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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

06
Fev12

[iapala] um quase-milagre, ou o epílogo, pronto

beijo de mulata
(continuando a história que começou aqui...)

Assisti à transfusão ao fim da tarde, com o sangue ainda quente, acabado de colher, que não havia tempo a perder em contemplações. Já nem sabia por que estava a fazer aquilo. Era só por descargo de consciência, para não me sentir culpada depois, porque o menino não tinha quase hipótese nenhuma! Em coma profundo há mais de 48 horas, com uma anemia gravíssima e insuficiência cardíaca. Já tinha estado com hipertensão intracraniana tão grave que tinha quase morrido, não fosse uma viagem intempestiva ao hospital mais próximo para fazer uma medicação de emergência. Tínhamos decidido fazer transfusão de manhã e já eram cinco da tarde quando a começámos... Tudo a correr mal, como sempre! O Sr. Cachimo brincava com os pais:

- É sangui di branca! Branca bem alimentada. É sangui forte! Minino vai ficar bom.
- Não diga isso, Sr. Cachimo, o menino está muito doente, não devemos dar esperanças aos pais.
  
E posso poupar-vos aos pormenoresdo que se passou em seguida. Posso dizer-vos que continuámos o tratamento e, oupela medicação, ou porque o menino ainda tinha a fontanela* aberta e portanto o crânio suportou todas as mudanças de volume do cérebro, ou por milagre… por mil razões que desconheço, na manhã seguinte, contratodas as expectativas, contra as minhas convicções mais profundas, quando o fui visitar não o encontrei na cama. Estava ao colo da mãe no pátio, em silêncio, a mamar olhando para ela... Não tinha metade do corpo paralisada, como eu temia. De facto, não aparentava sequelas nenhumas. Teve alta dias depois.

Eu não queria acreditar! Mais uma vez mereconciliava com o povo macua e com os seus valores de família e da vida. E admiravaa calma e a sabedoria da Irmã Lurdes… Podem dizer-me que os doentes não lêem oslivros. Eu também sei disso.

Mas só voltei a ver uma situação parecida uma vez no Gilé, na Zambézia. Um menino que também esteve em coma com malária cerebral. Depois de ter começado o tratamento e de o ter estabilizado constatei, horrorizada, que quando o estimulava, ele reagia em descerebração (um dos sinais mais graves de lesão cerebral e com prognóstico quase invariavelmente fatal; quando os doentes permanecem vivos ficam sempre com sequelas). Mais uma vez me arrependi em silêncio de o ter estabilizado e percebi que era fútil tentar medidas heróicas para o tratar. Mas, dias depois, o menino acordou enquanto eu o estava a observar, olhou para a mãe, sorriu e lançou as mãos ao meu estetoscópio vermelho, que balançava em frente aos seus olhos e começou a brincar com ele. Ainda estava um pouco lento… Mas dias depois brincava como uma criança normal! Sinceramente, meus amigos, não conheçonenhum médico que tenha visto uma criança recuperar sem sequelas depois de terestado em descerebração. Já perguntei a muita gente que trabalha em cuidados intensivos e nunca ninguém viu um fenómeno destes. Não estou a inventar. Tenho testemunhas!
  
Mas não gosto de pensar que foi um milagre. Perturba-me ter de recorrer a uma explicação não científica para compreender um fenómeno destes. Por isso peço-vos, meus amigos, para eu não estar sozinha neste mato sem saber o que pensar, respondam-me: O que acham disto? Alguma vez se arrependeram amargamente de ter reanimado alguém e depois tiveram uma surpresa deste tipo?

Agradecida...

* Fontanela – Nome técnico dado à separação entre os ossosfrontal e parietais na abóbada craniana, designado popularmente por“moleirinha”.
06
Fev12

[iapala] os rumores de santidade...

beijo de mulata

(continuando a história que começou aqui...)

Quando, dias depois, o Sr. Cachimome falou do rumor que corria em Iapala foi a minha vez de me intrigar. Fiquei desconcertada, confesso. Diria mais: de facto na altura fiquei um pouco desiludida até... Quase irritada. Porquê aquele alarido todo? Para quê aquela romaria ao hospital, alqueles olhares furtivos para dentro da enfermaria e do meu gabinete de consulta? Tinha sido apenas umaunidade de sangue. Um gesto banal que requer muito pouco esforço. Eu não tinha dado um rim, valha-me Deus! Não me tinha custadorigorosamente nada. Se eu tinha feito algum esforço tinha sido para estar aliem Iapala, longe de tudo e de todos, longe da minha família, de licença semvencimento e com uma passagem de avião paga por mim. Tinha sido difícil vencero receio, a inércia, a vontade de passar mais tempo com a família e com osamigos, o receio de sair da tal “zona de conforto”. Mas mesmo esse esforço,no fim de contas, não tinha sido assim tão grande. Somos felizes quando não desistimos e lutamospor aquilo que amamos! Mas claro, isso em Iapala ninguém se tinha questionado.Estava longe demais da sua própria realidade para perceberem o que quer queseja do esforço que tinha sido chegar ali. Dar sangue era um gesto que estavaao alcance de qualquer um e por isso conseguiam raciocinar sobre ele, colocar-seno meu lugar. Isto sim, deu-me que pensar…

06
Fev12

[movimentos civis] if you love me, shaw me!

beijo de mulata
You see things and you say "Why?". But I dream of things that never were, and I say: "Why not?"
George Bernard Shaw


Every blog should have its stalker! I think we should create the civil movement: "A Stalker for Every Blog!"

I love mine, you know... He comes here on a daily basis and I do care about him. Yesterday, for the first time in two years, he didn't come (even stalkers have a life of their own, I suppose) and I started worrying: is he ok? Can I do anything for him? That's when I thought about this movement to cherish stalkers... Because we care! Or, at least, beijo-de-mulata cares! What do you say?

[Adenda: Este post está em Inglês pelo simples motivo de que eu não conheço a palavra portuguesa para stalker e achei que ficava mal escrever um post em Português cuja palavra-chave não era portuguesa...]
06
Fev12

[iapala] dar sangue é ser herói?

beijo de mulata

O Sr. Cachimo a colher-me sangue...
(Iapala, Nampula)

(continuando a história que começou aqui...)

Horas depois o Sr. Cachimo entravana minha sala sem o sorriso habitual. Sem me olhar nos olhos, sem a vontade deme dar um beijo estampada do rosto. Estava preocupado.
– É mesmo preciso fazertransfusão?
– Sim, o que é que se passa?
– Já testei toda a família. Só amãe e o tio são compatíveis.
– E então?
– A mãe está di grávida e tem anemia de 7 gramas, não pode dar sangue e o tiotestou positivo.
– Positivo para quê?
– Para Hepatite B.
– E o menino não está vacinado?
– Nada, em Moçambique não sevacina para Hepatite B ainda. Talvez no próximo ano, agora não…
– Valha-me Deus, mas ele tem umafamília tão grande, é um grupo de sangue assim tão raro?
– Nada, ele é A positivo, mas nafamília são todos B ou AB.
– Valha-me Deus e agora? Costumahaver voluntários?
Isshh, aqui em Iapala? Nada… Ninguém quer dar sangue, só se forpara um familiar muito próximo! Dizem que os homens perdem a força para brincarcom as esposas e que mulher não consegue nascer depois.
– Que disparate!
– Sim, mas aqui todos têm anemia,é um esforço muito grande, fica-se fraco mesmo!
– O que é que podemos fazer?
– Não sei também. Problema di sangue... Iapala é assim a toda ahora.
– Vou pedir ao Senhor Padre paradizer na missa que há um menino que precisa de sangue. Pode ser que apareçamvoluntários.
Isshh, é uma batalha perdida…
– Bem… eu sou A positivo também!Acha que eles vão aceitar que eu dê sangue para o menino?
– Claro! Claro que sim, como não?Mas… mas… vai dar sangue? Não tem medo?
– Medo de quê?
– De não conseguir nascer depois…
– Cachimo, por favor! Não falecomo os doentes! Eles não fizeram um curso técnico, não foram à escola, nãosabem que o sangue se renova.

Baixou os olhos, envergonhado…
– Tem razão.
– Vamos lá então, vamos ver se eusou compatível. 

A família nem queria acreditar! Anotícia espalhou-se pela localidade inteira, mais rápida do que qualquer mánotícia (dizem que as más notícias obedecem a leis especiais de propagação eque se difundem mais rapidamente do que qualquer outro tipo de informação, sejaatravés de que meio de comunicação for, mas as fofocas também conseguem serrápidas). A médica que tinha vindo de Portugal ia dar sangue para um menino quenão conhecia! O que se passaria? Não estava a ter um caso com o pai da criança,não queria ganhar eleições, não estava a tentar ganhar reputação entre apopulação porque todos sabiam que se ia embora no final do mês… A que propósitoestaria ela a fazer um gesto tão gratuito e tão generoso? As pessoas ficaramgenuinamente comovidas. Passaram a olhar-me com outros olhos. Não só a família,mas toda a localidade.

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