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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

06
Dez11

[aviso à navegação] a história da inês chegou ao fim!

beijo de mulata
Dois meses depois, com angústias pelo meio, reclamações, unhas roídas, desistências, risos e desesperos, a história da Inês e do Sr. Rafael chega ao fim com todos vivos e saudáveis. Há ainda umas pontas soltas e por isso vou ter de fazer um epílogo (sim, que qualquer história que se preze tem sempre um epílogo), até porque ainda vos vou contar como foi que regressámos a Iapala e, mais importante do que tudo o resto, o que foi que fiz com o que esta história me ensinou, que não foi nada pouco... A todos os que conseguiram chegar ao fim da história: os meus parabéns! A vida afinal também pode ser simples.
06
Dez11

[welcome to mozambique] enfim, tudo se compõe...

beijo de mulata
(...continuando a história que começou aqui...)

Nessa noite a terra tremeu. Literalmente. Um terramoto violento, de 7,5 na escala de Richter, com epicentro em Manica, a 800 km do jardim da casa das Irmãs, onde eu passeava, olhando a lua e namorando a noite negra e ardente do Cruzeiro do Sul. [Já vos contei a história...]

No dia seguinte o Sr. Rafael acordou muito mais orientado. Comeu, colaborou em tudo, tomou os medicamentos. A Inês chegou logo às 8 da manhã, terminando com a minha ansiedade. Não me sentia capaz de esperar até à hora de almoço. Quando destapei as feridas, estava tudo muito melhor! Os olhos da Inês brilharam pela primeira vez em semanas e semanas.

– Ah… então não é lepra!
– Claro que não, Inês, já te tinha dito. E mesmo que fosse, princesa! Lepra tem cura.
– Pois… mas na trad’ção não tem.
– O que é que isso quer dizer?
– Quer dizer que a doença tem cura, mas a pessoa fica marcada.
– Pois… mas isso tem outro nome, Inês. Isso chama-se estigma. E é uma coisa muito feia e injusta. Ninguém tem culpa de ficar doente.

Os olhos dela fixaram-se. Como se alguém tivesse dito o que ela mal se atrevia a pensar, mas que também sentia…
– E só ficamos marcados se acreditarmos nisso! Se não acreditares não ficas marcada. Inês, não deixes que te digam que tens lepra. Nunca mais. Isso é psoríase. E mesmo que fosse, minha querida! Lepra é uma doença vulgar, não é “tradição”, como toda a gente diz.
– Sim, tia P…
– Mas mudaste as ligaduras?
– Sim, o meu tio mudou porque se molharam.
– O teu tio é enfermeiro?
– Não, é estofador. Tia P. conhece-o.
– Ah, sim, o “tio grande”! Jeitoso, o teu tio: estão mais bem colocadas do que as minhas… Deve ser da profissão. Ser estofador deve dar-lhe muito à-vontade com os tecidos…

Já só me apetecia brincar e rir… A Inês deu a sua primeira gargalhada. No resto da semana vi a Inês todos os dias. Parecia que renascia de dia para dia. Que voltava a endireitar a cabeça e a ter novamente carne para encher a pele que cicatrizava. Voltou a falar, a sorrir, a cantar. O Sr. Rafael também melhorava de dia para dia e estava feliz porque pela primeira vez em muitos anos não sentia vontade de beber! E lembrava-se do terror que tinha sentido quando vira os bichos no seu quarto. Lembrava-se da sensação de morte iminente que tivera nessa altura. Estava feliz por ainda estar vivo e por as alucinações se terem ido embora. Curiosamente repetia para quem o quisesse ouvir, que aquilo que vira não tinham sido espíritos. Que não fazia sentido. Não sabia bem explicar, mas parecia-lhe mais que tinham sido “coisas da sua cabeça”.

Já o Sr. Revenda, andava maravilhado… De cada vez que passava por mim, olhava-me, num misto de pasmo, admiração e medo… Afinal também havia feiticeiros brancos. Isso é que nunca lhe tinha passado pela cabeça. Uma das Irmãs ouviu-o, dias depois, a referir-se a mim em conversa com um outro empregado chamando-me Mukhulukana*. Às vezes, num momento de maior audácia, puxava o assunto e parecia que fazia menção de me perguntar como é que eu tinha conseguido exorcizar os espíritos do corpo do Sr. Rafael, mas arrependia-se de imediato e desviava a conversa. Por um lado, eu podia ser perigosa e usar os meus poderes contra ele, mas eu sentia que aquilo que o impedia de fazer “a pergunta” não era só isso. Provavelmente ele pressentia que talvez a minha resposta pudesse implicar rever os seus conceitos acerca do mundo tal como ele o entendia. Rever todas as ideias sobre os antepassados, o mundo dos vivos e dos mortos e as leis que regem a vida. E isso era ainda mais perigoso e ameaçador… Por isso continha-se.

Mas ele pressentia que tinha estado perante algo de muito raro. Por vezes parecia que tinha tido um vislumbre de um mundo para lá da tradição, onde a tradição podia não ter lugar, onde as doenças podem não ser castigos, onde pessoas comuns, como a Inês e o Sr. Rafael, podem ter uma segunda oportunidade sem recorrer a poderes especiais… Mas eu não insisti. A vida não é assim tão simples. Não se pode levar um homem a deixar de acreditar no conjunto de crenças que estruturaram todo o seu pensamento, sob pena de o deixar sem um sentido para a vida. Mas talvez estes exemplos pudessem ter lançado uma semente e, um dia, caso alguém da sua família viesse a padecer de uma doença grave, talvez ele se lembrasse de mim com esperança e procurasse ajuda de um médico e não de um curandeiro.

*Mukhulukana - Palavra macua para curandeiro ou médico tradicional.

(continua...)

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