A montanha mágica de Iapala...
(Iapala, Nampula)
(continuando...)Nessa tarde, uma das irmãsveio chamar-me depois da sobremesa: “Venha tomar café aqui na varanda, que asmeninas querem conhecê-la.” Saí para a varanda que dava para o pátio, ondesessenta meninas me esperavam, todas juntas e com um sorriso. Cumprimentei-as,apresentei-me, disse quem era e ao que vinha. Elas continuavam num silêncioenvergonhado. Até que lhes perguntei: “E vocês, não se querem apresentar?”
Duas ou três começaramentão, casualmente, a entoar uma música simples mas lindíssima, cantada emMacua, que queria dizer apenas: “Bem-vinda, você é linda, queremos conhecê-la.”
E aconteceu então aquele momento mágico que me deixou rendida àquelas meninas e a Iapala...Recordo que foi nessatarde que, no meio das meninas, houve uma que de raspão me fez reparar nelaporque tinha uma face que me pareceu estranha. Uma face estranha mas ao mesmotempo estranhamente familiar... [Os cinzentões da Pediatria chamar-lhe-iam faciessindromática, mas eu não costumo ter dessas pretensões, muito menos no meioda savana, e portanto não lhe chamei nada. De qualquer modo naquele momentoestava demasiado ocupada a derreter-me com as danças, os cânticos e os batuquesde boas-vindas e a deslumbrar-me com a algazarra que sessenta adolescentesconseguiam fazer...] Ficou-me apenas uma estranha sensação nas traseiras damente.
Fui novamente ao hospitalmas, como naquele momento não havia mais nenhuma urgência, voltei para casapara saber se alguém queria ir comigo dar um passeio de reconhecimento nosbairros das redondezas. Precisava de compreender, pelo menos de relance, ascondições de vida das pessoas que acorriam ao hospital e os nomes dos bairrosmais próximos. Por coincidência, uma das meninas que se ofereceu para meacompanhar era a mesma que me tinha chamado a atenção pouco tempo antes e, àsegunda vez que olhei melhor para ela, percebi o que era que ela tinha deespecial: um pescoço largo com uma espécie de "asas", um troncotambém largo e uma face um pouco grosseira. Olhei para o peito dela e percebiuma total ausência de volume sob a blusa. Tinha Síndrome de Turner, de certeza.[Para quem não está familiarizado com doenças genéticas, posso explicar que elaera menina, mas tinha nascido sem um dos cromossomas X.]
Aproveitei para meterconversa:
– Como te chamas?
– Artemisa, tia P.
– Que nome tão bonito. É onome de uma planta medicinal, sabias?
– Sabia, sim, as irmãs jáme tinham dito.
– E sabes que remédio sepode fazer com ela?
– Remédio para a malária.
– Isso mesmo! E em queclasse estás na escola?
– Estou na décimaprimeira.
– Ah, muito bem. E quantosanos tens?
– Tenho vinte.
– Olha... e diz-me umacoisa, já és menstruada?
– Não, tia P. – oseu olhar, subitamente infeliz, fez-me perceber a minha horrível falta de tacto–, ainda não...
Calei-me durante um bocadoe tentei desviar a conversa, enquanto me sentia culpada por ter recordado assimde chofre àquela menina, ainda para mais em frente da sua amiga, que ela aindanão era mulher. E enquanto prosseguia a conversa sobre o dia a dia na escola,fui fazendo, angustiada, um filme sobre a desgraça que se abateria sobre aquelajovem.