30
Nov11
[com o sr. cachimbo e o sr. rafael] novamente a casa dos loucos...
beijo de mulata
(...continuando a história que começou aqui...)
Entretanto tínhamos conseguido arrefecê-lo um pouco. A tensão arterial não estava tão descontrolada como eu temia, não tinha arritmias por enquanto e já o tínhamos conseguido fazer tomar os tranquilizantes e alguma água. Não tanta quanto eu desejava, porque de vez em quando ele gritava “Murrette!” [veneno] e cuspia tudo o que tinha na boca. As Irmãs, felizmente, conservavam a boa disposição e não se importavam com aquele espectáculo, nem que a sua roupa fosse sistematicamente atingida pela água que ele de vez em quando acreditava que o podia matar. Iam-lhe falando mansamente e explicavam-lhe que era apenas água que lhe estavam a dar, que ninguém lhe ia fazer mal, que tudo estava a ser um sonho mau e que ia passar.
Já anoitecera e a luz do pátio não era suficiente para iluminar aquele quarto cheio de gente, mas preferi acender duas velas e não a lâmpada do tecto porque qualquer estímulo adicional equivalia, literalmente, a mandar mais achas para a fogueira daquele delírio assustador.
Pouco depois chegava o Sr. Cachimbo, com o seu habitual sorriso de orelha a orelha. Radiante por ter sido chamado e poder ser útil. Vinha com a mesma camisa e os calções com que se preparava para dormir no momento em que fora chamado, e a roupa justa deixava adivinhar o seu corpo enorme e enxuto de homem nascido no campo, habituado a esforços e que não conhecera abundâncias.
Já tinha sido devidamente informado pelo Sr. Revenda sobre o que se passava e concordava com ele. A primeira coisa que me disse, claramente instruído pelo guarda, foi que achava que o Sr. Rafael estava possuído por espíritos e que para ele sobreviver deveríamos chamar um curandeiro. E eu dei por mim a compreendê-los perfeitamente. É que o Sr. Rafael tremia num tremor grosseiro, que quase parecia voluntário, tinha uma fisionomia completamente alterada, mudava de expressão e de voz a cada momento, via bichos por todo o lado e dizia coisas completamente sem nexo. Como é que eu alguma vez lhes conseguiria explicar que aquilo era uma doença causada pela privação de álcool? Mas por fim o Sr. Cachimbo lá concordou, mais para me fazer a vontade do que por convicção, que sim, que podia ser isso. Eu que o tratasse como achasse bem. De qualquer modo agradava-lhe a ideia de que aquela doença era resultado de excesso de álcool. Assim poderia sempre voltar a frisar que com ele isto nunca aconteceria porque os muçulmanos não tocam em álcool.
O teste da malária foi negativo. Agradeci-lhe muito por ter vindo àquela hora tardia, mas ele fez-se desentendido. Agora que estava ali e me tinha feito um favor, não ia arredar pé assim sem mais nem ontem. Acabava de pagar o bilhete por inteiro, agora ficava até ao fim do espectáculo! Ofereceu-se para ficar por ali comigo a tratar do Sr. Rafael, que as Irmãs estavam cansadas. Elas acharam bem e despediram-se: eram horas de ir rezar. O guarda, vendo que não tinha de acompanhar novamente o Sr. Cachimbo a casa, tratou de dar de frosques e ir para o seu posto de vigia ao portão, aliviado por poder sair daquela casa de loucos, onde todos menos eu percebiam perfeitamente que havia espíritos maus e onde, mais tarde ou mais cedo, haveria de acontecer uma desgraça. Não percebia como é que mais ninguém tinha coragem de me dizer “o rei vai nu!”. Ele tinha tentado avisar-me, estava de consciência tranquila. Mas não queria estar dentro de casa e ser enrolado no furacão quando a desgraça acontecesse!
Lentamente, a expressão de terror cravada na face do Sr. Rafael ia cedendo, os tremores diminuindo, o coração abrandava e a tensão arterial estabilizou. Mudámos-lhe a roupa e os lençóis encharcados de água e suor. Realmente, sozinha teria sido impossível mudar uma cama com um homem tão pesado deitado sobre ela. Continuava a transpirar, mas já bastante menos e não me parecia muito desidratado. Íamos tentando dar-lhe água, mas já não era fácil porque agora estava quase a adormecer. Dentro de pouco tempo ia deixar de conseguir engolir. E depois… bem, depois era rezar para que a situação passasse antes que surgissem complicações, se não teria mesmo de o levar para o hospital e tudo seria ainda pior… Mas eu estava exausta. Era quase meia-noite de um dia que já durava há quase 72 horas e temia não me conseguir manter acordada. Mas também, vistas bem as coisas, agora não precisava de estar acordada. Precisava era de acordar dentro de algumas horas, quando o efeito dos tranquilizantes começasse a passar e tivesse de recomeçar o ciclo “mede-tensão-arterial-arrefece-com-toalhas-molhadas-troca-de-roupa-dá-lhe-mais-tranquilizantes-dá-lhe-mais-água-vê-se-surgiram-complicações-tenta-não-te-preocupar-tanto-confia-que-vai-tudo-correr-bem-tenta-dormir-mais-um-pouco-que-daqui-a-nada-tens-de-recomeçar-o-processo-todo-do-início”.
Mas agora como é que ia descalçar a bota do Sr. Cachimbo? Mas como é que as Irmãs me tinham deixado ali sozinha com ele sem uma pergunta, sem um sinal de estranheza, valha-me Nossa Senhora? Não lhes tinha passado nada pela cabeça? Quer dizer, elas deviam ter pensado que se tinha sido eu a mandá-lo chamar era porque sabia que ele era boa pessoa. Vá, calma. Estava tudo bem. A intensidade dos dias devia estar a toldar-me o pensamento… Sim, devia ser isso. A intensidade dos dias. Nada mais. Não se passava nada. Não se passava nada. Os cânticos em macua das Irmãs ecoavam através do pátio, enchendo a noite de paz e tranquilidade. Sempre os achei lindos, mas nessa noite os cânticos eram particularmente bonitos e as Irmãs, talvez por terem dois doentes mais por quem rezar, a Inês e o Sr. Rafael, estavam especialmente harmoniosas.
– Doutora…
– Sim, Sr. Cachimbo?
– Eu tenho uma coisa para lhe dizer… Não me leve a mal. Eu até fico envergonhado, mas já lhe queria ter dito isto há muitos dias.
(continua...)
Entretanto tínhamos conseguido arrefecê-lo um pouco. A tensão arterial não estava tão descontrolada como eu temia, não tinha arritmias por enquanto e já o tínhamos conseguido fazer tomar os tranquilizantes e alguma água. Não tanta quanto eu desejava, porque de vez em quando ele gritava “Murrette!” [veneno] e cuspia tudo o que tinha na boca. As Irmãs, felizmente, conservavam a boa disposição e não se importavam com aquele espectáculo, nem que a sua roupa fosse sistematicamente atingida pela água que ele de vez em quando acreditava que o podia matar. Iam-lhe falando mansamente e explicavam-lhe que era apenas água que lhe estavam a dar, que ninguém lhe ia fazer mal, que tudo estava a ser um sonho mau e que ia passar.
Já anoitecera e a luz do pátio não era suficiente para iluminar aquele quarto cheio de gente, mas preferi acender duas velas e não a lâmpada do tecto porque qualquer estímulo adicional equivalia, literalmente, a mandar mais achas para a fogueira daquele delírio assustador.
Pouco depois chegava o Sr. Cachimbo, com o seu habitual sorriso de orelha a orelha. Radiante por ter sido chamado e poder ser útil. Vinha com a mesma camisa e os calções com que se preparava para dormir no momento em que fora chamado, e a roupa justa deixava adivinhar o seu corpo enorme e enxuto de homem nascido no campo, habituado a esforços e que não conhecera abundâncias.
Já tinha sido devidamente informado pelo Sr. Revenda sobre o que se passava e concordava com ele. A primeira coisa que me disse, claramente instruído pelo guarda, foi que achava que o Sr. Rafael estava possuído por espíritos e que para ele sobreviver deveríamos chamar um curandeiro. E eu dei por mim a compreendê-los perfeitamente. É que o Sr. Rafael tremia num tremor grosseiro, que quase parecia voluntário, tinha uma fisionomia completamente alterada, mudava de expressão e de voz a cada momento, via bichos por todo o lado e dizia coisas completamente sem nexo. Como é que eu alguma vez lhes conseguiria explicar que aquilo era uma doença causada pela privação de álcool? Mas por fim o Sr. Cachimbo lá concordou, mais para me fazer a vontade do que por convicção, que sim, que podia ser isso. Eu que o tratasse como achasse bem. De qualquer modo agradava-lhe a ideia de que aquela doença era resultado de excesso de álcool. Assim poderia sempre voltar a frisar que com ele isto nunca aconteceria porque os muçulmanos não tocam em álcool.
O teste da malária foi negativo. Agradeci-lhe muito por ter vindo àquela hora tardia, mas ele fez-se desentendido. Agora que estava ali e me tinha feito um favor, não ia arredar pé assim sem mais nem ontem. Acabava de pagar o bilhete por inteiro, agora ficava até ao fim do espectáculo! Ofereceu-se para ficar por ali comigo a tratar do Sr. Rafael, que as Irmãs estavam cansadas. Elas acharam bem e despediram-se: eram horas de ir rezar. O guarda, vendo que não tinha de acompanhar novamente o Sr. Cachimbo a casa, tratou de dar de frosques e ir para o seu posto de vigia ao portão, aliviado por poder sair daquela casa de loucos, onde todos menos eu percebiam perfeitamente que havia espíritos maus e onde, mais tarde ou mais cedo, haveria de acontecer uma desgraça. Não percebia como é que mais ninguém tinha coragem de me dizer “o rei vai nu!”. Ele tinha tentado avisar-me, estava de consciência tranquila. Mas não queria estar dentro de casa e ser enrolado no furacão quando a desgraça acontecesse!
Lentamente, a expressão de terror cravada na face do Sr. Rafael ia cedendo, os tremores diminuindo, o coração abrandava e a tensão arterial estabilizou. Mudámos-lhe a roupa e os lençóis encharcados de água e suor. Realmente, sozinha teria sido impossível mudar uma cama com um homem tão pesado deitado sobre ela. Continuava a transpirar, mas já bastante menos e não me parecia muito desidratado. Íamos tentando dar-lhe água, mas já não era fácil porque agora estava quase a adormecer. Dentro de pouco tempo ia deixar de conseguir engolir. E depois… bem, depois era rezar para que a situação passasse antes que surgissem complicações, se não teria mesmo de o levar para o hospital e tudo seria ainda pior… Mas eu estava exausta. Era quase meia-noite de um dia que já durava há quase 72 horas e temia não me conseguir manter acordada. Mas também, vistas bem as coisas, agora não precisava de estar acordada. Precisava era de acordar dentro de algumas horas, quando o efeito dos tranquilizantes começasse a passar e tivesse de recomeçar o ciclo “mede-tensão-arterial-arrefece-com-toalhas-molhadas-troca-de-roupa-dá-lhe-mais-tranquilizantes-dá-lhe-mais-água-vê-se-surgiram-complicações-tenta-não-te-preocupar-tanto-confia-que-vai-tudo-correr-bem-tenta-dormir-mais-um-pouco-que-daqui-a-nada-tens-de-recomeçar-o-processo-todo-do-início”.
Mas agora como é que ia descalçar a bota do Sr. Cachimbo? Mas como é que as Irmãs me tinham deixado ali sozinha com ele sem uma pergunta, sem um sinal de estranheza, valha-me Nossa Senhora? Não lhes tinha passado nada pela cabeça? Quer dizer, elas deviam ter pensado que se tinha sido eu a mandá-lo chamar era porque sabia que ele era boa pessoa. Vá, calma. Estava tudo bem. A intensidade dos dias devia estar a toldar-me o pensamento… Sim, devia ser isso. A intensidade dos dias. Nada mais. Não se passava nada. Não se passava nada. Os cânticos em macua das Irmãs ecoavam através do pátio, enchendo a noite de paz e tranquilidade. Sempre os achei lindos, mas nessa noite os cânticos eram particularmente bonitos e as Irmãs, talvez por terem dois doentes mais por quem rezar, a Inês e o Sr. Rafael, estavam especialmente harmoniosas.
– Doutora…
– Sim, Sr. Cachimbo?
– Eu tenho uma coisa para lhe dizer… Não me leve a mal. Eu até fico envergonhado, mas já lhe queria ter dito isto há muitos dias.
(continua...)