(Há oito anos atrás, quando terminei o curso de Medicina, tive umas férias de três meses antes de começar o internato. Foi aí que, pela segunda vez, parti para Moçambique em voluntariado. Desta vez para Iapala, uma localidade no meio do mato, no Norte de Moçambique, a 180 km de Nampula. Já em tempos vos contei como foi o meu primeiro dia em Iapala. Agora conto-vos como foi começar a trabalhar no hospital...)
A enfermaria de Pediatria do hospital da missão.
(Iapala, Nampula)
Em Iapala o trabalhono hospital começava às 07:00 em ponto. No pátio do hospital, em frente à salade triagem, dois perus enormes debicavam o chão, numa ciranda incessante eperseguiam os transeuntes menos cuidadosos que se atravessavam no seuterritório demarcado. Inchados e de cauda aberta, num glu-glu-glu trôpego eameaçador. Desviei-me deles como pude, ante o olhar divertido dos presentes. “Será que isto é uma praxe dirigida aqui à caloira?”, ocorreu-me, e entrei nohospital.
Os trabalhadores dohospital já me esperavam, todos de pé, perfilados na sala de urgência dosadultos. Pareciam um pouco nervosos. Ou desconfiados, não sabia bem… Era aprimeira vez que iam ter uma médica a trabalhar com eles. [Sim, pode parecerinacreditável, mas o hospital ainda hoje não tem qualquer médico; funciona sócom técnicos, enfermeiros e serventes…] Os enfermeiros do turno da noiteempunhavam os livros de ocorrências, prontos para comunicar o que se passaracom os doentes durante o turno e os serventes tinham já os livros de inventárioabertos. Olhavam para mim de forma mais ou menos disfarçada e com curiosidade.Apresentei-me, disse que me sentia muito grata por estar ali a trabalhar com umpovo tão amistoso num local tão lindo como Iapala, que só pelas montanhas epela beleza da noite já tinha valido a pena uma viagem de tão longe, e queesperava poder ajudar em tudo o que estivesse ao meu alcance… Deram-se porsatisfeitos e começaram a passar as ocorrências: a principal fora que asfamílias de duas crianças internadas tinham fugido com elas nessa noite.
– Fugiram? Mas porquê? –perguntei.
– Ainda estavam a piorar ea família já estava aqui há mais de um mês… – o director respondia-me,impassível.
– O que tinham os meninos?
– Estavam desnutridos. Arecuperação estava a demorar muito tempo e a família deve ter resolvido irprocurar um curandeiro…
Não perguntei mais nada. Engoli emseco. Algo me dizia que ia ser muito mais difícil trabalhar em Iapala do que emMaputo. Era uma cultura tão diferente... Pelos vistos era uma ocorrêncianormal, porque ninguém parecia ter ficado surpreendido por duas famílias teremfugido na mesma noite, levando consigo crianças doentes que provavelmente jánão voltariam a ter oportunidade de ser tratadas.
(continua...)