01
Dez11
[a saga continua] ...ainda não desisti, mas estou exausta...
beijo de mulata
Os meninos da escolinha das Irmãs, na fila para o almoço.
(Nampula, Moçambique)
(...continuando a história que começou aqui...)
Depois da saída do Sr. Cachimo (comigo obviamente a tratá-lo por tu e sem o "senhor" antes do nome) e da terceira dose de tranquilizantes, o Sr. Rafael adormeceu finalmente pacífico e pude então dormir umas horas na cama ao seu lado, acalentada pela ternura que tinha descido sobre nós e invadido toda a madrugada, até que as Irmãs me vieram render. Daquele lado do convento, o chamamento da mesquita e o uivo da “cadela muçulmana” praticamente não se ouviam, e os cânticos das Laudes foram nessa manhã assim uma espécie de despertador de luxo, que teve o condão de trazer lentamente a luz de volta à parte do meu cérebro que quase tinha deixado de acreditar que o sol voltaria a romper um dia e continuava a repetir-me: "amanhã não existe!" Eram horas de me levantar para ir para a escolinha ver a segunda leva de meninos.
Não disse às Irmãs que praticamente não tinha dormido a noite inteira, mas o negrume por debaixo dos meus olhos quando aparece nunca engana ninguém e, enquanto eu mata-bichava*, elas trataram de reduzir para metade o número de crianças que eu veria nessa manhã. Quando cheguei à escolinha, deparei-me com uma fila muito menor de pedrinhas e pauzinhos à porta da secretaria, com que os pais marcavam a sua ordem de chegada, para se poderem tranquilamente sentar nas sombras por ali e não terem de estar de pé à torreira do sol enquanto esperavam a consulta. As senhas de vez estavam a começar a ser distribuídas pelo Sr. Rosário, numa cena hilariante, em que chamava as pessoas pelos objectos da fila: “Azulejo partido!” e alguém se levantava e gritava: “Presente!”
– Mas, Sr. Rosário, hoje há muito menos crianças do que ontem. O que foi que se passou? Fiz alguma coisa que tenha desagradado aos pais?
– Não, Doutora, as Irmãs disseram que hoje estava cansada e metade dos meninos passava para amanhã ou depois de amanhã.
– Ah, está bem…
– Doutora, estou a pidir um favor.
– Sim, se eu puder… diga.
– Meu sobrinho tem problema di olho…
[Lembram-se da história do Helder, que vos contei aqui há tempos? Foi uma história parecida com essa...]
E foi mais uma manhã intensa, passada entre histórias de pobreza, de fome, de orfandade e de viuvez, de irmãos e pais falecidos, de perdas tão difíceis para uma criança que acreditaríamos que não seria possível alguém voltar a levantar a cabeça, quanto mais sorrir e brincar com alegria, não fosse essas crianças estarem precisamente a sorrir e a brincar felizes lá fora no pátio antes de entrarem no meu gabinete de consulta e chegarem completamente afogueadas das correrias. Já não era coisa que me surpreendesse, a capacidade do ser humano, sobretudo das crianças, de recuperar a alegria de viver, desde que tivessem alguém que as amasse. E estas crianças eram, felizmente, muito amadas… Mais uma manhã a tentar falar macua entre a galhofa geral. Mas não me importava que se rissem de mim: era bom para desanuviar o ambiente, quebrar o gelo e aproximar-me dos pais.
Infeções, tuberculose, anemias, malárias… histórias de doenças de maus espíritos que faziam desmaiar as crianças e as punham a contorcer-se no chão, sacudidas por forças que quase as arrastavam para o outro lado do mundo e da vida. Para aquele lado de onde não se regressa mais, a não ser para cumprir rituais esquecidos ou para clamar justiça… Uma doença que para mim se chamava epilepsia, mas que para as famílias se chamava maldição ou punição… Com a ajuda dos tradutores tentei desmistificar a doença, convencer os pais de que epilepsia tinha tratamento e que não eram os espíritos que causavam as crises. Bastava tomar medicamentos todos os dias… Surpreendentemente consegui que aderissem. Pouco tempo depois vim a saber que os pais tinham ido agradecer às Irmãs porque os medicamentos tinham espantado os espíritos do corpo dos meninos!
Passei a manhã de tal forma embrenhada nas consultas, que só quando por fim me levantei para ir almoçar me lembrei novamente da Inês e do Sr. Rafael… Agora sim, estava exausta. Bendita intuição das Irmãs, que as tinha feito reduzir para metade o número de meninos que eu teria de ver nesse dia. Depois de almoço tinha de dormir a sesta, nem que fosse uma hora. Mas antes de me ir deitar fui ver como estava o Sr. Rafael. Abri a porta da casa, que estava só no trinco e tropecei desastradamente no Sr. Revenda que, por algum motivo bizarro que não descortinei de imediato, se deitara no chão encostado à porta de casa e dormia um sono sobressaltado. Acordou com um olhar apavorado e colocou-se de pé num segundo e só então me reconheceu.
– Doutora… – a voz meio perturbada, meio aliviada.
– Vinha ver como está o Sr. Rafael, Sr. Revenda. Desculpe tê-lo acordado… Mas não estaria mais confortável na sua cama?
– Não, Doutora. Mi deitei aqui porque estava cansado… Sr. Rafael está lá dentro.
– Obrigada.
Mas que local mais estranho para dormir… Quase parecia a história de uma tia minha, que se tornou anedota privada da família, quando uma tarde teve um ataque de sono tão grande que adormeceu nas escadas a caminho do quarto. Mas não, o Sr. Revenda, por mais sono que tivesse, não seria como a minha tia Maria José. Tinha-se deitado à porta de casa porque o terror do que estava a acontecer o deixara confuso: segundo a tradição, quando os espíritos rondam as casas, deve-se permanecer no interior, com as portas e janelas bem fechadas... mas onde ficar, para onde fugir quando é dentro da própria casa que está a ameaça? Não se tinha conseguido resolver, portanto acabara por decidir que provavelmente o local mais seguro seria perto da porta, por onde poderia ter de escapar a qualquer momento, quando os espíritos levassem o Sr. Rafael.
Apesar de as Irmãs o terem encarregado de continuar a dar soro oral ao doente, era uma ordem que não lhe fazia sentido nenhum. Em que é que beber soro ajudaria um homem obviamente já condenado à morte? Um homem que nem a intervenção do melhor curandeiro provavelmente já conseguiria salvar? Mas o problema é que o Sr. Rafael não tinha voltado a acordar desde a última dose de tranquilizantes que eu lhe tinha dado de manhã antes de sair. Também não tinha voltado a beber líquidos… e continuava agitado e a transpirar. Estava a ficar desidratado e podia estar em hipoglicémia… Se não o conseguisse fazer beber líquidos rapidamente ia acabar mesmo por ir para o hospital. E como é que ia ter tempo para procurar os medicamentos para a Inês com ele naquele estado?
Felizmente nesse momento chegaram as Irmãs com uma ideia brilhante: tinham ligado para as Irmãs da Caridade e elas, também habituadas a estas andanças, tinham-se disponibilizado imediatamente para lhe colocar um soro e, sorte das sortes, tinham recebido no dia anterior um tranquilizante apropriado para estes casos que se podia dar pela veia.
– Ah, que bom! É que acho que isto está mesmo a ficar incontrolável… E eu estou exausta. Há vários dias que não descanso nada.
– Deixe estar que nós o levamos. Vá lá ter depois para vermos se temos condições para o manter em casa ou se temos de o levar para o hospital… Esperemos que não. Sabe como é o Hospital Central, não sabe?
– Infelizmente sim…
– Então descanse, nem que seja uma ou duas horas…
– Obrigada!
– Obrigada nós! Sr. Revenda, precisamos da sua ajuda…
Continuava com mil preocupações, mas o cansaço era muito maior que qualquer aflição e no sossego do meu quarto, naquela cama estreita sob a rede mosquiteira que lhe dava um ar exótico, lá consegui adormecer num sono cheio de recordações dos momentos da noite anterior…
* Mata-bichar - Tomar o mata-bicho (pequeno-almoço). Não se esqueçam da mais fundamental regra de gramática em Moçambique: preferir sempre as conjugações divertidas às conjugações perifrásticas.
(continua...)