Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

31
Jan12

[desabafos de uma médica] proposta desonesta...

beijo de mulata
Confesso, meus queridos amigos, que já estou a ficar um pouco cansada da história da "cabeça grande", da gazela, dos tabus e da ética do povo macua... O problema é que não a podemos dar por terminada porque deixámos um menino em coma no hospital e ainda temos de ir cuidar dele quando acabarmos esta conversa.

Nem sei se alguém ainda se lembra por que é que estamos com esta conversa toda. Eu resumo-vos, então, se não quiserem ir ler a história a partir daqui: um menino de 15 meses chegou completamente em coma ao hospital de Iapala com malária cerebral e, quando percebi que ele estava em risco de vida e só havia um medicamento que o podia salvar, disseram-me que esse medicamento estava  trancado no armazém e que o director do hospital tinha ido à cidade e levado a chave com ele. Fiquei louca! Felizmente, a Irmã Lurdes, pragmática como sempre, acabou por tomar a iniciativa de nos meter a todos no carro até ao hospital mais próximo e conseguimos a medicação para o menino.

Chegámos ao hospital com ele vivo, mas ainda não percebi se fomos a tempo porque ele continua em coma. Neste momento só nos resta esperar e aqui estamos nós, à espera que o tempo passe, enquanto a Irmã Lurdes me tenta acalmar. Em conclusão, estamos num momento "Senhor, dai-me sabedoria para compreender este povo, porque se me derdes força eu vou desatar ao murro a toda a gente!".

Mas já estou cansada... Portanto, eis aqui a minha proposta [é desonesta, eu sei, mas quem diz a verdade não merece castigo]: eu digo-vos que acaba tudo em bem, que o menino fica bom, e passamos à próxima história. Que me dizem?
30
Jan12

[tabus e tradições] a cerimónia da gazela

beijo de mulata

Instante no Kruger Park
(África do Sul, foto da R.)


– Mas... e no meio disso tudo não há ninguém que fale claramente do que aconteceu, não há ninguém que clarifique os sentimentos ou que explique como é que se deve fazer para a próxima?
– Não, ninguém fala. Só às vezes os homens quando bebem.

– Mas não há ninguém com ética nesta terra? Ninguém que dê o exemplo?
– Há, claro! Muita gente. O que eu acho é que é muito injusto para as pessoas. Sobretudo para os jovens e para os adolescentes. Eles têm uma consciência e sofrem como toda a gente. Só que têm de aprender às próprias custas que sofrem menos se não fizerem certas coisas. Mesmo que essas acções não sejam condenadas pela sociedade. Ou mesmo que ninguém saiba.

– Pois!
– É isso que eu tento explicar às meninas todos os dias. Que podem evitar o “muru tokotokho”, ou os remorsos, como tu dizes, e vão sofrer muito menos se não brincarem com os afectos, se não se envolverem com alguém de quem não gostam, se não prejudicarem os outros, se não roubarem…

– E elas entendem isso?
– Acho que só entendem quando passam por isso.

– E o que é que faz quando elas apanham a tal “cabeça grande”?
– Eu mando-as fazer cerimónia, claro, senão não passa nunca mais…

– Mas isso é reforçar esse comportamento e essa tradição. Não se consegue mesmo desmontar estas crenças?
– Eu nem tento. Elas vão um fim de semana a casa fazer a cerimónia, têm colinho da família e vêm geralmente mais bem-dispostas. Mas depois falo muito com elas, tento fazer uma reflexão sobre o que fizeram e o que sentem.

– Mas elas dizem-lhe o que foi?
– Não, claro! Mas eu geralmente sei. Ou foi um namorado que as deixou, ou foi alguém de família que faleceu e com quem elas tinham discutido sem fazer as pazes, ou foi alguma coisa grave com as amigas… enfim… geralmente não é muito difícil de perceber.

– Pois, os adolescentes são iguais em todo o lado.
– Sim, só que acho que estes são mais frágeis… Têm de aprender muita coisa às suas próprias custas. E é preciso ser muito inteligente para perceber o que se passa e ter crítica sobre a sociedade e a cultura. Não é fácil ter crítica quando não se pode falar com medo do que possa acontecer…

– Pois… não deve ser fácil. Mas nessas cerimónias vem mesmo a família toda?
– Vêm os que podem. Mas sim, geralmente vêm todos.

– E deixam tudo o que têm a fazer porque a menina teve um namorico, está envergonhada e portanto é preciso ir matar uma gazela?
– Bem, se pões as coisas dessa forma…

(continua...)
29
Jan12

[inês] a leprosa de napipine...

beijo de mulata


Esta não é a Inês, obviamente, mas tem um sorriso parecido com o que ela tinha quando, por fim, me despedi de Iapala...
(Nampula, Moçambique)

Hoje é o Dia Mundial dos Doentes de Lepra. Já vos contei a história da Inês, a menina que fui procurar a Nampula porque, por qualquer razão que desconhecíamos, tinha abandonado a escola. A história é longa. Demorámos quase dois meses na viagem*... Algumas pessoas estiveram ao meu lado desde o início [com mais ou menos reclamações!]. Algumas desistiram. Outras foram saboreando a história. No fim, foram muitos os que me disseram que tinha valido a pena.

A Inês tinha deixado de ir à escola porque tinha uma doença de pele que a família pensava que era lepra e, depois de mil e uma peripécias, consegui que viesse ter comigo para a tratar:
"Quando achamos que já vimos de tudo, quando pensamos que já vimos todas as desgraças do mundo, que já vimos pessoas a morrer e a sofrer, a suportar aquilo que achamos que vai para além da força humana, parece que deixamos de estar preparados para aceitar que pode haver pior. Ainda pior.
Quem eu vi chegar nesse dia, sozinha e a medo, foi uma menina que tinha sido literalmente enterrada em vida pelas pessoas que mais a amavam… Uma menina sem brilho no olhar, pálida, esquelética, sem voz, com as feridas infectadas cobertas por uma pasta negra e seca de medicamento tradicional, restos dos dias mais horríveis da sua vida que permaneciam colados à pele. E que só saíram arrastando quase metade da pele com eles.

– Inês, ainda bem que vieste, estou mesmo feliz por teres vindo, estava à tua espera!

Baixou os olhos e nem respondeu. Obviamente eu não podia estar a falar a sério, como é que alguém podia ficar feliz por ver uma leprosa?"
* Para quem não sabe do que estou a falar, a história começa aqui, e a parte que fala concretamente da Inês começa mais adiante, mais precisamente aqui.
29
Jan12

[inspiração para uma despedida] o tesouro que te deixo...

beijo de mulata
Tenho apenas uma certeza. É que te deixei um tesouro. É verdade isto que te digo! Talvez um dia o compreendas, não agora, que sei que o desconforto ainda não se foi. Aquilo de mais precioso que te deixo não são as recordações do que vivemos, por mais bonito que tenha sido, mas a verdade que viste nos meus olhos quando te reflectiam, e a minha confiança inabalável em ti. Eu sei, não acreditavas nessa imagem de perfeição. Era um disparate, dizias. Era um delírio meu, pensavas. Talvez em algum momento tenhas quase acreditado, não sei. Mas isso é tão irrelevante... A única verdade é que tu gostavas dessa imagem. E é esse o motor de todas as vidas. E também o rumo e o sentido de todas elas: a vontade de se assemelhar a uma imagem reflectida.

De resto, deixo-te o que não vivemos. Acrescentado de um bocadinho de flor-de-sal: a convicção de que terias sido capaz. E que portanto é possível. Não comigo, obviamente, que já não estarei aqui. Mas tenho uma fé indestrutível de que vais ser feliz!

[Variações de Raoul Follereau]
28
Jan12

[a vírgula de oxford] occupy facebook

beijo de mulata

Graffiti no mural do Facebook
(Sede do Facebook, EUA)

Meus amigos, quem me conhece aqui do mato há mais tempo, ou mesmo quem já tropeçou no meu perfil por essa blogosfera acima*, sabe que sou uma fervorosa adepta de inutilidades gramaticais. E, em homenagem ao meu mentor espiritual [sim, o dos soluços, quem mais?],sou uma fã incondicional da vírgula de Oxford. É um guilty pleasure... E porque esta temática me é particularmente cara, fico sempre feliz quando alguém comunga deste meu interesse e portanto não resisto a partilhar convosco o diálogo genial que encontrei no mural de uma amiga aqui há dias... [O voyerismo também é um guilty pleasure, mas esse negarei até ao fim!]

[Amiga] - Se há coisa que me irrita é os alunos corrigirem-me as vírgulas antes das conjunções copulativas "e". Quando se põem a reclamar que "antes de e não se usa vírgula", gostava de saber quem é que lhes ensinou esta regra sem exceções, para desatar à bofatada!

[Comentadora A, também professora] - Que saudades da palmatória...
[Amiga] - À bofatada, mas não aos alunos... A eles só às vezes. Noutras situações...
[Comentadora B] - Adoro bofatadas. Isso e amandar apagadores e canetas de escrever no quadro.
[Comentadora C] - É incrível, ainda hoje quando as uso antes do "e" me sinto a transgredir.
[Comentador D, imagem de perfil obviamente manipulada, com um homem africano de cabeleira exuberante e um ar de quem meteu os dedos na tomada] - O verbo amandar é chelente! Vai fazer o jantar, Amanda!
[Comentadora B] - Mas que lindo penteado, D!
[Comentadora C] - Um bocado queimado...
[Comentadora B] - Bota esturrado nisso!
[Comentadora C] - Apetece desfazê-lo à mangueirada. E de caminho desenfarruscá-lo.
[Comentadora B] - Já agora, há pouco não frisei que tenho muito boa apontaria no que toca a canetas e mangueiras.
[Comentador D, o da cabeleira] - Nem por isso, acertaste da persiana...
[Comentadora B] - Estás consdipado?
[Comentador D] - Não, sou bimbo mesmo!
[Comentadora B] - Bimbo e com essa figura, olha que a dona deste muro expulsa-nos daqui!
[Comentador D] - Por acaso também me ocorreu isso. Esta conversa começa a parecer um graffiti em mural alheio.
[Comentadora B] - Olha como ela está aqui tão caladinha. Deve estar maldisposta, se calhar já íamos...
[Comentador D] - Sim, anda daí, e vamos vandalizar outro muro!
* Também pode ser "por essa blogosfera abaixo" ou "por essa blogosfera adentro", mas gosto de pensar que a blogosfera está para cima...
27
Jan12

[vozes brancas* #60] está ali um rei!

beijo de mulata
Ontem na consulta de um menino com três anos e meio, muito caladinho e envergonhado, escondido no regaço materno... E eu perguntava:

- E então, ele agora já fala melhor? Da última vez ainda estava com dificuldade na articulação de alguns sons.
- Ui, se fala, Doutora, bem demais!
- Então?
- Ai, nem queira saber, no outro dia foi a babá que o foi buscar ao colégio e passou uma vergonha no autocarro!
- Pois... ainda não há muita crítica nesta idade... Mas o que foi que aconteceu?
- Bem, eles iam a passar pela embaixada da Índia e entrou um senhor indiano com um turbante enorme, com uns brilhantes e uma roupa assim muito colorida e ele começou a dizer à babá: "Carla, está ali um rei!" e ela: "Sim, sim, querido, chiu, mais baixo." e tentou distraí-lo, mas ele continuava cada vez mais alto e a apontar para o senhor: "Carla, olha, olha para ali, está ali um rei!"
- Ahaha, lindo...
- Ela já nem sabia onde é que se havia de meter, porque estava toda a gente a olhar e a rir e o senhor muito encavacado... E ela: "Sim, querido, já vi. E o que é que fizeste hoje na escola?" E ele já completamente em euforia: "Carla, mas tu não estás a olhar! Está ali um rei! Eles foram levar presentes ao menino Jesus! É o Belchior!"

* Timbre da voz de uma criança antes da puberdade.
27
Jan12

[educação estética] e a "cabeça grande"

beijo de mulata
(continuando...)

– Ou seja, vergonha não é roubar, vergonha é roubar e ser apanhado! O meu pai também teoriza sobre isso: ele diz que é a diferença entre a “Educação Ética” e a “Educação Estética".

– Exactamente! É isso mesmo. É verdade isto que te digo.

– Mas não é assim tão simples. Se ele é mesmo boa pessoa como a Irmã diz que é, não acredito que não lhe pese na consciência se depois vir que a medicação fez falta a alguém e houve gente a morrer por causa disso! Mesmo que ninguém descubra. Aí qualquer pessoa se apercebe de que fez mal.
– Pois… aí entra-se numa dissonância.

– E então, aí não percebe que agiu mal? Ou há mesmo um aniquilamento total da consciência nesta cultura?
– Não, não há. Eu acho até que é por isso que este povo tem tantas neuroses, tantas depressões, tantos problemas psicológicos.

– Como?
– Sim. Quando alguém se apercebe do mal que fez mas mais ninguém se deu conta, a pessoa sofre. E é um sofrimento igual ao de uma depressão ou de uma perda importante. Até há uma doença que se chama “muru tokotokho”, que quer dizer “cabeça grande”.

– Cabeça grande?
– Sim, é uma doença muito difícil de tratar. Muita gente nesta terra sofre disso. Não só por terem roubado, mas também por terem lançado feitiços a outra pessoa, ou terem prejudicado alguém, ou feito um aborto, ou quando morre alguém e se sentem culpados por isso, mesmo sem terem culpa nenhuma.

– Em Português isso chama-se remorsos. Ou escrúpulos!
– Pois, mas não é só isso. Eles não têm como reparar o erro. Não podem contar a ninguém e também não podem ir ter com a pessoa a quem fizeram mal e confessar e pedir desculpa. Ninguém pode saber, porque isso sim é que desonra a família e os antepassados! E portanto ficam num beco sem saída. É por isso que é tão difícil de tratar.

– Irmã, que disparate!
– É assim que o povo pensa.

– Pronto, está bem… Realmente assim não deve ser fácil. Quando não se pode falar fica-se muito sozinho, de facto. E se for alguma coisa importante não se consegue deixar de pensar nisso. Por acaso até é uma metáfora bem apanhada: “cabeça grande”!
– Pois, quando alguma das nossas meninas começa a andar cabisbaixa, triste, sem conseguir comer e a queixar-se de dores de cabeça eu já sei que é o “muru tokotokho”.

– E não tem cura?
– Tradicionalmente tem. É preciso ir ao curandeiro e fazer uma cerimónia muito complexa, que envolve a família toda. É preciso ir à caça de uma gazela, remover-lhe o fígado, prepará-lo e dá-lo a comer ao doente de uma forma especial.

– Mas isso não resolve nada!
– Às vezes ajuda, sobretudo quando a pessoa se sente culpada mas não teve culpa nenhuma. O pensamento mágico aqui também está muito enraizado. As pessoas pensam, por exemplo que, por desejarem mal a alguém, podem mesmo fazer-lhe mal.

– Sinceramente, não compreendo!
– Não compreendes o quê?

– Não compreendo então como é que comer as vísceras de uma gazela faz com que a pessoa se sinta melhor!
– Ora, no fundo, junta-se a família toda numa festa onde se come gazela e se dança e se canta. Aproveita-se e matam-se saudades, tem-se mimo, conversa-se com quem já não se via há muito tempo… As pessoas ficam confortadas…

– Mas isso não resolve o problema de fundo.
– Pois, por isso é que se diz que “quem não apanha sorte” não fica curado. É preciso “apanhar sorte”. Mesmo que a cerimónia seja bem feita e corra bem.

(continua...)

Pág. 1/6

Mais sobre mim

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2017
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2016
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2015
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2014
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2013
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2012
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2011
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2010
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub