28
Fev12
[casa do gaiato] as histórias da tia cármen
beijo de mulata
(continuando...)
Na Casa do Gaiato, o que os meninos mais gostavam de fazer era contar a história dosdesenhos, falar sobre as personagens, inventar diálogos, projectar-se nasfiguras. De vez em quando ouvia um dos meninos dizer:
– Hoje sou eu a contar uma história à tia Cármen!
E num fim de semana, enquanto ajudava alguns meninos com os trabalhos decasa na sala de estudo, tive a oportunidade de ouvir uma dessas tão faladassessões de “histórias” contadas à tia Cármen, com um menino de sete anos, quevivia na casa com o irmão mais velho de doze. O menino ia desenhando e compondolentamente a narrativa ao longo de várias folhas com múltiplos episódios,falando sobre as personagens, respondendo a pequenas perguntas. Se bem melembro, a história ia girando à volta de uma família alargada com muitascrianças, que vivia do trabalho no campo e passava fome frequentemente. Pelocanto do ouvido ia percebendo que o ambiente criado em torno da família eramuito ameaçador porque ia ouvindo a tia Cármen perguntar:
– Que animal é este dentro do lago?
– É um crocodilo.
– E o que é que ele está a fazer?
– Está à espera que as pessoas passem para a machamba*para as matar e comer…
– E o que é isto aqui em cima da árvore ao lado da casa?
– É uma cobra que está à espera que o mais novo passe com os irmãos paraa escola.
– Para quê?
– Para lhe morder.
– Porquê? Porque é que a cobra lhe quer morder?
– Porque os espíritos maus a mandaram.
– Mas achas que a cobra vai mesmo morder o menino?
Uma breve pausa para pensar e, depois, com um sorriso de quem encontrouuma solução e se reconciliou com o destino:
– Não, porque o irmão mais velho viu a cobra a tempo e conseguiu matá-la.
– Ah, que bom… E ele não teve medo?
– Não, ele é muito forte!
– E os pais, onde é que foram?
– Foram comprar peixe ao mercado.
E a história continuava, cheia de imagens da família idealizada eprotectora, culminando, no entanto, no desaparecimento súbito dos progenitores.Qual tinha sido o motivo?, perguntava a tia Cármen. Mas o menino não seresolvia, ora dizia que tinham sido os espíritos que os tinham levado, oradizia que tinha sido o menino que não tinha tomado bem conta do irmão bebé epor isso os pais se tinham ido embora zangados…
Era magistral a forma como a tia Cármen, sem nunca ter tido formação emPsicologia, respondia às mais íntimas angústias dos meninos referidas àspersonagens no papel. Fazia-os reelaborar a sua própria história de vida ecompreender melhor as suas emoções e circunstâncias, apaziguar-se com as suasperdas. E, mais bonito do que tudo isto, no final da história, assisti a ummomento absolutamente mágico, em que a tia Cármen olhou o menino nos olhos elhe perguntou:
– Então? Gostaste da história?
– Sim, tia Cármen.
– Eu também gostei muito, porque acho que o menino e o irmão eram muitocorajosos. E olha, sabes o que é que eu acho?
– Sim, tia Cármen?
– Parece que este menino se chama Rafael…
A face iluminou-se-lhe, num sorriso de espanto, como se pensasse “Comofoi que ela adivinhou que eu estava a falar de mim?” e o olhar de cumplicidadetrocado com a tia Cármen anunciava que estava um vínculo criado e lançada maisuma pedra na construção da auto estima e segurança do menino…
Era comentado por todos que os mais pequenos tinham ficado muito maiscalmos desde que a tia Cármen tinha chegado. Pudera...
* Machamba – Terreno de cultivo, normalmente do sector familiar.
(continua...)
Na Casa do Gaiato, o que os meninos mais gostavam de fazer era contar a história dosdesenhos, falar sobre as personagens, inventar diálogos, projectar-se nasfiguras. De vez em quando ouvia um dos meninos dizer:
– Hoje sou eu a contar uma história à tia Cármen!
E num fim de semana, enquanto ajudava alguns meninos com os trabalhos decasa na sala de estudo, tive a oportunidade de ouvir uma dessas tão faladassessões de “histórias” contadas à tia Cármen, com um menino de sete anos, quevivia na casa com o irmão mais velho de doze. O menino ia desenhando e compondolentamente a narrativa ao longo de várias folhas com múltiplos episódios,falando sobre as personagens, respondendo a pequenas perguntas. Se bem melembro, a história ia girando à volta de uma família alargada com muitascrianças, que vivia do trabalho no campo e passava fome frequentemente. Pelocanto do ouvido ia percebendo que o ambiente criado em torno da família eramuito ameaçador porque ia ouvindo a tia Cármen perguntar:
– Que animal é este dentro do lago?
– É um crocodilo.
– E o que é que ele está a fazer?
– Está à espera que as pessoas passem para a machamba*para as matar e comer…
– E o que é isto aqui em cima da árvore ao lado da casa?
– É uma cobra que está à espera que o mais novo passe com os irmãos paraa escola.
– Para quê?
– Para lhe morder.
– Porquê? Porque é que a cobra lhe quer morder?
– Porque os espíritos maus a mandaram.
– Mas achas que a cobra vai mesmo morder o menino?
Uma breve pausa para pensar e, depois, com um sorriso de quem encontrouuma solução e se reconciliou com o destino:
– Não, porque o irmão mais velho viu a cobra a tempo e conseguiu matá-la.
– Ah, que bom… E ele não teve medo?
– Não, ele é muito forte!
– E os pais, onde é que foram?
– Foram comprar peixe ao mercado.
E a história continuava, cheia de imagens da família idealizada eprotectora, culminando, no entanto, no desaparecimento súbito dos progenitores.Qual tinha sido o motivo?, perguntava a tia Cármen. Mas o menino não seresolvia, ora dizia que tinham sido os espíritos que os tinham levado, oradizia que tinha sido o menino que não tinha tomado bem conta do irmão bebé epor isso os pais se tinham ido embora zangados…
Era magistral a forma como a tia Cármen, sem nunca ter tido formação emPsicologia, respondia às mais íntimas angústias dos meninos referidas àspersonagens no papel. Fazia-os reelaborar a sua própria história de vida ecompreender melhor as suas emoções e circunstâncias, apaziguar-se com as suasperdas. E, mais bonito do que tudo isto, no final da história, assisti a ummomento absolutamente mágico, em que a tia Cármen olhou o menino nos olhos elhe perguntou:
– Então? Gostaste da história?
– Sim, tia Cármen.
– Eu também gostei muito, porque acho que o menino e o irmão eram muitocorajosos. E olha, sabes o que é que eu acho?
– Sim, tia Cármen?
– Parece que este menino se chama Rafael…
A face iluminou-se-lhe, num sorriso de espanto, como se pensasse “Comofoi que ela adivinhou que eu estava a falar de mim?” e o olhar de cumplicidadetrocado com a tia Cármen anunciava que estava um vínculo criado e lançada maisuma pedra na construção da auto estima e segurança do menino…
Era comentado por todos que os mais pequenos tinham ficado muito maiscalmos desde que a tia Cármen tinha chegado. Pudera...
* Machamba – Terreno de cultivo, normalmente do sector familiar.
(continua...)