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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

19
Jan12

[acordar em iapala] uma noite mal dormida...

beijo de mulata



Iapala de manhã...
(Iapala, Nampula)

É manhã novamente. Arrefeceu muito durante a noite e, na cama morna, minutos antes da hora de levantar, o já meu conhecido linguajar pluvial dos coqueiros recria uma ilusão outonal, calma e reconfortante, de chuva branda num Sábado de manhã. Recompensa justa por uma noite sobressaltada. Uma chamada urgente do hospital a meio da noite por causa de um menino de oito anos que chegou em crise convulsiva com malária cerebral, trazido pela família já em desespero.


Apesar de o hospital ser mesmo em frente à casa das Irmãs, o medo que as pessoas têm dos cães que guardam a Missão teria decididamente impedido que me fossem chamar durante a noite. Mas a Irmã Lurdes, sempre criativa para ultrapassar estas pequenas dificuldades, lá desencantou um sistema simplesmente hilariante para contornar o pânico que os africanos têm dos cães sem pôr em causa a nossa segurança: dois apitos de árbitro de futebol, adquiridos em Portugal no Estádio do Benfica pendiam no hospital pregados à parede, prontos para qualquer eventualidade.

E esta noite tinha sido acordada pelo silvo impaciente do "Glorioso" expulsando-me da cama com cartão vermelho. Vesti-me rapidamente, um pouco às apalpadelas e saí para a rua de lanterna em punho, que apesar do luar é preciso ver bem onde se pisa, não fosse aparecer alguma cobra perdida no jardim...

[Aqui de nada serve a valentia dos que dizem não ter medo de animais rastejantes: ingenuidade! Não temos soro antiveneno no hospital – não existe em toda a província – e nem quero imaginar como é que faria a mim própria o desbridamento de uma ferida sem qualquer anestesia. Mas, vá, vamos à história, que deixámos o menino a convulsivar à porta do hospital, com a família a dizer, como habitualmente, que o menino está possuído pelos antepassados. O que vale é que enquanto vos falava de cobras lhe administrei um medicamento e a convulsão lá cedeu...]

(continua)
19
Jan12

[outras palavras] olhar para dentro...

beijo de mulata
Recordo-me de um jantar em Lisboa em que se armou uma enorme barafunda. Estávamos em casa de uma figura pública portuguesa que lamentou, com aparente sinceridade, aquilo que chamou de «corrupção endógena» dos africanos. Na mesa houve vozes que protestaram: porquê apenas dos africanos? A conversa azedou e rapidamente derrapou para contornos raciais. Um português, nervoso, tomou a defesa dos africanos e enfrentou a tal figura pública nos seguintes termos: Quer Vossa Excelência dizer que, por cá, não temos corrupção?

... Seguiram-se acusações graves que fizeram adiar o propósito do encontro que era provar aquilo que havia sido apresentado como uma refeição inesquecível. Coube-me atirar água sobre a fervura. Mas era bálsamo tardio. Já havia mágoas irreparáveis. Um jantar é sempre mais do que uma simples refeição.

Anos mais tarde um dos mais animados participantes do malogrado jantar, de visita a Moçambique, mostrou-me um artigo de capa de uma revista lisboeta. O título era claro: uma certa excelência parecia não escapar das acusações de corrupção que sobre ele há muito pesavam. Reconhece quem é este?

Reconheci. Era a mesma pessoa que se lamentava da corrupção em África. O visitante português sacudiu a revista sobre a cabeça como prova de antiga razão. E eu sorri.

Na verdade, um dos maiores desafios dos africanos é fazerem-se respeitar como pessoas individuais e como entidades coletivas. Um passado (será que passou?) de preconceitos assumidos e declarados deu lugar a uma envergonhada arrogância («nós», dizem os europeus, não somos como «eles»). Ontem era a História que apenas tinha residência fora da África. Hoje, quem mora fora é a Ética.
Mia Couto in Revista África21

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