03
Dez11
[à espera da inês] ...nada, não tem!
beijo de mulata
Na casa das Irmãs da Caridade...
(Nampula, Moçambique)
(...continuando a história que começou aqui...)
Acordei sobressaltada. Já era tarde. Tinha de me levantar e correr para a farmácia e depois para casa das Irmãs da Caridade porque precisava de estar em casa às 18:00 para receber a Inês, que viria hoje… quer dizer… será que vinha mesmo? Bem, podia ser que sim… Tinha de me preparar mentalmente para que não viesse, mas o tio que não pensasse que eu ia desistir. Ele que me aguardasse porque eu, nestas coisas, consigo ser chata como a potassa! Ó se consigo!
Mas se já me tinham advertido de que ia ser difícil encontrar algum medicamento contra a psoríase, procurá-lo foi uma autêntica tortura. Comecei numa ponta da cidade e fui correndo as farmácias todas que encontrava no caminho para casa das Irmãs. “Nada, não tem.”, era a resposta invariável para qualquer pergunta. Mas não era possível! Tinham de ter! E insistia, perguntava por todos os nomes comerciais de que me lembrava, perguntava pelos princípios activos, exigia falar com os donos das farmácias. “Nada, Dona, não tem esse medicamento aqui… Mesmo penso que em toda cidade de Nampula não tem. Nunca ouvi falar. Talvez só no Maputo…”
Eu zangava-me, na minha eterna dificuldade de aceitar um “não” como resposta. Empregados e patrões permaneciam impassíveis. Não era nada com eles. Se eu não encontrava o que precisava, isso era problema meu, não deles. Mas… mas… e não se poderia encomendar? “É d’fícil, Dona. Vai demorar muito tempo.” Acabei por interromper o périplo à quarta ou quinta farmácia. O tempo estava a passar e tinha de pelo menos ver a Inês, confirmar o diagnóstico e prometer-lhe, mais uma vez, que a haveria de curar, nem que mandasse vir os medicamentos de Portugal.
Cheguei esbaforida a casa das Irmãs da Caridade. Levava um nó na garganta e uma sensação terrível de derrota. Desde o princípio que a história da Inês me estava a deixar perturbada e com a sensação de que tudo podia correr mal. Mas, fossem as minhas angústias fundadas ou sem qualquer fundamento, a verdade é que aquela história macabra me estava a consumir...
Fui imediatamente rodeada pelas dezenas de crianças do orfanato, que brincavam no pátio e, desesperadamente, pediam colo a sorrir a quem quer que passasse por elas, numa carência de afectos e vinculação que só aumentava o meu nó na garganta. Recostado num dos bancos do pátio, o Sr. Revenda em pessoa ressonava num equilíbrio precário, quase desaparecido entre as crianças que lhe tinham saltado para o colo. De vez em quando abria um olho para lhes fazer uma festa ou acomodar mais um petiz, nem que fosse apenas encostado a ele, ou quando alguma criança mais obstinada lhe puxava por um braço ou uma perna, tentando “destronar” as donas do colo, e voltava a tentar adormecer naquela posição cómica de avô enorme, com um colo do tamanho de uma família inteira. Apontou-me a custo a porta por onde deveria entrar para encontrar as Irmãs e o Sr. Rafael. Peguei ao colo numa das meninas, que desde o portão não desistia de me sorrir, tentando trepar por mim acima e entrei em casa.
Duas Irmãs afadigavam-se em volta do Sr. Rafael, acompanhadas pelas “minhas” Irmãs. Só praticamente naquele instante tinham conseguido canalizar uma veia ao Sr. Rafael, que se debatia, cuspia, esperneava, mordia e blasfemava sem dar tréguas. Tinha tido duas convulsões. “Mas por hipoglicémia.”, garantiram-me, e tinham durado nem um minuto ao todo…
– Só quando entrou em coma depois das convulsões é que parou de se debater e conseguimos colocar-lhe o cateter, assim com um golpe de sorte. Tem umas veias péssimas e como está desidratado é ainda mais difícil…
Entretanto já recuperara a consciência. Mas a glicemia continuava instável.
– Irmãs, temos algum aparelho em casa para medir a glicemia?
– Não, não temos…
– Nós temos um a mais que vos podemos dispensar… Realmente, depois destas convulsões é mais seguro só levarem o doente para casa se tiverem maneira de medir a glicemia – as Irmãs da Caridade eram realmente extraordinárias! –, o problema é que não temos fitas para o aparelho…
– E será que se podem comprar em algum sítio?
– Sim, a farmácia Canani ou a Calêndula costumam ter fitas que dão para esta máquina.
– Ai, credo! Só de pensar que vou ter de lá voltar… Hoje já apanhei uma canseira de farmácias! E um desgosto tão grande que até estou angustiada…
– Então? Não conseguiu os medicamentos para a Inês?
Já todas sabiam da história da minha menina.
– Não… devo ter corrido umas cinco farmácias, mas nenhuma tinha um dos medicamentos que fosse. Nem sei como vou fazer…
– Mas que doença tem ela? Pode ser que nós tenhamos alguma coisa
– Não tenho a certeza, mas acho que tem psoríase.
– Ah, para a psoríase não temos nada…
– Pois… nem nas farmácias…
– Mas procurou bem?
– Bem… fui a umas quantas. E insisti muito em todas. Mas não vou desistir, vou procurar em todas as da cidade.
– Não, pergunto se procurou mesmo em cada farmácia.
– Como?
– Sim, eles dizem sempre “Nada, não tem." Sempre! E às vezes até sabem que têm, mas está na gaveta de cima e não lhes apetece ir buscar um banco. Ou outras vezes não sabem que têm. Os empregados das farmácias não são farmacêuticos, não sabem sequer os nomes dos medicamentos. Só sabem os mais conhecidos. Todos os outros só se vendem quando está o patrão. E mesmo assim às vezes até os donos têm surpresas!
– Por acaso apeteceu-me várias vezes vasculhar naquelas gavetas… Mas não tinha tempo…
– Ah, mas é isso que nós fazemos! Sem pejo nenhum.
– Bem, eu também não tenho vergonha de pedir para procurar. Mas acha que vou conseguir encontrar alguma coisa?
– Em último caso talvez encontre corticóides em pomada.
– Ah, isso não queria mesmo nada…
– Pois, não é o melhor, mas duvido que encontre mais alguma coisa. E mesmo os corticóides não se encontram facilmente. É preciso muita persistência.
– Ok, então lá vou eu outra vez. E rápido, que já são 17:30 e se não me despacho então é que nem Inês nem Sr. Rafael, não trato nenhum hoje!
– Sim, então vá, que as Irmãs da Caridade já perderam muito tempo connosco hoje e têm de ir cuidar dos meninos delas. Eu fico aqui a cuidar do Sr. Rafael e a Irmã Assunção vai consigo à farmácia comprar as fitas para a máquina.
– Vamos então…
Parecia que me tinha nascido uma alma nova! Se não fosse o delirium tremens do Sr. Rafael nunca nos teríamos lembrado de ir procurar as Irmãs da Caridade para saber o “truque” para encontrar medicamentos em Nampula! Não ia ser fácil, já sabia. Mas era possível.
A farmácia estava apinhada de gente àquela hora, próximo da hora do fecho, mas os empregados reconheceram a Irmã Assunção e chamaram-nos para trás do balcão.
– Tem fitas para este aparelho?
– Nada, não tem…
– Tem a certeza?
– Sim, Irmã.
– Mas olhe, dá-me licença que procure?
– Hum…
– Sim, não se preocupe que eu procuro – voltei a pôr o meu tom de voz de mulher-que-não-aceita-um-"não"-como-resposta –, se tiver as fita, estão arrumadas onde?
– Ali, nas gavetas junto ao tecto. Tem um escadote ali.
Troquei um sorriso com a Irmã Assunção, como quem diz: “Pois… confere!” E foi assim que depois de muito vasculhar naquelas gavetas caóticas encontrei as benditas fitas e uma pomada com corticóide.
– Bingo! Encontrei! Muito obrigada, Senhor. Agradecemos muito a gentileza – pus o meu melhor e mais diplomático sorriso forçado. Claro que o que me apetecia era apertar o pescoço àquele homem, mas enfim, pelo menos tinha-me deixado remexer em tudo. Se calhar arriscando-se a problemas com o patrão…
– De nada, Irmã…
– Podemos pagar rápido? Estamos com pressa.
– Sim, eu sei. Mukunyas* têm sempre pressa!
*Mukunya - Palavra macua que designa um indivíduo de pele clara.
(continua...)