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Beijo de Mulata

Beijo de Mulata

21
Nov11

[em casa da inês] algo de muito grave se passava...

beijo de mulata
(...continuando a história que começou aqui...)

Após alguns minutos, a porta abriu-se e uma mulher, de seus trinta e poucos anos, emagrecida e despenteada, semi-despida abriu a porta, estremunhada. Não me deu tempo sequer de explicar ao que vinha. Assim que me viu, percebeu que eu só podia vir de parte das Irmãs, e fez menção de fechar a porta. Não tinha contado com isso. Nem me tinha passado pela cabeça que ela compreendesse de imediato o que é que eu fazia ali. Que ingenuidade a minha…

A vizinha e o Vicente, pelo contrário, não esperavam outra coisa. Precipitaram-se para a porta no mesmo momento, impedindo-a de se fechar. A vizinha dizia repetidamente qualquer coisa em macua, que não compreendia totalmente, mas que incluía a palavra “ajudar” e a mãe debatia-se, furiosa, com o ar indignado de quem está a ser invadida no seu espaço. E com toda a razão, que afinal de contas tínhamo-la acordado do seu primeiro sono para vir falar, sem pré-aviso nenhum, de um assunto delicadíssimo. Que fiasco mais uma vez, valha-me Deus!

A vizinha estava quase a desistir. Apesar de tudo não queria escândalos nem violência física, que era o que estava a um passo de acontecer. Naquele momento ocorreu-me perguntar, só para o caso de a mãe estar a pensar que eu lhe vinha cobrar alguma coisa: “O que se passa com a sua menina?”

Foi aí que algo no seu semblante mudou. Desmoronou-se e começou a chorar… Mais tarde explicaram-me que o que eu perguntei, na realidade, foi: “Porque é que está a sofrer assim pela sua filha?” Seja como for, foi um engano providencial. [Já tive enganos piores, oh se já tive! Como o da vez em que, no pátio do hospital disse para um adolescente: “Anda, despacha-te!” e toda a gente desatou a rir porque o que eu lhe ordenei, de facto foi: “Pede-me em casamento!” Ninguém merece, pobre miúdo… O ar de pânico dele foi indescritível!] A vizinha repetiu novamente a frase que lhe vinha dizendo insistentemente, agora em tom meigo e abraçou-se a ela… “Só estamos aqui para ajudar.”

– Mas Irmã não me pode ajudar. Betinha tem doença trad’cional a voz da mãe metia dó, de tão triste.
– E que doença é essa, mamã?
– Tem cabeça grande – respondeu, desviando o olhar.
Ishh, mamã! Fala a verdade! Dor di cabeça tem cura, não é para deixar de trabalhar, não. Fala verdade – a vizinha repreendia-a mansamente.
– Tem dor de cabeça há quanto tempo? – perguntei de imediato.

De repente a minha mente médica estava em ação, ao mesmo tempo que fazia um esforço enorme para seguir a conversa que agora se desenrolava à minha frente, num ritmo muito mais rápido, com meias palavras e sons engolidos, em sotaque moçambicano cada vez mais cerrado e com termos e conceitos que me escapavam totalmente. O que seria “cabeça grande”? De que estariam elas para ali a falar? Sentia que estava prestes a perder a minha única oportunidade para convencer a mãe a deixar-me ver a Inês.

– Não, Irmã – respondeu a vizinha –, não é dor di cabeça assim dor di cabeça mesmo, é dor di cabeça trad’cional. Para curar cabeça grande tem de caçar gazela e fazer cerimónia. Mas está a mentir. Não é cabeça grande, não.
– Então, mamã? Olhe, eu sou médica em Portugal, às vezes aquilo que as pessoas pensam que é doença tradicional e que não tem cura, são doenças que têm cura lá. E posso mandar vir medicamentos de Portugal para tratar a menina.
– Não, Irmã, não é preciso… Betinha está gráv’da, não quer estudar mais.
Ishh, mamã! Fala a verdade! Grav’dez é bonito, não é vergonha não! E minina anda di cabeça coberta. Grav’dez não é para cobrir cabeça… Ah, e há um mês Betinha estava a lavar pano no poço, que eu vi. Ela esteve menstruada!

A mãe recomeçou a chorar e a partir daí não lhe conseguimos arrancar mais palavra nenhuma. Claramente a doença era algo que mexia de tal forma com ela e tão humilhante que mesmo tendo ali alguém disposto a ajudar desconseguia sequer dizer-lhe o nome… Não conseguia aceitar a doença da filha. Que desespero. O nosso e o dela. Acabou por voltar para dentro de casa e nunca mais abriu a porta, por mais que batêssemos. Acompanhámos a vizinha a casa.

– E ela não tem mais ninguém de família por aqui? Uma irmã, uma tia, um pai? Vivem só as duas? – perguntei. Recusava-me a dar-me por achada.
– Vivem com o pai. Os outros irmãos também estão fora a estudar.
– E o pai onde está? Porque não apareceu à porta?
– Ainda não chegou, acho.
– Boa noite, mamã, muito obrigada mesmo!
– Boa noite.

Fiquei sozinha com o Vicente. Ficámos a olhar um para o outro, desconsolados. Eu sabia que ia ser difícil, mas tinha tanta esperança… A dada altura parecia que a mãe nos ia dizer o que se passava, mas havia mesmo algo de terrível, de certeza. Seria SIDA? Uma psicose? Epilepsia? Malditos tabus! Malditos estigmas… Sobretudo porque todas estas doenças têm tratamento! Podem não ter cura, mas tratamento têm todas. E uma técnica de farmácia tinha obrigação de saber isso, caramba!

– Tia P., vamos outra vez para lá esperar o pai? Pode ser que o pai consiga falar. Os homens às vezes falam melhor porque não sofrem tanto com os filhos. São um pouco mais distantes porque estão menos envolvidos… E a mãe não pode decidir nada sobre a filha. Se o pai tiver dito que não se pode falar da doença, a mãe não pode falar. Mas o pai pode. E talvez dê autorização para tia P. ver a menina.
– Vicente… – eu estava espantada com a sensibilidade daquele menino – mas não tens de te levantar cedo amanhã?
– Sim, mas é só hoje. Não tem problema.

(continua...)
21
Nov11

[ser fashion no mato] tanta roupa e nada para vestir...

beijo de mulata




Capulanas e o costureiro da vila...
(Fotos da net)

(Repost. Porque sim...)

E se de repente, no meio da savana, a atacar o vírus do armário vazio, vulgarmente designado por "ai-que-não-tenho-nada-para-vestir-que-me-fique-bem"? E se essa sensação não for devidamente saneada e evoluir para um "ai-que-gostava-tanto-de-ter-uns-trapinhos-iguais-aos-da-Dona-Marilinda-que-lhe-assentam-tão-bem-e-ela-até-tem-um-corpo-parecido-com-o-meu"? Pois... isto do voluntariado, da frugalidade e do em-roma-sê-romano é muito bonito e na esmagadora maioria dos dias funcionava, mas consigo recordar-me nitidamente de uma ocasião em que a loira que há em mim soltou as garras, rasgou a minha fina capulana de força de vontade e saltou cá de dentro.

E então aconteceu. Foi no Gilé, Zambézia. No meio do mato. Sentia-me despida, totalmente sem graça e nem na loja do Sr. Pompisk deveria haver algo que me pudesse valer naquele momento de angústia feminina. Saí do hospital à hora de almoço. Era cedo. Nesse dia tinha, miraculosamente, havido menos movimento. Fui até ao mercado com uma vaga esperança de encontrar algo de que gostasse.

Qual não foi o meu espanto quando dei de caras com várias mamãs do hospital, que tinham tido a mesma ideia que eu (nada de extraordinário haveria nisto, não fosse dar-se o caso de estarem internadas...). Sorri-lhes ao de leve, sem saber se as havia de cumprimentar ou dar-lhes um raspanete por terem saído do hospital... De qualquer modo não era nada que me espantasse desde o dia em que tinha encontrado ao meu lado na missa um senhor que estava internado com uma pneumonia. (Como a hora da medicação só era duas horas depois, tinha aproveitado para ir rezar...) E, bem disposta, comprei o que havia para comprar: capulanas, what else? Eram lindas - as mais bonitas que tenho, aliás -, e no dia seguinte fui trabalhar de alma lavada, com planos para mandar fazer um vestido com uma delas.

Quando apareci de capulana no hospital no dia seguinte, ouvi alguns risos e um coro de vozes brancas a dizer qualquer coisa em macua que não percebi. Voltei-me para as crianças e perguntei-lhes de que se riam. Respondeu-me uma das mais velhas:

- Estão a rir porque não sabiam que Doutora também é mulher!

(Lindo, pensei, para estas crianças só é mulher quem usa capulana! E até me ir embora tive sempre esta desculpa fantástica para comprar mais capulanas e andar sempre vestida com panos coloridos. Para não confundir as crianças...)

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