ilustram a sua obra e depois reunido esse e outros casos, deram origem a um dos seus mais divulgados títulos, e talvez dos mais controversos: “Antropófagos”, de 1947 - Diário de Notícias.

Numa tarde quente em fim de jornada, descansando e comendo à sombra de uma árvore falei disto ao Carona e a conversa alargou-se a um moço que era nosso guia. O Carona perguntou ao seu pisteiro-chefe, o velho Arruéque, celebrante de cerimónias mistas de Islão e animismo, se tinha algum conhecimento disto. O velho fez-se desentendido mas o outro rapaz, parecendo saber alguma coisa falou-nos num muito mau e limitado português, de homens-leão, espíritos da floresta que castigavam os homens maus e os que faziam mal à floresta ou uns aos outros. Eram leões-fantasmas, antepassados que tomavam esta forma para avisar ou punir... enfim coisas que podiam servir muito bem a diversos fins, explorando a crendice e superstição de pessoas simples. Ouvi atentamente e contei o que sabia destas e outras lendas, sempre de forma séria. O Arruéque, que eu vigiava disfarçadamente, não perdeu pitada mas sem se desarmar ou manifestar.

Kharamu - O Leão Ruge em Moçambique
in Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco

(continua...)
19
Mai12

[são tomé e príncipe] na roça com os tachos

beijo de mulata








A Roça São João, gerida por João Carlos Silva, o cozinheiro do programa "Na Roça com os Tachos", grande embaixador da cultura Santomense. Um almoço inesquecível... Na verdade eu sou uma fácil (as meninas do Técnico quase que me podiam acusar de dumping): é preciso bem pouco para me fazer feliz!
(Roça São João, São Tomé e Príncipe)
19
Mai12

[outras palavras] as batidas ao leão

beijo de mulata

Foto de leão da Gorongosa... Daqui.


(continuando...)

Algumas destas aldeias e vilas remotas, perdidas no mato, têm vindo a ser flageladas pelos leões. As pessoas só se deslocam em grupos e de dia, as casas têm altas cercas, e há mesmo aldeias abandonadas pelos habitantes que se concentram nas sedes, como pude constatar.

Nos meses anteriores à nossa passagem por Mocímboa, haviam os leões morto 47 pessoas confirmadas, segundo relato e informação das autoridades, que recebiam estas queixas. E os elefantes ainda eram piores, pois comendo e destruindo as lavras semi-abandonadas pelos seus cultivadores, refugiados nas aldeias maiores pelo medo ao leão, ameaçavam provocar a fome nesta região. Foi nesse sentido que solicitaram ao meu amigo Manuel Carona que os localizasse e abatesse! A carne seria da população e o marfim recolhido pelo serviço da fauna, numa medida de gestão de super-abundância.

Durante as nossas deambulações na região, atrás dos elefantes, começaram, a partir de certa altura, a contar-nos episódios com leões! Víamos as suas pegadas em volta das habitações, seguimo-los no mato e contactámos directamente com a morte de um rapaz, naquilo que pode ser viver, realmente, no mato.

No último dia em que fomos tentar perseguir um leão agressor, tendo saído de noite, regressámos à casa na praia ao fim da manhã, frustrados, cansados e aborrecidos pelo insucesso e dificuldade da empresa num mato muito cerrado com chão seco, duro e cheio de folhas, onde o leão não deixa rasto. A melhor prática era a visita regular e de madrugada às carcaças dalgum elefante abatido, donde todavia não comiam senão os macondes, (os macuas islamizados não comem elefante) mesmo depois de esta já estar bem "maturada", com oito dias de exposição e larvas aos metros cúbicos, cujo cheiro se sentia a 300 metros.

- "Maconde come tudo o que não lhe dá os bons dias”, dizem os macuas!

No caminho, por razões alimentares e para júbilo do Sverenga, um caçador local, fiz com a .458 um doble aos facocheros que sendo muito abundantes também causam prejuízos nas culturas, por sinal um deles bem bom de dentes! Quando chegámos a casa, encontrámos ali um jovem casal europeu no melhor estilo “eco-hippie-ONG”, típicamente ataviados de lenços e camisas largas indianas, sandálias e mochila, ela de farta cabeleira crespa apanhada, cheia de missangas, búzios e ornamentos como uma selvagem urbana, e ele de cabelo e barba curtos mais os fatais óculos redondos de armação em metal. Não percebemos quem eram ou de onde vinham mas andavam a passeio segundo diziam. Ela falava em francês, ele num português com sotaque abrasileirado. Após confirmarem que os poderíamos albergar e alimentar, a rapariga, pálida, reprovadora e julgo que não vegetariana porque depois e talvez por caída na realidade de onde estavam e não haver por ali restaurante nem supermercado fez-se ao bife dos facos, inquiriu imediatamente com a desfaçatez de quem se julga dono do mundo, porque é que “estávamos a matar animais”? O Manel Carona, com pouca paciência, resumiu o que se estava a passar. A jovem trocou imediatamente o ar seguro de missionária convicta por uma expressão de pânico, e perante confirmação das pessoas que ali se encontravam, declarou decidida ao companheiro que acabava ali o passeio e não abandonaria as paredes do pátio nos dois dias em que ficariam à espera da boleia de regresso. Nós, os "maus", partimos naquela tarde para Montepuez.

(continua...)

Kharamu - O Leão Ruge em Moçambique
in Revista Calibre 12, 2001
António Luiz Pacheco

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