01
Mai12
[iapala] uma noite absolutamente desconcertante...
beijo de mulata
(continuando...)
– Sempre que o meninoacordar tem de lhe dar!
* Expressão abreviada que quer dizer "ainda não".
(continua...)
Voltei ao hospital,empunhando a minha lanterna. O casalinho de perus já tinha recolhido àintimidade do lar, e as luzes do hospital estavam desligadas àquela hora.
Dirigi-me à enfermaria da Pediatria, que já tinha a porta fechada. Osfamiliares dormiam cá fora, deitados sob o alpendre, as mulheres cobertas comcapulanas, os homens cobertos com mantas ou sem nada. Passei cuidadosamenteentre as pessoas, tentando não acordar ninguém, mas percebi que não dormiam.Estavam apenas deitados porque não havia luz e portanto não havia mais nada quefazer. Na enfermaria, deitadas nos berços, sob as redes mosquiteiras abertas,as crianças dormiam, embaladas pelo doce cantar de duas ou três mamãs, a váriasvozes. Sempre a várias vozes! Parece que não há outra maneira de cantar nestaterra se não da forma mais bonita e harmoniosa que existe… Não compreendo o quedizem. Semanas mais tarde haveria de aprender a música e trauteá-la para umadas irmãs moçambicanas, que me traduziu esta música tradicional macua que asmamãs cantam para adormecer os filhos:
“Queroagradecer-te por teres nascido
dorme,meu amor, fica tranquilo
porqueenquanto estiveres a dormir
eufico aqui a repetir o teu nome.”
Que poema lindo! A mãe domeu menino já dormia, recostada na cama do filho. Detive-me um pouco aobservá-lo. O menino dormia também, mas tinha a respiração acelerada de quemtem uma desidratação grave e está em sofrimento, prestes a entrar em choque… A mãe acordou sobressaltada com a minha presença, pareciaassustada por me ver ali.
– Como está a criança?
– Ainda*…
Olhei para o chão. Ao ladoda cama, o soro que tinha preparado estava praticamente intacto! A mãe não lhotinha dado! Não percebia o que se passava, palavra… Resolvi jogar ao ataque,com o meu ar paternal-zangado nº 45:
– Mamã, tem de dar soro aomenino, senão ele vai morrer!
– Menino não quer… Tem dordi barriga – agora, que já tinha umpouco mais de confiança em mim, começava a responder às minhas perguntas.Afinal entendia Português. E falava um bocadinho…
– Tem de insistir! Elemorre se não lhe der!
– É custoso… – articuloucom dificuldade.
Peguei eu própria no soroe na seringa que tinha dado à mãe e acordei o menino. Tomou tudo o que lhe deinum ápice. Gemeu a seguir, voltando-se para mim, e teve nova dejecçãodiarreica. Ofereci-lhe mais soro e abriu a boca de imediato. Não tivedificuldade nenhuma em dar-lhe mais de meio litro quase de seguida. De cada vezque eu fazia uma pausa, com medo que ele vomitasse, recomeçava a gemer. A mãechorava em silêncio, como se estivesse a assistir, impotente, ao sacrifício doseu filho. Nem eu nem ela compreendíamos as razões de cada uma… Ela nãopercebia a razão da minha zanga, eu não percebia como é que ela, tendo soro àdisposição, não o dava ao filho e o deixava morrer nos braços! As outras mãestinham acordado e olhavam-nos surpreendidas, em silêncio. A família do meninotinha entrado e olhava-me também, com um ar impenetrável, sem dizer palavra.Mas o que é que se estava a passar? Ao cabo de uma hora, o menino tinha bebidoquase três quartos do soro e chorava com mais vigor.
– Se calhar quer peito,mamã. Ponha-o à mama…A mãe não se moveu.Coloquei-o eu própria ao peito da mãe e mamou com alguma força, adormecendo emseguida. A mãe chorava, sempre em silêncio. Eu continuava sem perceber o quequer que fosse. Fui a casa preparar mais soro e entreguei-o à mãe.
– Sempre que o meninoacordar tem de lhe dar!
– Sim, irmã.
O pai, pela primeira vezdirigiu-me a palavra:
– Obrigado!
– De nada, papá. Atéamanhã, boa noite.
Fui-me deitar, preocupadae completamente desconcertada com o que tinha acabado de acontecer. O que teriaaquela mãe? Mil e uma hipóteses absurdas me passavam pela cabeça. Acabei poradormecer de exaustão.
* Expressão abreviada que quer dizer "ainda não".